Marco Carvalho
A conservação de um certo património memorialístico está na moda em Portugal. Durante os últimos anos, o musicólogo Tiago Pereira tomou em mãos a tarefa de procurar perceber o que ainda resta das tradições musicais resgatadas por Michel Giacometti à indiferença e ao esquecimento durante a década de 60.
O que Pereira descobriu e tão bem retratou na série “A Música Portuguesa a Gostar dela Própria” é um Portugal vibrante, mas tendencialmente envelhecido e, em grande medida, condenado ao oblívio. Grande parte das vozes que o musicólogo registou são idosos que se movimentam com naturalidade num mundo à beira da implosão, o de uma ruralidade estrangulada pelo debacle da chamada agricultura de subsistência. A liberalização dos mercados e o enraizamento de novas formas de consumo tornou o labor do campo obsoleto e como habitualmente sucede sempre um sistema de organização social entra em colapso, uma série de outras manifestações perdem vitalidade. As alterações mais imediatas revelam-se no domínio da paisagem, com a natureza a reclamar o que desde há centenas de anos vinha sendo conquistado sazonalmente a pulso pelo Homem. Outras transformações, não tão evidente e imediatas, são as que se registam no campo das vivências sociais e da própria linguagem. Um dia virá em que a acepção figurada do acto de lavrar – lavrar uma carta ou um contrato – se substituirá ao alcance original da palavra, o de revolver a terra para lhe conferir nova vida.
O trabalho de Tiago Pereira é importante pela mais óbvia das razões: documenta um mundo e uma realidade que estão inevitavelmente condenadas à extinção. Num mundo onde o global se impõe com implacável voracidade sobre o local (e onde é mais provável que um adolescente conheça melhor a obra de um rapper norte-americano do que a carreira de um cantautor com quem partilha a língua), o registo da memória comum será no futuro a argamassa com a qual se construirão novos ideais de identidade.
No Verão passado, a Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa, região de paisagens austeras e aldeias vazias, compreendeu que os tempos que correm pautam o fim de uma era e incumbiu uma equipa de funcionários de recolher centenas de depoimentos de quem ainda por lá resta. No depauperado interior de Portugal, restam sobretudo idosos. Gente que se sente intimidada por telemóveis, pela profusão de conteúdos que lhes querem impingir, pela imediatez e pela celeridade com que um mundo galvanizado lhes tenta impor um futuro incerto, ainda que a maior parte tenha deixado a vontade e a vitalidade no passado.
Os depoimentos em vídeo recolhidos pela Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa – com crónicas de contrabando e relatos de privações e dificuldades, mas também de estoicismo e celebração – constituem um contributo essencial para a memória futura da região da raia e o exemplo, sobretudo por ter surgido por iniciativa autárquica, devia pautar tendências e fazer escola.
A incumbência de garantir a persistência da memória faz-se sentir ainda com maior preponderância em sociedades onde o impulso para a renovação é constante, como é o caso de Macau. Com mais de meio milhão de almas e uma organização espacial que convida ao anonimato e circunscreve a individualidade, Macau encontrou em António Caetano de Faria e na sua série de curtas-metragens documentais “Os Resistentes” o equivalente ao trabalho conduzido em Portugal por Tiago Pereira com “A Música Portuguesa a Gostar dela Própria”, ainda que o âmbito de abrangência do trabalho de recolha conduzido pelo realizador português radicado em Macau seja amplamente mais lato.
Se em Portugal o trabalho de Tiago Pereira teve como ponto de partida a gesta etno-musical em que embarcou o francês Michel Giacometti no final da década de 60, o trabalho agora conduzido por António Caetano de Faria é herdeiro, ainda que provavelmente de forma inconsciente, do trabalho de documentação visual conduzido pela Teledifusão de Macau na recta final da administração portuguesa com séries como “Um dia na vida de um…” ou “Macau à Conversa”.
Se há três e duas décadas o labor de salvaguardar a memória da cidade era uma incumbência política, hoje o impulso para documentar a Macau que resiste à voragem dos dias é um acto de cidadania e um gesto de activismo cívico face ao crescimento desregrado do território e às múltiplas metamorfoses de que Macau foi palco desde que se fez RAEM. A Cidade do Santo Nome de Deus só tem a ganhar com Caetano de Faria e com os resistentes a que dá voz.