As mulheres que sobram

Com os meus botões

Lou Shuo

Se apanhar o metro na zona de Haidian ou Wudaokou em Pequim, bairros onde se localizam os melhores institutos de ensino superior da China, curiosamente, é comum ver-se os meninos “dando aulas” sobre dicas de namoro às meninas ao seu lado. Essas conversas nas carruagens de metro entre os amigos em Pequim são como a poluição no ar nessa cidade – se sentem diariamente.

A crise de procurar o grande parceiro da vida, para a maioria das mulheres chinesas com idades superiores a 25 anos, vem da pressão da família. Uma palavra foi inventada para definir esse grupo de solteiras, “Sheng Nu”, cujo significado indica as mulheres que sobram na sociedade moderna.

Para evitar ao máximo a possibilidade de ter uma “Sheng Nu” em casa, os pais chineses fazem tudo para arranjar um marido futuro ideal para as suas filhas. Os namoros arranjados de hoje em dia começam por trocas de contas do Wechat. Os pais motivam as suas filhas para que conversem com os rapazes “bem seleccionados” de fonte confiável que passa a “censura familiar”.

Mas porque é que os pais chineses ficam tão em pânico com o estado civil das suas filhas? Está relacionado com a concorrência social? Ou é apenas outro indicador da persistência de valores da família tradicional da China?

É um pouco de tudo. Segundo alguns estudos da área da sociologia, a maioria desses pais, de facto, não possui um nível de educação relativamente alto, e as suas condições financeiras também não permitem muito optimismo. A sensação de insegura em relação ao futuro faz com que as filhas se tornem vítimas de casamentos apressados.

Também vale a pena pensar um pouco sobre as razões da dificuldade em namorar para as chinesas, que me parecem um pouco irónicas neste caso. Como diz a minha prima de 29 anos: “não sei como namorar, pois nunca aprendi”.

Quem mais sofre as preocupações familiares do namoro, em princípio, é a geração pós-anos 1980, crescida sob a política do filho único. Essa geração, de alguma maneira, testemunha a enorme transformação nacional, aqueles anos em que a China acelerava o seu ritmo de desenvolvimento para não se atrasar. Enquanto a sociedade passa a ser modernizada, a educação familiar ainda segue as regras antigas, e regras contraditórias.

“Não podes sair ou trocar mensagens com os rapazes da escola” é uma ordem comum dos pais e dos professores dada às meninas com idades de entre 16 anos e 19 anos. O foco da vida para os jovens chineses é só estudar, é entrar numa boa universidade. A atracção natural entre as duas pessoas, infelizmente, é condenada como algo proibido e castigada na mente de muitos chineses ao longo do seu processo de crescimento. A aprendizagem da relação interpessoal é uma matéria reprovada para a maioria dos que fazem parte dessa geração.

Penso que “as mulheres que sobram” merecem mais entendimento e respeitos dos pais. O encontro com a outra metade na vida às vezes pode ser tão simples como uma espécie de instinto, ou tão difícil quanto o tornam o stress da sociedade e da família.

Standard

Ainda a propósito da identidade

Dinâmicas e contextos da pós-transição

Carlos Piteira*

Tendo sido recentemente questionado acerca da questão da manutenção (ou não) de uma comunidade macaense num futuro próximo da RAEM, não resisto à tentação de voltar ao tema, agora num formato diferente onde as ideias podem fluir duma forma mais personalizada, o mesmo é dizer que continuamos a equacionar a questão da identidade e da necessidade de reclamá-la no contexto da RAEM, ou seja, qual a dinâmica deste grupo no contexto da pós-transição.

Como é evidente é um tema que, para além do interesse que me suscita do ponto de vista pessoal e afetivo, também se insere num projeto, mais global, a que estou associado sobre as reformulações identitárias em contextos de mudança sob a tutela do Instituto do Oriente e como tal gostaria também de deixar algumas notas soltas e de reflexão sem qualquer intuito conclusivo.

Ainda a propósito da identidade, alguém num dos meus vários encontros aí em terras de Macau me perguntava com alguma ironia se (nós) os macaenses ainda estávamos à volta da questão da identidade, como se ela já não fosse um elemento necessário e distintivo da comunidade.

Bem, ao que me parece qualquer indivíduo ou grupo que perca (ou deixe extinguir) a sua identidade, perde ao fim e ao cabo, o seu referencial, deixa de estar inserido num coletivo que o acolhe e passa a procurar as suas âncoras noutros grupos que o possam admitir ou incluir, pelo que a identidade é a base da forma eletiva de estar em comunidade, sem ela não existe a pertença.

Claro está que as questões que se colocam à comunidade macaense, hoje, não são por certo as mesmas que se colocavam no período anterior à transição, pelo que as matérias não são as mesmas, nem sequer é tão importante saber quem é e quem não é macaense, a ambiguidade é a nota dominante no atual contexto, a reclamação e a afirmação da mesma, por sua vez, já não o é tanto, resistir é talvez a palavra de ordem.

A este propósito gostaria de deixar algumas premissas de reflexão e de partilha sobre o tema, nomeadamente, na forma de recolocar a questão identitária do macaense no atual contexto da RAEM.

O conceito de identidade aplicada ao grupo de macaenses é entendido principalmente na sua vertente de identidade «subjetiva» que pode ou não coincidir com a chamada identidade «objetiva» produzida pelos elementos fixados pelo poder ou do Estado. Desta forma são relevantes para este efeito as considerações que se prendem com a posição do sujeito no grupo, a sua genealogia familiar, a sua história de vida, a sua biografia, as alianças familiares e grupais que vai tecendo e os seus ideais cívicos e sociais.

Assim, consideramos a identidade «subjetiva» como sendo um processo que se estabelece em função do jogo evolutivo de identificações e negações, de encontros e desencontros entre identidades autoatribuídas e as identidades hétero-atribuídas, em contextos relacionais de dimensão multiétnica.

Por esta razão consideramos as histórias de vida, como a informação privilegiada para a apreensão mais adequada, quer para captar a essência, quer para saber como cada indivíduo constrói a sua própria estrutura identitária e a sua estratégia adaptativa.

É pois de extrema importância perceber as representações que em cada momento refletem os referenciais de construção que estão subjacentes a uma identidade. Serão estes que constituirão os alicerces sobre os quais a representação identitária é construída, permitindo perceber de que forma a alteração de um dos componentes pode afetar o conjunto.

No que respeita à identidade do macaense, consideramos que estamos perante um fenómeno de identidade subjetiva e coletiva onde o “Nós” existe por oposição ao “Eles”, os “Outros”, os não macaenses.

Consideramos também que a ideia de nacionalidade é restritiva pois não permite abarcar toda a diversidade de situações que podem ser encontradas hoje em dia nas sociedades modernas. Assim o instrumento conceptual que mais se adequa aos nossos propósitos é o de etnicidade revisto na sua aplicabilidade atual pois permite abarcar toda a diversidade que caracteriza uma comunidade como a macaense, onde ao longo dos tempos confluíram diversas raças, diversas culturas e diversas sensibilidades.

Esta abordagem que emerge de um processo histórico é a que consideramos como sendo aquela que pode dar melhor conta da dinâmica de construção e afirmação de uma identidade e da edificação de uma comunidade como uma coisa própria de um grupo. Trata-se de um sentimento intrínseco de pertença que faz parte de todo o ser humano e que está presente em todas as relações que se estabelecem entre o indivíduo e o meio que o rodeia.

A intensidade com que esta identidade «subjetiva» está enraizada no indivíduo é determinante para avaliar a forma como este se integra no todo que é a sociedade, seja esta a que lhe deu origem, seja outra qualquer em que se irá integrar, ambas sempre, alvo de mudanças.

Trata-se de um processo dinâmico de construção identitária cuja evolução depende em grande parte de factos que lhe são externos mas que nela se refletem. Tal parece traduzir, em grande parte, a realidade que caracteriza hoje a identidade macaense.

Por outro lado, consideramos a também como, de uma forma sintética e ampliada, em modelo transfronteiriço, já que o processo aplica-se também à diáspora que mantém relações à distância e forja essa ligação em cada momento que a exalta, ligando assim de forma mais ou menos regular as diferentes comunidades geograficamente dispersas pelo mundo, as redes transnacionais, (ou seja as diásporas), serão pois, grosso modo, também o sustentáculo das relações mais ou menos regulares que emergem na edificação do sentimento de pertença, logo na forma de estar ser macaense.

E, por aqui me fico com a minha consciência um pouco mais tranquila e pacificada. Talvez um dia volte ao tema. Até lá irei resistindo.

*Investigador do Instituto do Oriente

Docente do Instituto Superior de Ciências Socias e Politicas / Universidade de Lisboa

O autor segue o novo acordo ortográfico da língua portuguesa.

Standard

Os sapatos dos outros

Sandra Lobo Pimentel

O programa norueguês “SweatShop: Dead Cheap Fashion” propôs-se mostrar a dura realidade das fábricas de têxteis que proliferam no sudeste asiático, mas de uma perspectiva ousada e absolutamente certeira: colocando três bloggers de moda a trabalhar nesses locais nas mesmas condições que os demais.

Os primeiros episódios mostram a dura realidade de viver com tão pouco para comprar comida, para quem gastava cem vezes mais só para comprar roupas e acessórios de moda das marcas mais na berra. O soco no estômago para aqueles três críticos de moda deve ser o mesmo que têm os que recebem produtos feitos em países como o Vietname ou o Cambodja com etiquetas ou papéis escondidos onde é pedida ajuda.

E será suficiente desencadear esta experiência e mostrá-la ao mundo?

Não vale a pena esconder que somos todos protagonistas desta história miserável. Mesmo quando, como no meu caso, se olha para as etiquetas na procura da origem do fabrico, com a vergonha que me assoma, sempre, por pensar que talvez tenham sido até as mãos de uma criança as responsáveis pela existência de uma vaidade, tantas vezes mascarada de necessidade.

Quem é que pega no seu iPhone diariamente e pára para pensar a forma como foi fabricado aqui ao lado? Quem é que consegue, nem que por instantes, colocar-se nos sapatos dos outros, dos que, às vezes, nem sapatos têm?

Vivemos, também, numa terra de desigualdades, onde o trabalho não é pago condignamente para uma larga franja de população, aqui apelidada de não residente.

Os que pagam miseravelmente por serviços da mais variada espécie, tantas vezes, em modelo 24 horas por dia, parecem importar-se pouco com a exploração de que são protagonistas. Quem cuida da sua alimentação, do seu bem-estar e dos seus filhos, merece assim tão pouco?

Já para não falar na forma como cidadãs das Filipinas e da Indonésia são tratadas em Macau. Foi das primeiras coisas que me abalaram ao tomar contacto com o dia-a-dia das ruas e dos transportes públicos. Até crianças o fazem, provavelmente, a exemplo dos progenitores.

E continuamos assim a viver nesta dicotomia deplorável. Escondendo a cara para não ver, espero eu. Porque nem imagino que alguém consiga olhar para isto de frente, sem pestanejar.

Não tomemos o todo pela parte. Virão logo os rigorosos relatar casos de mau desempenho laboral, aproveitamento e o diabo a quatro. Mas estas linhas não são sobre isso. São sobre a forma como vivemos ligados por uma peça de roupa aos dramas dos outros sem sequer pararmos para pensar nisso. São sobre as patacas que julgamos poupar à custa da maior das indignidades: a de sermos uns exploradores. Somos todos.

Standard

Cuidado com o artigo 23!

Jason Chao

Activista do grupo Consciência de Macau

“As suas liberdades e direitos foram afectados desde que a lei relativa à defesa da segurança do Estado foi promulgada nos termos do artigo 23 da Lei Básica?”. Apesar de a resposta variar de pessoa para pessoa, deparo-me muitas vezes com esta questão levantada por jornalistas e colegas activistas de Hong Kong. É um facto que, ao mesmo tempo que o abuso de poder por parte do Governo tem aumentado nos últimos anos ao arrepio da lei, as nossas liberdades civis e a nossa liberdade de expressão têm-se vindo a deteriorar. No entanto, baseado na minha observação, os dois aspectos não têm uma relação de causalidade com o artigo 23 (que se refere, tecnicamente falando, à “Lei relativa à defesa da segurança do Estado” ao abrigo do artigo 23 da Lei Básica, do início de 2009).

À excepção das palavras “Hong Kong” e “Macau”, o articulado do artigo 23 na Lei Básica das duas regiões administrativas especiais é idêntico.

“A Região Administrativa Especial de Macau/Hong Kong deve produzir, por si própria, leis que proíbam qualquer acto de traição à Pátria, de secessão, de sedição, de subversão contra o Governo Popular Central e de subtracção de segredos do Estado, leis que proíbam organizações ou associações políticas estrangeiras de exercerem actividades políticas na Região Administrativa Especial de Macau, e leis que proíbam organizações ou associações políticas da Região de estabelecerem laços com organizações ou associações políticas estrangeiras.”

As “propostas para a implementação do artigo 23” introduzidas pela secretária para a Segurança de Hong Kong, Regina Ip, em 2002, têm sido descritas inúmeras vezes como “o espírito do mal” por conferirem às autoridades o poder de levar a cabo buscas às residências sem mandato judicial, de fazerem detenções sem a apresentação de provas sólidas e de poderem ser apresentar queixas contra os cidadãos ao abrigo do abrangente crime de “sedição”, por “posse de artigos e documentos que possam ser considerados como sedição” e por “falta cometida por não reportar um caso”. Todas elas sem respeito aos direitos humanos.

Pelo contrário, a lei relativa à defesa da segurança do Estado, introduzida por Florinda Chan, em 2008, pode ser descrita como “um tigre sem dentes”. Actos de traição, secessão, sedição e subversão foram reduzidos de forma dramática para aqueles cometidos através de violência ou através da prática de outros meios ilícitos graves na lei. Os chamados “meios ilícitos graves” foram elaborados a partir de uma lista de crimes pré-estabelecidos, tais como acto contra a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas, actos que destruam os meios de transporte ou vias de comunicação ou outras infra-estruturas e o acto de provocar incêndio.

Na realidade, a maior parte dos actos abrangidos pela lei relativa à defesa da segurança do Estado, nomeadamente, o incitamento à alteração violenta do sistema estabelecido, coacção contra órgãos constitucionais ou ligações com o exterior. Estes crimes previstos no Código Penal têm definições menos estreitas, portanto, podem ser usados de forma mais flexível pelas autoridades no contexto da lei relativa à defesa da segurança do Estado. Esta lei não foi promulgada por necessidade, mas porque era preciso criar uma montra política para os cidadãos de Hong Kong.

Claro que a definição de “segredos de Estado” bem como “a subtracção de segredo de Estado” pode configurar um daqueles casos em que “o diabo está nos detalhes”. A definição de “segredos de Estado” estabelecida pelo governo chinês é, muitas vezes, surpreendente. Do que vemos pela imprensa, aprendemos que os dados relativos ao VIH, sondagens públicas, o grau de popularidade dos governantes e as conversas entre os líderes de estados podem ser “segredos de Estado” para o governo chinês. Florinda Chan, por seu lado, recusou-se a introduzir a defesa do interesse público na lei.

A repressão do referendo civil e a detenção injustificada de jornalistas dos novos media são indicadores do abuso de poder pelo Governo de Macau e mostram como até um determinado ponto os “não-crimes” (actividades que não são contempladas na lei) podem ser catalogados como crime. Encorajo os cidadãos de Hong Kong a não tomarem Macau como exemplo na implementação do artigo 23 porque, apesar da existência da lei relativa à defesa da segurança do Estado a “cooperação entre os três poderes” permite que o abuso de poder por parte do Governo de Macau continua sem escrutínio.

Além disto, o artigo 23 tem por objectivo prevenir uma vasta quantidade de actividades, que incluem o estabelecimento de ligações entre “as organizações ou associações políticas de Macau” com “organizações ou associações políticas estrangeiras”. Se levassemos à letra o conteúdo desta disposição, eu já deveria ter sido preso por ter respondido a emails de diplomatas estrangeiros, por ter sido convidado por instituições europeias e por ter sido observador de processos eleitorais no estrangeiro. Na lei relativa à defesa da segurança do Estado o estabelecimento de ligações está confinado à prática de actos contra a segurança do Estado. Tenho de admitir que o seu articulado deste mesmo artigo se desvia do que o artigo 23 procurava proibir originalmente.

Dito de forma simples, a lei relativa à defesa da segurança do Estado, de 2009, não está em total conformidade como artigo 23 da Lei Básica. Em outras palavras, há espaço para que o Governo de Macau expanda a definição de crime, em particular no que diz respeito à “sedição” e “ao estabelecimento de ligações”.

Neste momento, o crime de sedição requer que exista um incitamento directo e declarado aos actos de traição, secessão e subversão através da violência e através de meios ilícitos graves. Se tirarmos a parte “por meio de violência ou mediante a prática de outros meios ilícitos” da equação, esta parece mais próxima da interpretação estrita do artigo 23.

Por exemplo, se alguém advogar o re-estabelecimento do estado da Manchúria no nordeste da China através de meios pacíficos (por exemplo, um referendo sobre a sua independência) este não seria um crime em Macau agora, mas procuraria ser banido segundo o artigo 23. Outro exemplo são as minhas reuniões com activistas não locais para a troca de experiências de activismo pacífico. Elas não são consideradas um crime agora em Macau, mas por respeito ao artigo 23 procura-se bani-las também.

Em nome da “obrigação constitucional”, o Governo de Macau pode explorar todo o potencial do artigo 23 se apresentar uma proposta que retire a disposição “por meio de violência ou mediante a prática de outros meios ilícitos” como um pré-requisito para a acusação.

Apesar de não existirem casos conhecidos da aplicação da lei relativa à defesa da segurança do Estado, devemos estar alerta para o espírito do mal que representa o artigo 23 a assombrar os céus de Macau e Hong Kong.

Standard

A dívida de Macau

Maria Caetano

Cada vez mais, uma parte significativa da população local – 170.346 pessoas que vivem e trabalham em Macau – tem vindo a adquirir, na perspectiva de muitos cidadãos com BIR, o estatuto de uma ‘commodity’ a preços de mercado. Porque a legislação assim os enquadra, porque o desespero da realidade dos países do sudeste asiático vizinho assim sustenta, e porque a mentalidade local, atrozmente, se aproveita disso.

Com a complacência de todos, há seres humanos, trabalhadores, que são explorados na capacidade de execução de uma função – habitualmente árdua e longa – sem que no contraponto dela resulte para eles os valores habitualmente garantidos à maior parte da população, os residentes: rendimentos proporcionais ao esforço despendido, respeito e participação social correspondentes ao contributo dado à sociedade, e garantias de sustentabilidade para um projecto de vida.

A sociedade local exaure e retira proveito de uma parte dos recursos humanos sem retribuir com proporcionalidade, e sem admitir na sua convivência enquanto população aqueles a que continua a chamar de trabalhadores não residentes – como se de facto aqui não vivessem e se limitassem a vir a Macau executar uma tarefa mal paga e logo a seguir voltassem a casa. Porque não há concerto nem sede negocial para estas pessoas exigirem justiça na retribuição social do trabalho, chamamos-lhe exploração, que é o que é, nem mais e nem menos.

Na balança do trabalho e do seu valor, Macau acumula já uma longa dívida com os trabalhadores com estatuto de blue card. Mas, apesar da sua condição de má pagadora e ingrata, não se envergonha de tentar dar um passo mais longo e extorquir destes trabalhadores mais algumas patacas como forma de os dissuadir da utilização de serviços essenciais à manutenção e qualidade de vida: os cuidados de saúde.

A deputada Kwan Tsui Hang sugere o agravamento das taxas de saúde para os trabalhadores não-residentes. Entende que estes têm vindo a ocupar 20 por cento dos recursos de serviços de obstetrícia em Macau, quando podiam estar a ser aproveitados por pessoas “locais”. A sugestão é vil de si – mas, mais que isso, parece partir de uma mentira. Dados ainda recentemente pedidos pelo PONTO FINAL aos Serviços de Saúde indicam que apenas 7,5 por cento das utentes que chegam às salas de partos do hospital público são não residentes e que meros 0,4 por cento dos que recorrem a consultas de especialidade, entre estas obstetrícia, são não residentes.

O que mais choca ainda é que haja profissionais que juraram por Hipócrates e cujo serviço é o de atender à saúde e não a identidades definidas administrativamente venham dizer que concordam e que “só podemos partilhar quando estamos em condições de partilhar”.

O que este discurso esquece é que Macau não está a partilhar os seus recursos, mas a pagar a sua dívida para com quem nela trabalha. E que não está, infelizmente, em causa uma discriminação positiva dos residentes, mas antes uma muito negativa discriminação dos profissionais aos quais é negado o estatuto de cidadão e direitos associados.

Sabemos através das organizações informais de imigrantes de casos de pessoas que ganham 2500 patacas por mês para servir em quase permanência as famílias “locais” e que, com receio de despesas que não podem fazer, não se atrevem a ver um médico que as mandará fazer exames e receitará medicamentos. Nesses casos, um dia a doença inevitavelmente bate à porta de forma grave, porque nunca houve cuidados, e os trabalhadores doentes voltam ao país de origem impossibilitados de permanecer em Macau.

Por demagogia ou egoísmo, e porque pode faze-lo com impunidade, esta sociedade vai continuar a não pagar aquilo que deve aos seus trabalhadores “não residentes”. Enquanto cidadã admitida a esta sociedade, sinto vergonha.

Standard

Syriza: a vacina de que a Europa necessita?

Jorge Morbey *

Nos idos do PREC (Processo Revolucionário em Curso que ocorreu em Portugal entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Novembro de 1975) o Poder foi fortemente disputado. Era o papel de Portugal em África, nos territórios sob soberania portuguesa, mas também o papel de Portugal na Europa. À esquerda, pairava o espectro do Chile de Pinochet. Ao centro e à direita receava-se uma ditadura comunista apoiada pela União Soviética.

Os EUA tinham interesses estratégicos americanos importantes em Portugal e deram um cheirinho do que poderia acontecer, fundeando no Tejo, em frente do Palácio de Belém, nos inícios de 1975, o porta-aviões USS Saratoga, durante a operação Locked Gate-75 da NATO.

Henry Kissinger, Secretário de Estado da Administração Nixon, que superintendeu o golpe militar que derrubou o Presidente Salvador Allende a 11 de Setembro de 1973 e frustrou, com inusitada violência, o projecto de estabelecimento de um regime socialista democrático no Chile, preparou as partituras para o (des)concerto de Portugal com uma abertura sobre a ocupação militar americana dos Açores, com vista à manutenção da Base das Lages.

No caso de os planos americanos darem para o torto, Kissinger engendrou a tese da vacina. Dizia ele que um regime comunista em Portugal acabaria por funcionar como uma excelente vacina para proteger a Europa de semelhante desassossego.

Quarenta anos volvidos, desfeita a União Soviética e com os Estados Unidos da América a aposentarem- se de polícias do mundo, a Europa padece da doideira em que a ilegitimidade democrática e incompetência dos líderes que a têm desgovernado a lançaram.

A vitória do Syriza (extrema esquerda) nas eleições gregas de Domingo passado, a dois deputados da maioria absoluta, pode ser recebida como portadora de anticorpos que robusteçam o império dos mercados, as políticas neoliberais, e o empobrecimento dos cidadãos. Mas também pode vir a constituir um novo renascimento europeu por apontar aos eleitores o voto inovador em outros partidos que não os designados como pertencendo ao “arco da governação” que se metamorfosearam em polvos assassinos das sociedades em que se implantaram e que merecem intolerância crescente do eleitorado.

*Docente universitário

Standard

Vamos lá ter paciência

Macau tem tanto dinheiro que tinha a obrigação de ter tudo do bom e do melhor: escolas que transformem imbecis em génios, hospitais onde se curem cancros com comprimidos, transportes que nos levem de Coloane à Areia Preta em 10 minutos sem emitir um único dióxido de carbono nem outros óxidos malcheirosos. A ideia é lugar comum, mas confere ao dinheiro fácil um condão que nunca teve: o de tornar o seu proprietário em alguém que saiba o que fazer com ele.

Se Macau fosse uma pessoa, era assim uma espécie de primo Venâncio, que vendia derivados de suíno na feira de Travanca, até que lhe saiu o prémio acumulado do Euromilhões. De uma hora para a outra, um tipo que comia ao pequeno almoço sopa de cavalo cansado (daquela que se prepara com pão caseiro da semana passada embebido em tintol de garrafa com rolha de plástico) vê-se ali com uns milhões valentes. Quem acredita que este homem tem o que é preciso para se tornar um Bill Gates da administração de fortunas? A ver se adivinhamos o que vai acontecer com ele se lhe sair a sorte grande:

Hipótese A). O doutor Venâncio Aires vai investir a sua fortuna num negócio ultra-rentável, transformar em pouco tempo os seus euromilhões em eurotrilhões e a si próprio numa referência no mundo da gestão, mandar os filhos para Harvard e montar um império que irá garantir uma vida tranquila para toda a sua família durante gerações.

B). O Venâncio dos Toicinhos vai separar-se da mulher (que lhe fica com metade do prémio), comprar uma série de mansões pirosas, com cascatas e bancos Recaro no jacuzzi da sala, uma garagem cheia de Ferraris e Maseratis para os filhos atropelarem velhinhas quando saírem bêbados das discotecas com maços de loiras cintilantes, torrando o resto da fortuna em diversão e vinho verde.

C). O bom do Venâncio mete o dinheiro todo no banco, não conta nem dá nada a ninguém, deixa o dinheiro parado a render juros durante anos sem lhe tocar, a não ser quando realmente precisa, e continua a sua vida de sempre, a vender morcelas na feira e a aturar chatos a lhe pedirem dinheiro emprestado até morrer. Nessa altura, os filhos herdam a fortuna e tratam de a torrar em diversão e vinho verde.

A Macau também saiu a sorte grande e, de repente, os cofres públicos estão cheios de dinheiro que chegou fácil. Quem acha que Macau pode ser como o Venâncio A, que continue a reclamar do que está a ser mal feito. Eu, por mim, vou tentar ser amigo dos filhos do novo rico, pode ser que pingue algum do vinho verde na minha taça, enquanto houver.

Standard

O fim dos fumadores é a ameaça autoritária

Isadora Ataíde

Rousseau defendeu que a natureza do homem é boa, tende ao bem comum, por princípio. Por ser inteligente e racional, o homem é capaz do auto-governar-se em prol do bem-estar colectivo, de uma sociedade justa, que tenha como fim a felicidade individual e social.

Porém, a inteligência e a racionalidade são alcançadas através da educação, de um processo evolutivo e civilizacional, para o pensador que se tornou um ícone da modernidade europeia e da Revolução Francesa. E, alertava Rousseau, nem todos os homens trilharam o caminho que os conduz à racionalidade e às escolhas acertadas que visam o bem comum.

Daí que o Estado, embora com princípios supostamente liberais, tenha de impor-se à vontade dos homens e legislar sobre as suas vontades. O Estado e o governo, enquanto o homem não atingiu um nível de racionalidade que lhe permita as escolhas acertadas e o autogoverno, devem decidir pelos indivíduos tendo em vista o equilíbrio e o bem-estar social.

A ideia de que o Estado deve forçar os indivíduos fez de Rousseau um “inimigo da liberdade” para o filósofo Isaiah Berlim. Em síntese, o pensamento de Rousseau e a sua visão de Estado e governo estão na origem dos autoritarismos contemporâneos.

Na Alemanha do Leste e no Portugal da década de 1960, por motivos muito distintos, mas que partilham o pressuposto autoritário, a Coca-Cola era proibida. E, por isso, o Fernando Jorge bebe uma Coca-Cola sempre que pode, para saudar as liberdades.

A proibição absoluta dos espaços para fumadores enquadra-se nesta tradição autoritária. Os indivíduos são ignorantes, não sabem dos malefícios individuais e colectivos do tabaco, e, deste modo, devem ser proibidos de fumar em espaços públicos, de facto, perderam o direito a ter um espaço entre o público. Os fumadores são os criminosos do século XXI.

Embora a investigação académica partilhe julgamentos tão severos em relação ao tabaco quanto aos hambúrgueres, não ocorreu a nenhum líder iluminado que se intitule “democrático” proibir o McDonalds. E vejam os hospitais, entupidos por milhões de selvagens que ingerem quilos de comida processada e de origem duvidosa que estão a levar à falência os sistemas públicos de saúde.

E se os cigarros e os fumadores são uma ameaça social premente, que condiciona os legisladores e governantes a eliminarem-nos da vida pública, o próximo movimento das lideranças globais será proibir o beijo na boca.

O beijo na boca, que nasceu com o cinema há coisa de um século, é uma prática conservadora e de imenso risco social. Afinal, são milhares de bactérias trocadas entre duas pessoas, mas potencialmente partilhadas por muitos, em espaços públicos, sem falar de uma conduta tremendamente duvidosa, coisa que só os coelhos devem fazer.

Purgar os cigarros e os fumadores dos espaços públicos é típico dos governos autoritários. A eliminação total do tabaco é prenúncio do fim das liberdades, o próprio Rousseau concordaria que se deve temer o que está por vir. E, como diz o Fernando Jorge, “beijar na boca, fumar um cigarro e ser-se marxista, é quase um acto revolucionário nestes tempos”, ou criminoso.

Standard

O fosso

Maria Caetano

Um dos principais think-tanks norte-americanos (a Brookings Institution, na lista dos principais 50 de um país onde proliferam centros de estudos com fortes ligações a ambos os lados do Congresso dos Estados Unidos) lançou esta semana um pequeno relatório que classifica o desempenho das economias mundiais segundo a zona metropolitana em que estão inseridos. Chega à conclusão que entre 2013 e 2014, Macau foi a zona de análise com maior crescimento de riqueza distribuível, vendo o seu PIB per capita aumentado em oito por cento para um volume anual de 67.780 dólares norte-americanos (mais de 540 mil patacas) por cidadão contado estatisticamente.

Os números que nos apresentam estes estudos são sempre de interesse geral, mas raramente capazes de converter a realidade vivida pelas populações, que tendem a reagir indignadamente por uma ou duas séries de razão. Aqui, neste caso, a gente compara o PIB per capita com as nossas pequenas economias domésticas. No ano passado, e segundo os dados oficiais do território, os rendimentos das famílias tinham crescido para 41.423 patacas mensais, mas as despesas andavam em 29.177. A pergunta que fica é: para onde foram as 12.246 patacas que nos sobraram no fim do mês?

No exercício de assumir estas médias como a realidade de um cidadão médio, arriscamos duas coisas: As 12.246 patacas do fim do mês foram usadas para negociar um novo contrato de arrendamento com um senhorio que nos propõe aumentar a renda para o dobro. Pode ser também o caso de estarmos a reservá-las à espera de formar um bolo de entrada para o pagamento inicial de credito à habitação em Zhuhai – aquele sítio no qual a Jones Lang LaSalle nos diz que vamos morar, quer queiramos quer não.

Assim, no caso de estramos em poupança para a compra de casa, e frente a taxas de juro para as poupanças que ficam, com sorte, cinco pontos abaixo da nossa taxa de inflação (que não é sequer a da habitação), teremos, em cinco anos reunido com esforço, não 734.760 patacas, mas um valor 36.738 patacas abaixo disso (o custo por esperarmos cinco anos).

Com as nossas 734.760 patacas que agora valem umas reais 698.022 patacas, vamos então ao banco ver que tecto podemos garantir e percebemos que, se formos residentes, as nossas poupanças têm de garantir um terço do valor da casa. Esta pode custar, assim, e depois de cinco anos sem fazer férias, sem gastar em nada que não seja essencial, no máximo 2,09 milhões de patacas. E, infelizmente, não permite adquirir qualquer imóvel que a Jones Lang LaSalle tenha para vender em Macau. Ou de qualquer outra agência neste momento.

No entanto, a Jones Lang La Salle, no seu website, propõe-nos arrendar um pequeno apartamento no edifício One Central, por um valor mensal de 34. 710 patacas. A nossa família ganha 41.423 patacas e não pretende abdicar de comer, meter os filhos na escola e pagar algumas utilidades como água, telefone e luz.

A Jones Lang LaSalle está assim carregada de razão, porque com os preços praticados pela Jones Lang La Salle, Zhuhai aparece de facto como a melhor opção – curiosamente, 89 casas abaixo de Macau no ranking das melhores economias metropolitanas do estudo da Brookings Institution, e com rendimentos per capita muito inferiores. O único trading possível para o cidadão é o de atravessar diariamente o fosso dos rendimentos: ganhar em Macau e gastar em Zhuhai.

Standard

O meu novo ano chinês

Patrícia Silva Alves

Cheguei a Macau há exatamente um ano. O meu novo ano na China, logo, chinês, começou a 21 de Janeiro de 2014 e terminou ontem, enquanto escrevia estas palavras.

Apesar de ter os pés nesta terra há 365 dias, sinto que ainda sei menos do que quando aqui aterrei. Durante este tempo fui fazendo apontamentos sobre pormenores que me chamaram à atenção e uma frase, lida em Março, adapta-se ao que sinto agora: “Na China não acredite em nada antes de ver. E depois de ver, continue a não acreditar”. É isto.

Mal cheguei, poucos dias depois de ter aterrado, já atirava observações quanto à simpatia dos condutores de transportes públicos. Escrevi: “Os senhores dos autocarros não comunicam quando se fala em português ou inglês ou algo que não cantonês (quanto a mandarim não sei). Fazem só expressões. E esgares. Vou ficar especialista em análise de linguagem corporal”.

Já em Fevereiro descrevia que estar em Macau era como “falar com alguém no Skype que não nos está a ouvir”. No entanto, também apontei que “há sempre pessoas simpáticas, atenciosas e disponíveis em todo o mundo e aqui, num sítio onde as palavras muitas vezes nos falham, isso é reconfortante”. Uma observação que mantenho totalmente – nem vale a pena dar exemplos. Tomar a parte pelo todo é um problema que persiste em Macau entre as comunidades não falantes de chinês. Como a comunicação não flui é preciso que nos agarremos a algo: às ideias feitas. Um erro.

No final de Janeiro já começava a entusiasmar-me com a perspectiva de que aqui há quem veja a sua vida de uma forma radicalmente diferente de mim. Apesar de não acreditar no destino, vejo a realidade como uma linha recta, mas com algumas pedras que nos aparecem pelo caminho (aquela coisa chamada vida) e que isso determina de certa forma o caminho que fazemos.

Para quem pensa assim é bastante diferente ler algo como isto: “O destino não é fatal e as previsões dos adivinhos devem ser interpretadas como a indicação de uma tendência, eventualmente como um aviso, mas nunca como uma sentença sem apelo. Um adivinho vê que em breve adoecerás gravemente? Não é caso para desesperar. Faz ofertas a um templo, ajuda um desgraçado (…) e afastarás a ameaça que, caso contrário, impende sobre ti.”

A possibilidade de instrumentalizar o destino atraiu-me desde logo. Tanto como achei fascinante o culto dos antepassados. Ainda em Janeiro: “Já percebi que há algum suborno divino na ideia – fazem-no para garantir que não lhes é lançado algum azar por um antepassado abandonado e ressabiado. Mas que raio. Nós também o fazemos com as velas. Ao menos são mais criativos”, escrevi no final do meu primeiro mês aqui.

Ao longo dos meses seguintes fui ganhando estupefações mais concretas – e políticas – mas essas tenho vindo a escrever por aqui.

Sobre este ano, fica a sensação que continuo a ter sobre tudo isto. Tal como em Maio: “Acordou a achar que ia devorar o mundo. Mas lá fora não se via ninguém. De ruídos só os seus (e quase se ouviam os seus pensamentos). Isso pouco importava – ia devorar o mundo. Imaginava as pessoas, os encontros, os cheiros. Sabia de cor tudo o que ia sentir quando o dia acordasse também. Até que amanheceu. E foi devorada pelo mundo”.

Macau aconteceu-me. E eu só posso agradecer por isso.

Standard