A persistência da memória

Marco Carvalho

A conservação de um certo património memorialístico está na moda em Portugal. Durante os últimos anos, o musicólogo Tiago Pereira tomou em mãos a tarefa de procurar perceber o que ainda resta das tradições musicais resgatadas por Michel Giacometti à indiferença e ao esquecimento durante a década de 60.

O que Pereira descobriu e tão bem retratou na série “A Música Portuguesa a Gostar dela Própria” é um Portugal vibrante, mas tendencialmente envelhecido e, em grande medida, condenado ao oblívio. Grande parte das vozes que o musicólogo registou são idosos que se movimentam com naturalidade num mundo à beira da implosão, o de uma ruralidade estrangulada pelo debacle da chamada agricultura de subsistência. A liberalização dos mercados e o enraizamento de novas formas de consumo tornou o labor do campo obsoleto e como habitualmente sucede sempre um sistema de organização social entra em colapso, uma série de outras manifestações perdem vitalidade. As alterações mais imediatas revelam-se no domínio da paisagem, com a natureza a reclamar o que desde há centenas de anos vinha sendo conquistado sazonalmente a pulso pelo Homem. Outras transformações, não tão evidente e imediatas, são as que se registam no campo das vivências sociais e da própria linguagem. Um dia virá em que a acepção figurada do acto de lavrar – lavrar uma carta ou um contrato – se substituirá ao alcance original da palavra, o de revolver a terra para lhe conferir nova vida.

O trabalho de Tiago Pereira é importante pela mais óbvia das razões: documenta um mundo e uma realidade que estão inevitavelmente condenadas à extinção. Num mundo onde o global se impõe com implacável voracidade sobre o local (e onde é mais provável que um adolescente conheça melhor a obra de um rapper norte-americano do que a carreira de um cantautor com quem partilha a língua), o registo da memória comum será no futuro a argamassa com a qual se construirão novos ideais de identidade.

No Verão passado, a Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa, região de paisagens austeras e aldeias vazias, compreendeu que os tempos que correm pautam o fim de uma era e incumbiu uma equipa de funcionários de recolher centenas de depoimentos de quem ainda por lá resta. No depauperado interior de Portugal, restam sobretudo idosos. Gente que se sente intimidada por telemóveis, pela profusão de conteúdos que lhes querem impingir, pela imediatez e pela celeridade com que um mundo galvanizado lhes tenta impor um futuro incerto, ainda que a maior parte tenha deixado a vontade e a vitalidade no passado.

Os depoimentos em vídeo recolhidos pela Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa – com crónicas de contrabando e relatos de privações e dificuldades, mas também de estoicismo e celebração – constituem um contributo essencial para a memória futura da região da raia e o exemplo, sobretudo por ter surgido por iniciativa autárquica, devia pautar tendências e fazer escola.

A incumbência de garantir a persistência da memória faz-se sentir ainda com maior preponderância em sociedades onde o impulso para a renovação é constante, como é o caso de Macau. Com mais de meio milhão de almas e uma organização espacial que convida ao anonimato e circunscreve a individualidade, Macau encontrou em António Caetano de Faria e na sua série de curtas-metragens documentais “Os Resistentes” o equivalente ao trabalho conduzido em Portugal por Tiago Pereira com “A Música Portuguesa a Gostar dela Própria”, ainda que o âmbito de abrangência do trabalho de recolha conduzido pelo realizador português radicado em Macau seja amplamente mais lato.

Se em Portugal o trabalho de Tiago Pereira teve como ponto de partida a gesta etno-musical em que embarcou o francês Michel Giacometti no final da década de 60, o trabalho agora conduzido por António Caetano de Faria é herdeiro, ainda que provavelmente de forma inconsciente, do trabalho de documentação visual conduzido pela Teledifusão de Macau na recta final da administração portuguesa com séries como “Um dia na vida de um…” ou “Macau à Conversa”.

Se há três e duas décadas o labor de salvaguardar a memória da cidade era uma incumbência política, hoje o impulso para documentar a Macau que resiste à voragem dos dias é um acto de cidadania e um gesto de activismo cívico face ao crescimento desregrado do território e às múltiplas metamorfoses de que Macau foi palco desde que se fez RAEM. A Cidade do Santo Nome de Deus só tem a ganhar com Caetano de Faria e com os resistentes a que dá voz.

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Descobrir a verdade através da escrita

Joe Tang

Escritor

Os residentes de Macau têm recentemente vestido a pele de Sherlock Holmes de tão perplexos que estão pelo caso de suicídio de uma alta funcionária do governo local.

No entanto, os seres humanos não têm particularmente uma boa memória e, depois de alguma conversa de café, o mais certo é que este assunto deixe as preocupações da maioria das pessoas, agora mais atentas aos preparativos do Natal e do Ano Novo. Relativamente à busca da verdade, talvez não sejamos tão persistentes e apaixonados quanto pensávamos, e isso lembra-me um livro que li e que se chama La Verité sur L’Affaire Harry Quebert.

O livro é escrito por Joel Dicker. Nascido nos anos 80, Dicker reside numa parte da Suiça onde se fala o francês. Embora sentisse já paixão pela escrita no início da juventude, esperou até aos 24 anos para publicar a sua primeira novela, Les Derniers Jours de nos Père, uma história passada durante a Segunda Guerra Mundial. No entanto, o que verdadeiramente trouxe o seu nome para a ribalta foi a publicação, em 2012, de La Verité sur L’Affaire Harry Quebert. O livro foi já traduzido em 37 línguas e publicado em 45 países.

Pergunta-se: o que há assim de tão especial em La Verité que criou todo este impacto? O conceito base é um livro de detectives, de ficção. Conta a história de um escritor de 28 anos chamado Marcus Goldman, que se tornou famoso com a publicação da sua primeira novela. No entanto, depois de receber adiantado o pagamento dos direitos pela publicação de uma segunda novela, Goldman fica bloqueado e não consegue escrever uma única linha. E é assim que decide pedir ajuda ao seu mentor, Harry Quebert, um gigante da literatura americana.

Quando Goldman se encontra escondido na pequena cidade onde vive o seu mentor e onde procura concentrar-se na escrita, descobre acidentalmente uma relação proibida entre Quebert e uma jovem de 15 anos chamada Nola Kellergan, que se encontra desaparecida há 33 anos. O mais surpreendente é que os restos mortais de Kellergan estão, afinal, enterrados no quintal de Quebert. No entanto, Goldman acredita firmemente na inocência do seu mentor e decide investigar o caso por si próprio, ao mesmo tempo que escreve o livro La Verité sur L’Affaire Harry Quebert, para assim fazer um registo do processo de investigação.

O livro é muito especial porque o autor introduz uma história noutra, com a ficção policial a incluir agora a história que o personagem está a escrever. Isto acaba por criar um livro dentro do livro, um mistério dentro de outro mistério. Diferentes enredos e pistas entrecruzam-se e dão origem a sucessivas reviravoltas.

O que mais me atrai nesta história é a representação que o autor faz de dois autores de diferentes gerações, um cheio de vida e de entusiasmo, o outro frágil e com um longo passado de sofrimento. Quebert ensinou a Goldman tudo o que sabia, incluindo as 31 teorias da escrita. O crescimento da amizade entre ambos é bem evidente ao longo de todo o processo de ensino e aprendizagem.

La Verité é uma história que usa o desaparecimento de uma pessoa há várias décadas como introdução. Através de dois livros e das histórias de dois escritores, trilha um complexo labirinto humano. Embora seja uma história policial, La Verité diz-nos que o essencial não é descobrir quem cometeu o crime, mas sim a eterna dúvida existencial: quando se enfrenta a omnipresença de uma humanidade negra e retorcida, como devemos proceder para evitar que nos tornemos simples acessórios?

 

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Quo Vadis, Macau?

Marco Carvalho

Depois de ter hostilizado as concessionárias de jogo, enxotado para outras paragens os grandes apostadores e obrigado o Governo e os agentes locais a descerem a custo do pedestal de facilidades em que se encontravam, eis que Pequim faz uma meiguice a Macau. Na quarta-feira – dia em que o Conselho de Estado mais do que triplicou a área sob jurisdição da Região Administrativa Especial de Macau – saiu o “El Gordo” ao território, ainda que os proveitos da terminação e da sorte grande com que Macau foi brindado não sejam imediatos e se prefigurem quase como que uma benesse às prestações. Quanto mais eficaz for a capacidade de gestão do Governo, maiores serão os proveitos que conseguirá retirar dos 85 quilómetros quadrados agora consignados a Macau e do que eventualmente lá poderá vir a ser construído.

Que não haja ilusões. Poucos serão os que não manifestam consciência absoluta de que as novas áreas marítimas deverão servir, talvez num futuro não muito distante, para novas gestas de conquista ao mar. A possibilidade de novos aterros não só se enuncia de forma clara nas disposições emanadas por Pequim, como também se faz acompanhar por uma indicação incisiva e absolutamente nevrálgica relativamente ao rumo do desenvolvimento que o Governo Central traçou para Macau. Ainda na ressaca de dez fulgurantes anos de crescimento, o território não digeriu por completo, com consciência plena, o xadrez das novas circunstâncias em que se movimentam concessionárias de jogo, empreendedores e investidores ou mesmo uma certa classe de residentes que se deixou incandescer pelo toque de Midas associado à indústria do jogo. Macau tem sido a viúva que se recusa a fazer o luto e conversa saudosamente com o prato vazio do marido, dia após dia plantado à sua frente.
Na quarta-feira, Pequim fez finalmente o velório à  indústria do jogo, liquidando de uma vez por todas as ilusões e os fantasmas que até ao início da semana embalavam o sector. Ao estipular que nos eventuais aterros que possam nascer nos 85 quilómetros de águas territoriais agora atribuídos ao território não nascerão novas valências de jogo, o Governo Central circunscreve o desenvolvimento da indústria dos casinos ao que já se conhece ou que poderia ser facilmente inferido: a expansão do sector não irá além dos limites do Cotai.
O que no início da década se prefiguraria como um contra-senso e um gesto quase de “haraquiri” é hoje – 16 anos volvidos sobre a transferência da administração entre Portugal e a República Popular da China – não apenas uma decisão sensata, mas também o que melhor serve o agastado desígnio da diversificação económica. Sem a inevitável cobiça dos barões do jogo, eventuais novas áreas conquistadas ao mar estarão “apenas” sujeitas à avidez e à sede de negócio dos viscondes do imobiliário, o que já não é coisa pouca. Ainda assim, se o Governo tiver capacidade para gerir as novas áreas tendo como prioridade a causa comum e ostentar lucidez suficiente para não repetir os erros do passado – como o que por estes dias tem estado no centro da novela “Pearl Horizon” – o alargamento da área de jurisprudência sob a alçada da RAEM poderá ser um balão de oxigénio para um território que está há muito vergado à selvajaria do imediato, onde impera a lógica do salve-se quem puder e o paradigma do lucro fácil prevalece.
Em domínio algum a síndrome da galinha dos ovos de ouro se faz sentir de forma tão perniciosa como no campo da estruturação urbana e da organização territorial. Excepção feita aos casinos, a forma mais fácil de se fazer dinheiro em Macau é pegar num casinhoto (traça chinesa e tijolo burro), mandá-lo ao chão e no seu lugar construir uma aberração de betão com três ou quatro andares. O processo repetiu-se dezenas, senão centenas de vezes ao longo dos últimos anos no Porto Interior, da Barra ao Fai Chi Kei, passando pelo Patane e pela Praia do Manduco, e deu azo a uma cidade disforme, erguida ao atropelo da memória e da história.
Se a atribuição das novas áreas marítimas (e a eventual construção de novos aterros) puder ser sinónimo de esperança para a cidade antiga que ainda resiste, então Pequim seja louvado. Se não, então que os deuses tenham piedade de Macau.

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MÍSTICO e CRIATIVO

[Olhar ao redor]

Luís Sequeira

 

Neste caminho de preparação do Natal, festa do nascimento de Jesus, foi-nos apresentado, no Domingo passado, a figura de João Baptista. Neste, o quarto Domingo do Advento, a centralidade da narração é dada a Maria, Nossa Senhora.

Se João foi o Arauto da vinda do Senhor Jesus e chamado a proclamar a necessidade da conversão do coração para chegar ao conhecimento da verdade da mensagem do Reino de Deus, Nossa Senhora abre-nos a uma outra compreensão mais ampla e mais profunda dessa mesma mensagem. Ela afirma e confirma, com a sua própria vida, a união íntima da dimensão activa e contemplativa da pessoa humana. O místico e o criativo harmonizam-se no ser humano. É uma complementaridade intrínseca e estrutural da sua natureza.

Perante o acontecimento extraordinário ou o mistério da Encarnação, Deus feito homem – e muito concretamente considerando os momentos da concepção e do nascimento de Jesus – vimos Nossa Senhora que se recolhe no mais secreto de si mesma, aí onde Deus habita, à procura do entendimento daquilo que se está a passar: «Maria conservava isso e meditava tudo em seu coração». É aquele momento de contemplação que domina todas as nossas capacidades humanas e nos transporta para além do imediato e sensível e nos faz compreender algo de sobrenatural e mais divino.

No entanto, este estádio, chamemos-lhe, mais contemplativo ou místico de Maria, e nós com ela, pressupõe ou não exclui, tal como ela, o passar também, muito naturalmente, pela experiência do ‘medo no coração’, da ‘confusão na mente’ e, finalmente, não saber qual ‘a decisão’ a tomar. O texto de S. Lucas é bem claro nestes pormenores muito humanos que precedem o movimento para penetrar e compreender o divino.

Interessante é verificar, agora, num segundo instante, o que se segue àquele momento mais íntimo e mais ‘místico’. Diz o Evangelho deste Domingo:«Maria pôs-se a caminho e dirigiu-se apressadamente para a montanha». Maria pôs-se em movimento para ajudar a sua prima Isabel que vivia lá nas regiões altas, na cidade de Judá.

Após o primeiro momento ‘místico’ de Maria, de compreensão, no seu coração, do plano de Deus sobre ela, aparece, de seguida, ‘o momento dinâmico e criativo.’ Ela sente um impulso forte de ajudar a prima já grávida de seis meses. Prima que também entra no grande plano de Deus, através de seu filho, João Baptista. Acreditemos ou não, mas é uma característica da nossa natureza humana, ter tanto a dimensão ‘estática e mística’ como a ‘dinâmica e criativa’. Poderemos, no entanto, dizer que, na realidade da vida do nosso quotidiano, uns são mais inclinados a viver o primeiro modelo, outros o segundo.

Contudo, desejo afirmar aqui aquilo que a História da Humanidade e, muito particularmente, a História da Igreja nos comprovam tão vigorosamente: os místicos são profundamente criativos. Isto, numa época que é a nossa, que tem tanta dificuldade a aceitar que o silêncio , o recolhimento, a reflexão e a oração são geradores de mulheres e homens, rapazes e raparigas, de visão de horizontes largos e rasgados, de espírito criativo e original, corajosos e ousados, capazes de transformar o mundo. Em Deus, nada é impossível para eles.

Recordemos Gandhi e Nelson Mandela. Francisco de Assis e Catarina de Sena. Inácio de Loiola e Teresa de Ávila não transformaram a Sociedade, a Igreja e o Mundo do seu tempo? E a diminuta Madre Teresa de Calcutá, grande mística, não desafiou ela a acção de reis e rainhas, presidentes e primeiros ministros, generais e marechais? Não questionou ela toda a sociedade actual com a sua própria vida para «o serviço dos pobres dos mais pobres»?

Leio ainda no texto evangélico algo de extrema actualidade sobre a qual não consigo furtar-me a uma pequena reflexão: «Na verdade, logo que chegou aos meus ouvidos a voz da tua saudação (de Maria), o menino exaltou de alegria no meu seio (de Isabel)». O nosso corpo pode ser expressão de uma experiência espiritual. Aqui temos o bebé que salta no ventre materno de Isabel como sinal da presença amorosa de Deus. Numa passagem mais atrás é Zacarias, marido de Isabel, que percebe, de modo negativo, a acção de Deus ao ver-se incapacitado de falar, devido à sua incredulidade.

Aprendemos, também e cada vez com mais clareza, o que são as chamadas doenças psico-somáticas. Começamos a reconhecer que o corpo, o nosso físico pode apresentar-se, externamente, com dores, até visíveis e com cor, mas que, afinal, internamente, é uma outra coisa bem mais séria. Isso são manifestações inconscientes de verdadeiras ‘dores da alma’ e do foro psicológico.

O diálogo entre ‘o corpo’ e ‘o espírito’ toca todas as civilizações. Será que, nestes tempos que são os nossos, insistimos tanto no ‘corpo’, na sua beleza e na sua saúde, que esquecemos que a sua perfeição está quando encontramos o seu ‘espírito’ !? Amar em acção é serviço.

 

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Gente que vem para o Frio

[Olho Mágico]

Márcia Souto

Meados de Dezembro… inescapavelmente, somos apanhados e obrigados, um pouco por todo o corpo, a olhar para os trezentos e tantos dias passados e, saudosos ou aliviados (ou um mix destes e doutros sentimentos), lembrar… Somos apanhados a olhar a contra-lógica de certas migrações, num tempo de aquecimento global e de desespero. Para onde vamos?

Em Lisboa, o frio chega vagarosamente, assim como a chuva que promete ainda mais melancolia. Em Minas Gerais, calor escaldante e o receio imorredouro de que o aproximar da época  das chuvas torne ainda mais dramática a situação dos “ribeirinhos” da lama da Samarco. A enxurrada, que transmigra e rompe as barragens, mata a terra e o mar, num crime ecológico sem precedentes, e, a cada instante, mata o ânimo nas gentes.  Esses meus pensamentos devem ser influenciados pela proximidade do Ano Novo (e, se calhar, pelo incontornável Feliz Ano Velho) e de  Janus  com seu olhar esquizofrénico… ou talvez seja a minha tentativa desesperada de  abstrair dos inúmeros encartes com “prendas incríveis” e, finalmente,  “despapainoelizar” (“despainatalizar”) o espírito, como propôs uma vez Frei Betto e que, numa longínqua aula, eu tentava explicar aos meus meninos e eles, surpreendendo-me, perceberam com rapidez desconcertante o que o neologismo queria dizer.

Mas dizia eu que o frio vai chegando, assim como chegam os primeiros refugiados em Portugal. Ainda são poucos, mesmo pouquinhos, mas representam uma grande esperança para os que sentem o calafrio, o medo e a fome do lado de lá de várias fronteiras da vida. Certamente estes homens, estas mulheres, estas crianças lembram-se do que os obrigou a partir paradoxalmente para o frio e sonham com um ano novo sinónimo de vida nova.

O mundo está a aquecer e a Cimeira do Clima de Paris terminou há dias. A despeito de algumas verdes desconfianças, alguns compromissos foram firmados para se travarem as mudanças climáticas. Os ganhos são incrementados e, aos poucos, aprende-se que as mudanças não acontecem de noite para o dia. Mas começa, antes que haja o degelo total, a ser a ponta do iceberg. E, com esta metáfora polar, oxalá tenham razão os eco-otimistas…

Enquanto isso, não os ricos magos (também paradoxalmente reis), mas Maria, grávida; e José, zeloso, procuram desesperadamente a estrela de Belém, alguma europa que os proteja de um mal que os bate à porta, de uma dúvida que os ameaça, de uma guerra que os põe em risco. A fome, omnipotente e omnipresente, insidiosa em tudo e em todos. A fome da dignidade, sobretudo. Afinal, desde os primórdios, a errância e a migração são marchas da e à fome, em sua diversa complexidade. Muitas vezes, retocada em geopolítica, quando não em ordem mundial. E a estrela aponta para o oeste frio que incrivelmente leva a uma deslocação improvável, contrariando as milenares regras das migrações, como a lembrar o terrível das calamidades (uma fome ulterior e inexorável da justiça, da equidade e da paz, para não dizer da animal sobrevivência) que obrigam seres humanos a deixar seu abrigo e fugir para o frio.

 

 

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A arte de escrever

[O OUVIDOR OCIDENTAL]

 

Fernando Sobral

A caligrafia é hoje um território ameaçado. Uma floresta por proteger num mundo onde a tecnologia, a rapidez e a funcionalidade, secam tudo à volta. Como se a criatividade fosse dispensável. Em 2016 os estudantes da Finlândia, considerado um “país modelo” em termos de educação, deixarão de aprender caligrafia. Essas aulas serão substituídas pelas de dactilografia nos teclados de computadores. Será o início do fim da escrita com a mão? Não deixa de ser curioso como esta forma de guilhotinar o passado, acontece no tempo hegemónico da globalização económica. Porque as primeiras manifestações conhecidas da escrita mesopotâmica e grega coincidem em algo que parece ser surpreendente: são relatórios de contabilidade sobre a troca de mercadorias. A economia digital devora agora a sua memória. Nesse tempo era mais importante que a escrita estivesse ao serviço dos negócios do que da lírica. Tal como agora, quando se julga a caligrafia um rochedo demasiado pesado para a desejada eficácia do presente. Mas nestes dias a tentação é sinistra: sabe-se o valor cultural da arte da escrita. Com isso perde-se aquilo que a escrita trazia: a ligação ao sagrado, ao mistério, à adivinhação. E, claro, à beleza, como as escritas chinesa ou islâmica se empenharam em mostrar.

Na China era tão importante a forma como se escrevia como aquilo que se dizia através dessa arte. Dominar a escrita era uma forma de poder, de autoridade política. As qualidades da escrita chinesa ficaram definidas durante a dinastia Han, quando os materiais essenciais para a transformação da caligrafia em arte suprema, passaram a existir em conjunto: pincel, tinta e papel. Na China a caligrafia tornou-se uma arte, mais madura, elegante e eloquente do que a pintura. A caligrafia chinesa elogia a harmonia e vibra com os seus ritmos internos. Contemplá-la é como percorrer o tempo. É arte pura e viajou para fora do círculo utilitário a que o Ocidente a devotou. Da mesma forma a caligrafia islâmica difere da ocidental porque, se esta se tornou um meio utilitário da comunicação entre os homens, aquela transformou-se num meio sagrado de comunicação entre Deus e os homens. E foi assim que a caligrafia islâmica se tornou o elemento dominante da decoração arquitectónica, da cerâmica, do vidro ou dos tecidos. No fundo a caligrafia foi o meio perfeito da comunicação pessoal. No Ocidente nunca a tornámos arte. Nas outras civilizações ela evoluiu para um estatuto diferente. E isso tornou o Ocidente mais pobre.

Não contente com a uniformização de gostos e de culturas, a sociedade global está a tentar extinguir o território livre dos que escrevem com a mão na vida pública. Um dia destes esse espaço de liberdade estará restringido aos médicos e às suas receitas e aos que trazem o grafitti para o terreno público. Todos iguais, até na escrita, é o caminho frustrante da sociedade “low-cost” globalizada, que já começou a destruir a arte da escrita no Ocidente e que, por este caminho, tornará a caligrafia oriental ou islâmica numa reserva protegida. Embora haja diferenças: a escrita, na China, na Índia ou no Japão, é tão rica que o teclado é inadequado para a representar. Embora isso possa vir a levar ao afunilamento da riqueza da sua caligrafia, eliminando o que se julga pouco eficaz e dispensável. No Ocidente essa tendência tem-se acelerado. As cartas de amor já são, há muito, uma memória de museu: hoje foram substituídas por “sms” curtos e básicos. As canetas tornaram-se quase objectos de distinção. Se a pena foi, em tempos, mais poderosa do que a espada, o pincel elevou a escrita à montanha mais selecta da arte. Mas agora todo esse elogio à beleza está em perigo, frente à economia selvagem da uniformização.

 

 

 

 

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Formidable

[Poeira das Estrelas]

Filinto Elísio

Pirates of the Caribbean: The Curse of the Black Pearl

Não para falar do filme de Gore Verbinski, realizado em 2003. Falo do achado por estes dias. O navio espanhol San José, localizado ao largo de Cartagena (Colômbia) e naufragado, no século XVIII, com um tesouro multimilionário a bordo, foi descoberto. As moedas de ouro e de prata, bem como as pedras preciosas, que fazem esse património subaquático (entretanto, o navio transportava tesouros do Peru para Espanha), pertencem a qual país? Do filme, seguiram-se a série com Dead Man’s Chest (2006), At World’s End (2007) e On Stranger Tides (2011). Poderia algo assim ter sido descoberto nos mares de Cabo Verde? Ou nos mares de Macau? Quo vadis?

O Charme Discreto

Ando com mania de cinema? Às vezes, são livros, outras vezes, músicas, quando não filmes. Só que, palavra, não estava a pensar no Le Charme discret de la Bourgeoisie, de Luis Buñuel. Naturalmente que a “Reaçonaria” nos quer em guerra suja e no pantanal. Todavia, Che recomendara “sin perder la ternura”. Que política nenhuma, sobretudo político algum, nos imponha retrocesso cívico, nem rendição à maledicência. Encarar a política de forma oblíqua carece de interesse e de “mise en perspective”. Não proferir por norma ofensa ao bom nome e à reputação de outrem, seja pessoa pública ou não. Impõe-se o espírito crítico, “mais sans perdre le charme”.

Les uns et les autres

Ou crónica da vitória anunciada, que não escrita por Claude Lelouch. O desfecho da primeira volta das eleições regionais francesas não constitui novidade. De repente, o país da liberdade, igualdade, fraternidade, se vê às voltas com o espectro da extrema-direita no poder. Fartas são as análises que atribuem a deriva do eleitorado francês a um fenómeno reativo, antes social e agora político. Entrementes, na Argentina, Brasil e Venezuela, as coisas estão turvas. Em verdade, na Venezuela, estão cambiadas. Será que a onda que indicia a Síndrome de Estocolmo invadirá a nossa praia? A alegoria da caverna de Platão nos sugere questionar o conhecimento e, por consequência, a verdade que, para não morrer, terá de ser consentida sempre relativa e plural. Nada se mostra previsível nestes tempos de mudanças climáticas.

Os Atentados

Os atentados, um pouco por todo o lado, confirmam que não há paz e segurança. A guerra, assim assimétrica, deslocalizada e sem periodicidade, impõe novas lógicas e levanta questionamentos sobre onde e como está (ou é) o inimigo. E a utilização eficaz das novas tecnologias (de informar, comunicar e matar), a contrastar o discurso retrógrado e teocrático, induz-nos ao caos mental e ao desafio do nosso pensar cartesiano. Os termos de referência deste novo conflito, que só se assemelha aos anteriores pela barbárie (não existindo, no tempo e no espaço, alguma guerra santa), continuam enigmáticos. O primeiro exercício será de compreensão do fenómeno, posto que a alienação nunca venceu guerra alguma e muito menos conquistou paz duradoura. Sabemos que as tempestades nos desertos e as primaveras árabes foram improducentes. Ou não foram? Lenhas na fogueira. A par do direito à legítima defesa (e, em muitos casos, à consequente punição), o dever da compreensão.

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Preparai… O caminho do Senhor

[Olhar ao Redor]

Luís Sequeira

«No décimo quinto ano do reinado do imperador Tibério, quando Pôncio Pilatos era governador da Judeia, Herodes tetrarca da Galileia, seu irmão Filipe tetrarca da região da Itureia e Traconítide e Lisânias tetrarca de Abilene, no pontificado de Anás e Caifás, foi dirigida a palavra de Deus a João, filho de Zacarias, no deserto…»

Assim começa o Evangelho do Segundo Domingo de Advento. Esta descrição, aparentemente, parece não passar de uma informação de enquadramento da figura de João Baptista. No entanto, na sua simplicidade e nudez, abre-nos as portas para a compreensão do mistério da Encarnação de Jesus Cristo entre os homens. Revela o lado humano daquilo que é uma manifestação primariamente divina. Por outras palavras, Jesus Cristo, o Filho de Deus – pela descida a esta terra que é a nossa – assumiu a natureza humana em tudo igual a nós, excepto o pecado.

Ele, o Filho de Deus, na sua humanidade, vai viver tudo aquilo que é próprio de um povo que lhe dá a raça, a história e a cultura e que se estabeleceu em Israel e não noutro canto do globo terrestre. Não deixa de ser judeu, nascido de Maria e José, e, muito concretamente, na cidadezinha de Belém . E chamar-se-á Jesus.

Mas, a essa dimensão social, histórica e cultural a que o texto sobre São João Baptista nos chama a atenção, junta-se uma outra, porventura, bem mais radical na compreensão da Encarnação de Jesus Cristo. O Senhor Jesus encarna, também e verdadeiramente, em Si próprio a dimensão pessoal de cada um de nós, ‘ser humano’, homem ou mulher, no seu processo de desenvolvimento, desde a concepção até à morte. Ele passou, tal como nós passamos ou passaremos, pela infância, adolescência, juventude, tempo de formação, maturidade e pela manifestação plena das suas capacidades no serviço dos outros, na missão. Ao fazê-lo – ao identificar-se com os diversos estádios do nosso desenvolvimento humano – ofereceu-nos a certeza de que seremos compreendidos e amados nos seus momentos críticos. Ele quebrou os grilhões da nossa fragilidade. Na verdade dos factos e acontecimentos abre-nos sempre um caminho de liberdade.

Por fim, há ainda aquela outra dimensão que, timidamente, ouso mencionar por causa da sua grandeza e profundidade de conteúdo e que só, por Deus, podemos entender um pouco. Refiro-me à dimensão espiritual e mística da nossa existência. O Senhor Jesus, por nós, igualmente experimentou “o mistério da cruz”, o mistério do sofrimento, da angústia e da morte que todos nós, humanos, somos chamados a enfrentar no decorrer da nossa existência. As ‘crises´ com as suas tristezas, vazios e mortes são inevitáveis. Das desconfianças, oposições e perseguições e tentativas de destruição não nos escapamos. Mas Ele, o Senhor poderoso, estará sempre connosco, em toda e qualquer circunstância da nossa vida terrena. Ele, o Cristo, enviado por Deus, na sua própria carne, experimentou a imperfeição e a fraqueza humanas, elas consequências do pecado. Certo e seguro, Ele o inocente, o perfeito, o santo de Deus libertar-nos-á de todo o Mal. A este propósito, recordemos S.Paulo que escreve de maneira que só ele é capaz: «Ele, apesar de sua condição divina, não fez alarde de ser igual a Deus, mas se esvaziou de si e tomou a condição de escravo, fazendo-se semelhante aos homens. E mostrando-se em figura humana, humilhou-se, tornou-se obediente até à morte, morte de cruz. Por isso Deus o exaltou no céu, na terra e no abismo. Jesus Cristo é o Senhor.»

O Senhor, pelo grande amor que nos tem, encarnou a história humana, a natureza humana e o coração humano. Percebemos ainda, pelo mesmo texto sagrado, que Ele também fala, pessoalmente, com cada um de nós: «foi dirigida a palavra de Deus a João, filho de Zacarias, no deserto». Convida a todos a segui-Lo.

Mas quem O quer seguir ?

Perante a história da Igreja e, muito particularmente, da Igreja da China, a Diocese de Macau foi considerada “o farol” da Cristandade no Oriente, e chamada “a mãe” de tantas e tantas dioceses, espalhadas pelo continente asiático. O facto desafia, primeiramente, a nossa consciência “histórica”, é certo. Creio, no entanto, que seguir ou não seguir a Cristo e ser seu testemunha no mundo se deve colocar a um nível bastante mais pessoal. O assunto deve ser abordado ao nível da nossa própria consciência, da nossa história íntima. E neste sentido, caminhar até ao fundo de nós mesmos é fundamental. Sem “o caminho interior” não só não nos conhecemos a nós mesmos naquilo que temos de mais verdadeiro, mais belo e mais único e original como não vislumbramos as riquezas infinitas da verdade, do amor, da beleza e da santidade de Deus.

Eis a razão porque João Baptista clama vigorosamente:«Preparai o caminho do Senhor».

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Meia dúzia de razões para permanecer atento

Marco Carvalho

A melhor maneira de celebrar o passado é honrar o futuro. Desde que foi pela primeira vez publicado, a 3 de Dezembro de 1991, o PONTO FINAL, mudou, como mudou também e de forma inequívoca, a Macau que lhe conforma a existência. O processo de mudança – social, económica e política – está longe de se configurar como uma tendência com fim anunciado. Pelo contrário. Dezasseis anos após a transferência de soberania entre Portugal e a República Popular da China, o zeitgeist político e o devir histórico de Macau assumem novas linguagens sobre as quais se alicerçam (ou escondem, consoante os interesses das forças e pulsões em acção) os desafios com que Macau se irá edificar e re-inventar, quem sabe por mais do que uma vez, até 2049. Ao PONTO FINAL, e de uma forma mais lata ao jornalismo em língua portuguesa que se faz no território, cabe a responsabilidade de olhar, de forma crítica, para os desafios que se colocam à RAEM e às suas gentes. Eis alguns dos mais prementes:

  1. A integração: Depois de ter dado carta branca à circulação de carros de Macau na ilha da Montanha, o Governo do Continente tem agora em mãos a análise de uma proposta que poderá conduzir à desburocratização do trânsito de pessoas nas fronteiras do território. O que à vista grossa se prefigura como uma boa ideia (Quem não gosta que lhe simplifiquem a vida?) esconde um arrátel de dúvidas e de interrogações de cariz jurídico que se revestem de uma importância essencial e a que importa dar resposta. No processo “simplex” de travessia de fronteiras, onde a análise do passaporte só será conduzida por uma ocasião, quem prevarique sob que ordenamento jurídico será julgado? De boas intenções, diz-se, está o inferno cheio e o silêncio dos agentes de Direito sobre a matéria é ensurdecedor.
  2. A saúde: As maiores evidências são, por vezes, as mais difíceis de vislumbrar. Há três anos, a agência Reuters causou comoção dentro e fora de portas por se ter lembrado de notar e de denunciar o óbvio. Na altura – antes ainda destes nossos negros dias do recuo das receitas – Macau tinha 36 casinos e um único hospital. Três anos depois, o número de empreendimentos de jogo cresceu qualquer coisita e o São Januário, vetusto e cronicamente vilipendiado, continua exemplar único, num território que – a julgar pelos valores das reservas financeiras de que dispõe – poderia oferecer os melhores serviços de saúde do mundo. Quem vive em Macau merece melhor. Melhor do que uma administração que se empenha mais em desmascarar notícias verdadeiras de jornais do que em garantir que uma infra-estrutura absolutamente essencial esteja concluída o mais brevemente possível.
  3. Os transportes: Havendo decência, quem – de uma forma ou de outra – está ou esteve envolvido nas obras do metro, devia ter pudor ou diligência suficientes para pregar os olhos no chão sempre que se fala da matéria. A empreitada já não é sequer um descalabro. É como que um ente maligno que o Governo carrega onerosamente aos ombros e o vai enterrando progressivamente num lodaçal de impotência. Indirectamente – e porque o projecto iria supostamente resolver a questão da mobilidade no território – o metro é responsável pelo laxismo a que foi votado o sistema de transportes públicos de Macau, dos táxi-carteiristas aos autocarros que circulam mal e a más horas. No fim é o ambiente e a qualidade de vida de quem cá reside que sofrem: Quem se predispõe a abrir mão de carro próprio quando a alternativa é o que bem se conhece?
  4. O ensino: Uma escola ou universidade que não ensina a pensar, que não fomenta o pensamento crítico e que não se prefigura a si mesma como um agente de mudança – seja social, seja política, seja cívica – dificilmente levará a bom porto a missão de preparar as novas gerações para um futuro que se prefigura cada vez mais exigente e passa ao lado do que deveria ser a sua principal preocupação: educar. Desde que se consumou a mudança de instalações da Universidade de Macau para a ilha da Montanha que se deixou de perceber que tipo de interesses serve verdadeiramente a maior das instituições de ensino superior do território. O caso do suposto desinvestimento no ensino da língua portuguesa, noticiado neste jornal, é o exemplo acabado de que a Universidade de Macau – à revelia das próprias indicações emanadas por Pequim – deixou de pertencer a Macau. Coloque-se um fim à hipocrisia. Se não formos necessariamente mais felizes, não andaremos seguramente tão incomodados.
  5. A economia: Ao fim de mais de uma década de dinheiro a jorros e de resultados de arromba, eis que os economistas se fazem finalmente necessários, ainda que de forma moderada. Tivesse a Grécia as dores de crescimento de que padece Macau e o Syriza, porventura, não teria sido eleito. Apesar de real, o desgaste económico é cómodo e deixa margem de manobra para um planeamento confortável do futuro. Para tal, o Governo tem, antes de mais, de substituir o chavão da diversificação por medidas concretas, quem sabe apostando naquilo que verdadeiramente torna Macau uma cidade diferente dos demais burgos da China. Outro passo essencial: livrar-se dos grilhões do mercado, o bicho papão – sem conduta, nem moral – que nos aprisiona a todos. Se é verdade que o mercado não tem que se deixar orientar pelos desígnios da moralidade, não deixa também de ser claro que o Executivo tem responsabilidades para com a população que governa. Uma delas é ser justo.
  6. A democracia: Porque não há verdadeiramente justiça sem assunção de responsabilidades e o segundo sistema murcha e fenece sempre que se diz que o sufrágio universal não nos serve a todos.
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Reconstruir os momentos da cidade através da escrita

Joe Tang, autor e dramaturgo*

Acredito que os escritores podem ser, até a um determinado ponto, vistos como mágicos porque reconstroem um mundo nas mentes dos leitores através dos seus trabalhos. Seja esse mundo um beco, um país ou mesmo um momento histórico.
Através das suas canetas, os escritores conseguem congelar o tempo, o espaço, homens e objectos e dotá-los de carne e sangue, vida e sentido, assim como os podem preservar na imensidão da História. Recentemente, debateu-se o Hotel Estoril e o que me suscita a curiosidade no debate é: que histórias aconteceram naquele edifício? Há algumas histórias na literatura local sobre aquele edifício?
Os momentos mais marcantes na minha memória estão relacionados com um célebre combate de artes marciais entre Wu Kung-i e Chen Ke-fu, disputado na Piscina do Estoril a 17 de Janeiro de 1954. A luta tornou-se lendária porque terminou sem um vencedor ou um vencido, nem mesmo um empate. E, mais importante, o evento espoletou uma onda de criações relacionadas com o kung-fu no mundo literário chinês que se prolongaram por mais de meio século.
Há alguns dias, o colunista Tai A escreveu o artigo 誰高興拆掉愛都?

(que se pode traduzir de forma livre como: Quem se sente feliz por demolir o Estoril, que foi publicado no Macao Daily a 6 de Agosto de 2015) recordando que a unidade hoteleira apareceu nos filmes de Hong Kong durante as décadas de 50 e 60: “O Hotel Estoril apareceu no filme Eight Murderers enquanto o Ching Ming Festival (1962) deu destaque à boate Estoril…”
Esta sequência de memórias não só me fascina, como me faz lembrar da colecção The Magician on the Skywalk (Taiwan Summer Press 2012), do escritor de Taiwan, Wu Mingyi. A colecção retrata as vidas das pessoas que viveram no Zhonghua Mall [complexo de oito blocos de edifícios que compunham um destino popular de compras], em tempos um ex-líbris de Taipé e que foi demolido há mais de duas décadas. O entrelaçado de dezenas de histórias nesta colecção reconstrói, na imaginação dos leitores, o centro comercial já desaparecido.
O trabalho mais marcante desta colecção é “Liou Guang Sih Shuei “ (tradução não oficial: O Tempo é Como um Rio) sobre um morador chamado A-Ka que não tinha um desempenho académico brilhante como estudante, mas que era muito bom nos trabalhos manuais. Já em adulto, ele torna-se técnico na Industrial Light & Magic, fundada por George Lucas. Mais tarde, A-Ka regressou a Taiwan e tornou-se freelancer, aceitando encomendas de várias empresas e preparando modelos de diferentes objectos. No desenrolar da história, o narrador foi um dia convidado a visitar a viúva de A-Ka na casa em que moravam para a ajudar a organizar os objectos que ele tinha deixado: um deles era a miniatura do Guanghua Market que A-Ka tinha feito. A cena mais notável dá-se quando o narrador entra no quarto onde está a miniatura. A mulher de A-Ka desliga as luzes do quarto: “… Todas as luzes do Mercado podiam ser ligadas e, depois de acesas, o mercado parecia cheio de vida outra vez. Fiquei surpreendido pela emoção o que isso me causou. Uma luz de néon no topo do edifício estava a piscar da mesma forma como acontecia há 30 anos.”
Na história ficcional, A-Ka não reconstrói apenas o mercado, como também as memórias de Guanghua. Às vezes não consigo deixar de pensar em todos aqueles que trabalham duramente para escrever sobre Macau e que estão, na realidade, a fazer exactamente o mesmo que fez A-Ka.

*Ponto Final/Macau Closer

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