A estratégia da guerra e da paz

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Há cerca de 2500 anos um guerreiro e filósofo chinês, Sun Tzu, tornou-se um mestre da estratégia e sintetizou a essência da sua filosofia num livro chamado “A Arte da guerra”. A sua influência estendeu-se até aos dias de hoje, não apenas na área militar, mas também na económica e na política. Há algo central na reflexão teórica de Sun Tzu: vencer mantendo intactos os recursos e os objectivos. Esse é o primeiro de seis princípios universais que, quando utilizados em conjunto, representam a mais poderosa estratégia já enunciada para vencer conflitos. Ganhar tudo, conseguir vantagem, secretismo, energia, equilibrar forças e fraquezas e ter o poder da iniciativa são verdadeiros círculos concêntricos que, em conjunto, garantem a vitória. Ler hoje Sun Tzu continua a ser um prazer. Porque este livro não é apenas um manual estratégico: é uma forma de vida.

Estes princípios combinados são a essência de uma filosofia que não pode ser dissociada do mundo taoista em que viveu. No fundo, o que Sun Tzu propõe é saber vencer sem termos necessidade de combater. É isso que permite combinar a força militar com o Tao Te Ching. Se no Ocidente, Clausewitz via na destruição do adversário o elemento determinante da guerra, Sun Tzu dá muito mais importância ao engano e à guerra secreta. “A vitória e a derrota são aparentes”, escreve logo no primeiro capítulo. Contra a visão de antagonismo da guerra clássica, Sun Tzu alinha um outro nível de pensamento que ultrapassa o puro duelo entre dois contendores. O futuro da guerra deve ser vista para lá da sua manifestação bélica. O general chinês é um firme defensor da mobilidade, da versatilidade e das escolhas estratégicas. A guerra joga-se com imagens e isso foi visível durante as guerras do Golfo e na cada vez maior utilização dos “drones” nas campanhas do Afeganistão.

É a surpresa que Sun Tzu elogia como factor determinante da arte da guerra. É o inesperado que funciona como elemento que todos os equilíbrios. Sendo isso o epicentro destes princípios entende-se melhor como esta obra sobreviveu ao tempo. E não esquece a economia: como general sabe que uma guerra custa muito aos cofres do Estado e, claro, aos cidadãos. Por isso mesmo, para Sun Tzu, qualquer conflito deve ser resolvido de forma rápida e eficiente. Quando não é assim os danos acumulam-se.

Quando se lê Sun Tzu não podemos deixar de pensar em Maquiavel. Os seus universos, parecendo opostos, cruzam-se. O general chinês tem a noção da necessidade da política no enorme jogo da guerra. Maquiavel parte do mundo político para entender o jogo da guerra. Mas há algo em que ambos estão de acordo: a dissimulação é um elemento determinante na forma como se defronta o inimigo. Há outro elemento que é comum a Sun Tzu e a Maquiavel: o peso das informações seguras sobre o inimigo. A guerra secreta tem um valor fulcral. Em ambos os fins justificam os meios, mas Sun Tzu tem de ter mais cuidado em dissimular isso, porque os códigos morais da China na época eram muito estritos. O conceito determinante é o Taoísmo. Aquele que ensina: “Quando todos reconhecem o bom como bom, isso em si mesmo é mau”. Ora a arte da guerra é necessariamente o lado mau da vida. Mas utilizando a lógica dos opostos, Sun Tzu pode argumentar que o mal é o bem. E daí parte para o princípio de que o exército deve aparentar ser o contrário do que é. Deve parecer que está inactivo para ser activo. Não tem uma estratégia: destrói a daquele que se lhe opõe.

“A Arte da Guerra” é o livro que, por excelência e através de metáforas perfeitas, nos mostra como quem quer vencer tem de ter o domínio total dos elementos envolvidos. É isso que torna um general superior. Ou um político, ou um gestor. Numa época em que, mais ou menos disfarçados, voltamos a escutar os tambores da guerra, Sun Tzu soa actual como se tivesse sido escrito agora.

 

 

Fernando Sobral, escritor e jornalista. Autor de “O Segredo do Hidroavião” e “As Jóias de Goa”. Escreve neste espaço uma vez por mês.

 

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A experiência de Deus

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Neste Décimo  Sexto  Domingo do Ano Litúrgico, o Evangelho apresenta-nos Jesus Cristo a falar do «Reino de Deus» que eu adaptaria um pouco, dizendo por outras palavras, que Ele, o Senhor Jesus, nos expõe e explica certos aspectos da realidade da ‘experiência de Deus’ no interior do ser humano  e,  mais concretamente – ouso dizer –  no seu próprio ‘coração’.  Fá-lo apresentando três parábolas:  «O Joio e o Trigo»«A Mostarda» e, por fim,  «O Fermento». Cada uma tem a sua mensagem particular e todas juntas oferecem uma compreensão mais global dessa mesma ‘experiência de Deus’.

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«O Joio e o Trigo». As cearas de trigo são, sem dúvida alguma, a paisagem  mais comum  e típica em Israel. Além do mais, não podemos esquecer quanto o Antigo e o Novo  Testamentos estão repletos de vivências e histórias onde o trigo faz  parte do enredo. Toda a narrativa,  por exemplo,  do José do Egipto e da ida do povo hebreu para o país dos faraós está centrada no haver ou não trigo para comer.  Segue-se, depois, a grande epopeia de regresso do povo escolhido à Terra Prometida.

Na multiplicação dos pães, o pão de trigo é o instrumento do milagre realizado por Jesus Cristo. É com o pão de trigo que o Senhor Jesus igualmente nos convida a acreditar que Ele o transformou em Sua ‘carne’.  A Primitiva Igreja reúne-se à volta do ‘partir do pão’.

Na pregação de Jesus, várias são as parábolas onde o trigo é a metáfora usada.  Na primeira parábola do Evangelho deste Domingo  «O Joio e o Trigo» temos, como em muitas outras criadas por Jesus Cristo, o coração a ser comparado com a terra ou o terreno de um campo de agricultura, enquanto que a semente é expressão da presença e acção de Deus.

Aprendemos,  no entanto, com as palavras de Jesus, que no terreno do coração humano,  para além do Espírito Santo de Deus,  trabalha e maquina, sempre pela calada da noite,  o Espírito do Mal.  Na nossa caminhada ao encontro de Deus, não podemos esquecer que somos imperfeitos, defeituosos e nem sempre inclinados a fazer ou a procurar o melhor. A nossa natureza de homem ou de mulher, o nosso ‘eu’ mais profundo ou essa ‘carne’ que é a nossa e que dá ‘corpo’ à nossa  personalidade tem inclinações desordenadas e incorrectas. É esta realidade que Cristo quer chamar a  nossa atenção. Não para nos fazer desanimar. Antes, pelo contrário. A procura de Deus, o encontro com Deus, ‘a experiência de Deus’ – clarifica o Mestre – dá-se só e sempre na consciência de que a imperfeição caminhará connoco.  A ‘experiência de Deus’, por si mesma,  purifica e transforma para melhor a nossa natureza, mas,  neste mundo, nunca chegará à perfeição. Isso, acontecerá só no momento do encontro ‘face a face’ com  Deus.

«A Mostarda». Esta parábola  torna claro um outro elemento que é necessário para todo aquele que caminha ao encontro de Deus e quer fazer uma ‘experiência de Deus’. Sem humildade, sem a consciência da sua ‘pequenez’ nas coisas de Deus ninguém vai longe na intimidade com Deus. Assim, diz o Mestre : «O Reino dos Céus pode comparar-se ao grão de mostarda… Sendo a menor de todas as sementes, depois de crescer, é a maior de todas as plantas da horta e torna-se árvore , de modo que as aves do céu vêm abrigar-se nos seus ramos.» A grandeza das nossas vidas  e da nossa relação com Deus torna-se facto real, quando enveredamos pelo caminho da humildade, da simplicidade e da transparência, honestidade e coerência do nosso coração. Os convencidos intelectualmente e se julgam diferentes e superiores aos outros, paradoxalmente, não entendem as coisas de Deus.

«O Fermento». Eis aqui, o terceiro elemento do discurso de Jesus Cristo para melhor compreendermos ‘a experiência de Deus’ em nós. Disse-lhes Ele: «O Reino dos céus pode comparar-se ao fermento que uma mulher toma e mistura em três medidas de farinha, até ficar tudo levedado». Normalmente e, sobretudo, nos princípios de uma caminhada  para Deus,  a acção da graça divina  no coração ou na alma ou no ser mais íntimo de uma pessoa realiza-se no mais profundo silêncio e quietude da natureza humana. Nunca no turbilhão das emoções e sentimentos, nem na convulsão dos acontecimentos nem na fúria compulsiva e titânica dos pensamentos.

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É verdade. Preocupa-me o constatar que são muitos e muitos, e muito boas pessoas,  aqueles que abandonam  os caminhos de Deus. Como que,  nas suas vidas, se pudesse escutar e ouvir dizer : “Deus já não tem sentido. Deus está ’morto’…

Será?  Será que é Deus que está ‘morto’? Ou sou eu que estou ‘morto’ para Deus? Creio, cada vez mais fortemente, que a questão se encontra radicada no ‘coração’ do próprio ser humano, homem ou mulher. É uma ‘crise existencial’, em que ele se mostra incapaz de enfrentar.

Pergunto-me, exactamente, se as parábolas deste Domingo nos dão algumas luzes na compreeensão desta problemática  tão fundamental no existir da humanidade e  civilização actual.

O Ser Humano é, intrinsicamente, imperfeito e limitado, porque o Mal e o pecado entraram neste mundo. A Sociedade actual tem dificuldade em aceitar esta verdade.  De muitas e  variadas  maneiras, o homem e a mulher actuais mais parecem ser dominados pela ideia de ser perfeito e poderoso como Deus.

O orgulho intelectual, científico  e tecnológico, em que estamos a cair é um tremendo obstáculo à‘ humildade e simplicidade de coração´ que exige o encontro com Deus.

Por fim, o encontro e a experiência de Deus exigem siêncio, recolhimento e quietude. Bombardeados por toda uma tecnologia sonora de consumo obsessivo, rodeados  por uma publicidade que se torna cada vez mais paranóica e um sistema informativo tantas vezes manipulado, ‘fake’ e corrupto, como poderemos ouvir « a voz de Deus»?

 

Luís Sequeira, Sacerdote e Antigo Superior da Companhia de Jesus em Macau. Escreve neste espaço todas as semanas, sempre às sextas-feiras.

 

 

 

 

 

 

 

 

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António Costa: o afrodisíaco do poder

 

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Em Dezembro de 2014 escrevi numa crónica, a propósito do Congresso do PS, que António Costa era um político de enormes qualidades, carisma e facilidade de comunicação, com grande maturidade e com a sagacidade de se saber rodear de uma comissão política formada por gente que lhe era próxima e leal.

Quase três anos depois, os factos confirmam as suas qualidades mas deslustram o facto de ser como Primeiro-Ministro uma imagem pálida do que foi como dirigente partidário. E se no primeiro plano revelou acutilância e sentido de antecipação no segundo, por circunstâncias várias, revela um crescente torpor, uma argumentícia vazia de conteúdo e menor capacidade de governar um barco que começa a revelar rombos graves.

As crises recentes de Pedrógão Grande, o roubo de equipamento militar da base de Tancos e a altercação com a Altice a propósito da compra do canal de televisão TVI, revelam imprudência, agaste e falta de concentração do líder do governo, encantado pela falta de uma oposição capaz de ser, de imediato, alternativa ao seu governo.

Porventura poderá contra-argumentar-se que António Costa dispõe de níveis de popularidade invejáveis como várias sondagens de opinião o vêm confirmando. E dizer-se que se houvesse eleições, neste momento, o PS poderia almejar a maioria absoluta. Em abono dessa tese pode dizer-se que o Partido Comunista Português e  o Bloco de Esquerda não descolam da bitola dos 8 por cento para deixarem de ser mais do que uma muleta, útil, mas ainda muleta, do governo socialista.

Mas toda a gente sabe [ou intui] que este cenário ocorre enquanto Pedro Passos Coelho for líder do PSD. Quer dizer os eleitores em tempo da escolha ponderam as alternativas e preferem o assim-assim ao menos bom. Se como as sondagens também o apontam, o PSD perder as eleições autárquicas de Dezembro, é provável que Passos Coelho seja desafiado para a liderança partidária e uma solução na tradição social-democrata do PSD surja como inevitável. Nessa conjuntura, assistiremos a uma inversão dos favoritismos nas sondagens que se façam então.

Naturalmentel, tudo isto é percebido, intuído pelo Presidente da República, que se tem colocado numa rota de convergência e apoio solidário ao Primeiro-Ministro. Retirá-lo seria dar ao PS o pretexto para cavalgar uma estratégia comunicacional de perseguição que lhe poderia trazer ganhos políticos.

Marcelo Rebelo de Sousa não mudou de partido, nem de simpatias ideológicas, para ser simpático com António Costa. Como Mário Soares não mudou das suas pela posição de convergência que teve no primeiro mandato de Cavaco. Esquecemo-nos, muitas vezes, que estes actores políticos estão há muito tempo no palco e viveram situações de que as actuais são uma duplicação.

Costa está portanto a braços com um barco que começa a meter água pelos rombos. Que explicação pode ser dada para isso? Não é o criticismo dos seus parceiros de “coligação”: PCP e Bloco de Esquerda têm sido muito prudentes nas críticas que vão dirigindo ao Primeiro-Ministro. Limitam-se a deixar alertas, avisos, a pedir explicações num tom de voz, político, baixo, oposto à forma alvoroçada como actuam na fórum parlamentar. Ora se não mudaram de ideologia nem de balizas ideológicas porque actuam assim?

A razão é intuitiva.  O governo do Partido Socialista é a melhor garantia que nada de substancial no estado paternalista interventor é mudado, que nenhuma reforma profunda será feita no aparelho burocrático do Estado, que as políticas de disciplina orçamental não atinjam as bases de apoio nos sindicatos e nas autarquias. Mesmo que isso se venha traduzindo na alienação da classe média, sobretudo urbana. Não ambicionando ser governo – para já – PCP e Bloco de Esquerda esperam continuar a ser indispensáveis para a sustentação política do Governo. Porque sabem que no dia em que o deixarem de ser, as suas hipóteses de influenciarem o curso dos acontecimentos alterar-se-á significativamente.

Costa ambiciona a maioria absoluta embora diga abundantemente o contrário.

A explicação para o barco à deriva pode ser encontrada noutro lugar, na cultura interna do PS. Como os recentes episódios das viagens ao campeonato europeu de futebol de quatro secretários de estado ou a nomeação de Diogo Lacerda para a TAP bem exemplificam. ­O PS tem uma cultura enraizada de nepotismo, favoritismo e facilitismo que leva a que quando está no poder actue como uma máquina poderosa de distribuição de contratos, benesses e prebendas à sua clientela política e às empresas dos amigos dos seus principais dirigentes. E a não olhar a meios e pretextos para o multiplicar, na exponencial.

Poderá contrapor-se que Costa é diferente de Sócrates; que não repetirá os erros do ex-primeiro-ministro. Dou de barato que Costa não tem a sedução pela ostentação, pela acumulação de riqueza, pelos ilícitos de que Sócrates está indiciado e que incluem fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais e corrupção passiva para acto ilícito. Dou de barato, também, que desconhecesse a extensão do esquema diabólico de enriquecimento ilegítimo do antigo secretário-geral do PS. Diz-me, quem o conhece bem, que Sócrates sempre funcionou em circuito fechado, que poucas informações partilha senão com os que lhe são muito próximos e que premeia abundantemente.

Mas Costa conhece o partido em que milita desde os tempos da Juventude Socialista. Sabe que a sua clientela partidária é insaciável e que seus companheiros de jornada são sôfregos. Isso deveria levá-lo a compreender que casos como os de António Figueiredo, Armando Vara, José Penedos ou José Sócrates se repetirão, no futuro próximo, quando o efeito afrodisíaco do exercício do poder se manifestar, em toda a sua latitude e a Justiça conseguir reunir as provas suficientes para investigações que eventualmente estão já em marcha.

Como escreveu Honoré de Balzac todo o poder é uma conspiração permanente.

A possível condenação de José Sócrates em processo-crime não deixará de ser um ainda maior sobressalto para os socialistas. O sono do Primeiro-Ministro já não será tranquilo.

 

Arnaldo Gonçalves é jurista e professor de Ciência Política e Relações Internacionais. Escreve neste espaço quinzenalmente, sempre às quintas-feiras.

 

 

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A nova Rota da Seda

Marco Polo's Route On Silk Road To China

A expressão “Rota da Seda” foi inventada pelo cientista e geógrafo alemão do século XIX Ferdinand von Richthofen. Mas o que foi a “Rota da Seda”?

Peço, mais uma vez, ajuda a um artigo do portal Infopédia acerca da Rota da Seda: «A via comercial terrestre que ligava a China ao Mar Mediterrâneo, conhecida como Rota da Seda, foi muito utilizada desde os primeiros séculos da nossa era até ao início da Idade Moderna. (…) As caravanas que percorriam a rota da seda partiam de Antioquia [hoje, no Sul da Turquia] e Tiro [actualmente, no Libano] , chegando, através da Mesopotâmia [hoje, a região do Próximo Oriente], ao Irão, Jurasão [desconheço a actual localização], Turquemenistão e Bactros [da Bactria, região actualmente “dividida” entre o Afeganistão, o Tadjiquistão e o Uzbequistão] , a partir de onde se dirigiam para Samarcanda [hoje, também no Uzbequistão] e para a cidade chinesa de Kashgar. (…) A Rota da Seda acabou por perder a sua importância devido à descoberta do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama em 1498».

De facto, muitos séculos passaram até que, em 2013, o presidente chinês Xi Jinping anunciou ao mundo o “lançamento” de um novo programa que reavivaria as antigas rotas comerciais entre a China, o resto da Ásia, o continente africano e a Europa. E que incluiria, igualmente, outras regiões (como a América do Sul, por exemplo). Um programa que, de resto, seria considerado por muitos como a maior “obra” da diplomacia económica da República Popular da China e o maior empreendimento de alcance transcontinental alguma vez “lançado”.

A iniciativa “Uma Faixa, uma Rota” («Belt and Road Initiative», na língua inglesa) inseria-se, pois, numa estratégia de expansão global da China: foram, entretanto, assinados acordos entre a China e 65 países (e, também, 3 organizações internacionais) para criar e desenvolver um conjunto de infra-estruturas que lhe possam conferir significado.

Ou seja, uma “rede” de “corredores” e de “estradas” –  no fundo, zonas de investimento –  que “ligassem”, economicamente sobretudo, todo o mundo: um projecto terrestre (a denominada Silk Road Economic Belt) e, simultaneamente, marítimo (a Maritime Silk Road). Um projecto que deverá ter um impacto directo sobre cerca de 4.4 mil milhões de pessoas.

Foi em meados de Maio deste ano, 2017,  que vários chefes de Estado e de governo (da Rússia, de Itália, da República Checa, de Espanha, do Paquistão e de diversos países de África, por exemplo) se reuniram em Pequim para discutir esta ambiciosa iniciativa chinesa.

No entanto, em tal encontro não marcaram presença líderes de “grandes potências Ocidentais” como dos Estados Unidos da América ou da Alemanha.

A razão? Cepticismo e alguma (ou muita?) desconfiança por parte desses líderes do que consideram as verdadeiras intenções da China ao “lançar” este programa: por exemplo, as instâncias europeias têm estado a investigar um projecto de ligação ferroviária entre Budapeste (a capital húngara) e Belgrado (a capital sérvia) porque poderá estar, alegam, a infringir directivas europeias; já o director do Mercator Institute for China Studies, Jan Gaspers, em declarações reproduzidas pela edição online do jornal de Hong Kong South China Morning Post no dia 20 de Junho de 2017 afirmou que o projecto “Uma Faixa, Uma Rota” constituía, tão-somente, um “veículo” para transportar o excesso de produção chinesa.  Ao que parece, ainda falta mais diálogo para que a grande alavanca da economia global durante a próxima década possa avançar.

 

O caso português

 

Para Jonathan Hillman (do norte-americano Center for Strategic and International Studies), outro dos académicos que o referido artigo publicado pelo South China Morning Post citou, o projecto chinês “Uma Faixa, Uma Rota” só teria sucesso se tivesse apoio por parte dos cidadãos dos países abrangidos.

De facto, um dos participantes na conferência «China Europe in the Framework of the One Belt, One Road Initiative» que se realizou nas instalações do Instituto Superior de Economia e Gestão, em Lisboa, em meados do mês de Junho de 2017, o macaense Jorge Rangel, frisou que o projecto “Uma Faixa, Uma Rota” não poderá deixar de “ouvir” as respectivas sociedades civis dos vários países se quiser ser bem sucedido.

No entanto – e que eu me tenha apercebido, claro –, têm sido (muito) poucos os contributos vindos de universidades e de centros de investigação que pudessem ajudar o conjunto da sociedade civil em Portugal (em que me incluo) a pensar um projecto que as entidades governamentais desejam que “passe” por Portugal.

Estou, neste sentido, a lembrar-me de um texto escrito pelo embaixador de Portugal na República Popular da China, Jorge Torres Pereira, «PORTUGAL e a CHINA: Importância crescente do relacionamento bilateral» (que a edição n.º 95 de Fevereiro de 2017 da revista digital Portugal Global publicou).

Ora, nele escreveu, também, que «O Governo português atribui assim a maior importância ao Fórum de Macau, traduzida aliás no alto nível político da nossa representação nas Conferências Ministeriais, e temos dado pleno apoio à dinâmica de expansão e inovação expressa no Plano de Actividades aprovado, com particular destaque para a integração da dimensão “Uma Faixa, Uma Rota” [ou “Uma Faixa, Um Caminho”], a qual Portugal tem vindo a acompanhar com particular interesse, designadamente em virtude da componente atlântica da “rota marítima da seda do séc. XXI».

Perguntei-lhe, assim, quais as acções do Governo de Portugal que têm materializado, por assim dizer, esse «particular interesse» no projecto “Uma Faixa, Uma Rota” .

Continuo, mais de um mês depois de colocada a questão, a aguardar uma resposta.

 

Ricardo Jorge Pereira, Antropólogo e Investigador

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O trigo, o joio e os taxistas

 

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Não sendo eleito, o Governo pode fazer o que quer e o que bem entende, até premiar o que em Macau há de mais parecido com uma corporação de malfeitores sem que daí lhe advenha grandes dissabores. Faça-se a necessária ressalva: por detrás do volante – como por detrás do balcão, de uma mesa de jogo ou da pedra branca do açougueiro – há bons e maus profissionais e as experiências que fui recolhendo, no habitáculo dos táxis, ao longo dos anos levam-me piamente a acreditar que não só há taxistas bons, como também os bons profissionais estão em maioria.

Com os riscos que implicam todas e quaisquer generalizações, um episódio se destaca: há dois anos, numa viagem entre a Taipa e Macau tive a sorte de me cruzar com o senhor L. Nascido em Madagáscar, L. falava fluentemente francês, um inglês impecável e um português que, não sendo escorreito, não envergonhava ninguém, muito menos quem esteve uma única vez em Portugal nos idos de 80 e nem com o arriar da bandeira das Quinas na Praia Grande decidiu sepultar as vogais abertas de um idioma teimosamente nasalado sob sete palmos de esquecimento.

“Vou lendo os jornais portugueses sempre que posso. Quando ando sozinho no carro, ouço a rádio portuguesa”, explicou L., sem que se lhe notasse na voz qualquer indício de vaidade ou de falsa modéstia. Um pequeno acidente na Ponte de Amizade prolonga a corrida: L. aparenta sessenta e muitos anos, está reformado e vai trocando de língua com uma agilidade descomunal. Quando o português falha – e há um ou outro vocábulo que permanece teimosamente encravado na fundura da memória – salta para o francês e a conversa encarreira de novo com a mesma vitalidade, o mesmo ritmo, a mesma candura. Foi funcionário de uma empresa têxtil, conduziu chefias departamentais e ocasionalmente um ou outro secretário na recta final da administração portuguesa e tentou a sorte do outro lado das mesas de jogo. Agora – um agora que já lá vai há quase dois anos – conduz um táxi três ou quatro horas por dia “para se obrigar a sair de casa, ficar em casa é entristecer”.

As aldeias verticais da Areia Preta agigantam-se no horizonte, o taxímetro marca já mais de noventa patacas e em menos de dois minutos a viagem termina. Levo a mão ao bolso, estico uma nota de cem patacas na direcção do condutor. L. abre o porta-luvas, tira de lá um cartão, retira cinquenta patacas de dentro da carteira e entrega-mas: “Ninguém deve pagar pelos erros dos outros”.

Num mundo de carrancudos, de cabisbaixos e de ensimesmados, L. perfilha-se como que o antídoto ideal para um certo pessimismo que se apoderou dos mais ingénuos ou dos mais incautos face às qualidades gerais do colectivo disforme que se convencionou chamar Humanidade. Se a comparação for feita com o universo particular dos taxistas de Macau, tido na sua grisalha globalidade – olhando a floresta e esquecendo as árvores que a compõem – o contraste é ainda mais gritante: generoso e afável, L. está no antípodas do taxista que, ainda que não recorra a práticas de extorsão ou que não recuse prestar serviço a clientes, se bate pé ante pé com Edoardo Mortara pela volta mais rápida ao Circuito da Guia e alça-se a anos luz de distância dos que conduzem com uma mão e com a outra vão trocando mensagens com uma agilidade macabra numa qualquer aplicação de conversação ou de troca de mensagens rápidas.

Se no meio da floresta ainda se erguem árvores imponentes e frondosas, porque razão subsiste a percepção de que, no que aos táxis diz respeito, o que vigora em Macau é a lei da selva? Nas negociações que ontem culminaram, com o anúncio, por parte da Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego do novo preçário que a partir do fim-de-semana vai imperar nos carros de aluguer de Macau participaram treze associações de taxistas. De nenhuma delas saíu ao longo dos anos qualquer indício de disponibilidade para conduzir um processo de depuração interna, para expurgar o trigo do joio, para expulsar a má semente.

Mesmo tendo noção da animosidade que, enquanto classe, despertam junto de residentes e de visitantes, as associações representantivas do sector pouco ou nada fizeram – ou prometem fazer – para mudar uma imagem que os associa vezes demais a práticas criminosas, à falta de profissionalismo ou a uma irrazoável vitimização.

Ontem, perante a imprensa, Lam Hin Sam procurou fazer passar a ideia de que o Governo conduziu as negociações que desembocaram na actualização das tarifas com mão superior, que deitou os trunfos para a mesa como quis e bem entendeu, ao não ceder às exigências do sector, que reclamava por aumentos algo mais significativos. O Director da DSAL expressou ainda o desejo de ver o serviço prestados pelos taxistas melhorar substancialmente, agora que os aumentos estão decididos e que as expectativas dos profissionais do volante estão aparentemente serenadas. O anseio não foi, no entanto, produzido por alguém que tem – como o Governo se esforçou por dar a entender – as cartas na mão e está numa posição de força. Face à ausência de penalizações efectivas para quem faz da extorsão um método, face à falta de responsabilização do sector, o apelo de Lam Hin Sam não é mais do que isso. O tempo irá dizer se não terá sido um humilhante pedido feito de joelhos, condenado a cair em saco roto.

O aparente “laissez faire” que permeia a indústria dos transportes, e que se faz notado com particular incidência nos serviços de carros de aluguer, só se resolve com mais e melhor concorrência, com oferta que faça sacudir as àguas estagnadas do paúl em que a indústria dos táxis se tornou. No mesmo dia em que a DSAL puxou dos galões para garantir que bateu o pé às pretensões das associações de taxistas, a Uber anunciou o adeus – ao que parece, definitivo – ao território. E assim, quem pouco ou nada fez para garantir a confiança dos clientes – residentes e visitantes – garante duas vitórias de uma assentada, face à inexplicável devoção do Executivo em fazer vista grossa ao futuro. As condições parecem reunidas para que nada se altere e os taxistas, tidos na sua grisalha globalidade, continuam a constituir-se como o calcanhar de Aquiles de um território que se permite a ambição de se julgar “um centro mundial de turismo de lazer”, num processo em que o Governo, mais do que vítima, é cúmplice.

 

Marco Carvalho, Director do PONTO FINAL

 

 

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Crescer para a plenitude

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Com a muito conhecida parábola de «O Semeador», Jesus Cristo, de um modo muito simples, mas extremamente pedagógico, aborda a questão do crescimento pessoal. Isto é, a capacidade que todos nós possuímos de sempre procurarmos ser melhores e de caminharmos para uma maior perfeição do nosso ser, em particular, naquela qualidade ou naquele dom que mais nos distingue como pessoa.

Contudo, o Mestre faz-nos cair na conta igualmente de que a vida nos traz situações que podem constituir  verdadeiros obstáculos a essa progressão. São as tais circunstâncias fáceis,  supostamente naturais e muito humanas,  mas que, afinal, não passam de uma ilusão. A nossa própria sensibilidade, atraída pelas primeiras impressões que se apresentam agradáveis e atraentes, é capaz também de nos fazer cair irremediavelmente e em pouco tempo, no engano.

Assim se me apresenta o Evangelho do Décimo Quinto Domingo deste Ano Litúrgico.

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«Saíu o Semeador a semear. Quando semeava, caíram algumas sementes à beira do caminho: vieram as aves e comeram-nas». Aqui temos esta deliciosa metáfora a descrever aquela característica a que habitualmente, denominamos de superficialidade, compreensão da  realidade sem profundidade de pensamento,  própria de quem se queda apenas em aspectos secundários ou laterais,  perdendo o essencial. Nestas circunstâncias, tudo desaparece  rápido e desvanece, em pouco tempo. Nada permanece e amadurece.

Um homem ou mulher que ao lidar consigo mesmo, com os outros ou com as coisas da vida e fica sempre na superfície, ao lado ou deixa correr as questões, dificilmente será alguém com personalidade, com  rasgo e visão,  e capaz de transformar o  mundo que o rodeia.

No seguimento da pregação de Cristo Jesus, a aspiração a crescer, a ser melhor e a caminhar, movido por um desejo sincero e humilde de Perfeição, não se coaduna com uma pessoa que não consegue dar profundidade e conteúdo às suas ideias, aos seus afectos, às suas acções. Enfim, não conseguirá nem dar sentido à sua existência nem desenvolver-se até à plenitude do seu Ser.

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O Senhor Jesus continua o Seu ensinamento, afirmando, num segundo momento: «Outras sementes caíram em  sítios pedregosos, onde não havia muita terra … e, por não terem raizes, secaram.  Nova imagem para nos ajudar a compreender uma outra situação. O Senhor, mais directo e explícito,  afirma que tal como a semente não vinga entre pedregulhos  assim também acontece o mesmo  a qualquer um, homem ou mulher,  ao chegar a tribulação ou a perseguição… sucumbe logo».

 Na nossa incapacidade  de  enfrentar os momentos de sofrimento como a  incompreensão, a oposição e a perseguição, não é de admirar assim que nós, consequentemente, não tenhamos a capacidade nem a possibilidade de avançar no caminho da nossa própria Perfeição, nem de fazer frutificar em nós a Palavra de Deus nem de seguir a voz de Deus, no íntimo do nosso Coração. Somos gente que «não tem raiz em si mesmo,… é inconstante».

Sim, a contrariedade, a má compreensão dos outros, a cruz e a dor  provam-nos, mesmo até às lágrimas. No entanto e surpreendentemente, torna-nos fortes e vigorosos, e faz-nos  crescer na Virtude e na Perfeição.

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Prossegue a narração da parábola : «Outras sementes caíram entre espinhos, e os espinhos cresceram e sufocaram-nas». E Jesus, o Senhor e Mestre, remata, dizendo que isto igualmente acontece com aqueles que vivem dominados pelos «cuidados deste mundo e a sedução da riqueza».

Liberdade, simplicidade e pobreza são  uma constante da vida de Jesus : nasceu pobre e nu e nu e pobre morreu. Na Sua pregação, vezes sem conta, afirmou  a necessidade do desprendimento perante o pão a comer, as roupas a vestir, o dinheiro a gerir, os acontecimentos a enfrentar,  perigos a ultrapassar, o amanhã a descobrir. Por fim, o Senhor Ressuscitado afirmou ,categoricamente, perante  a perseguição, a morte e o mal.«Não se perturbe o vosso coração».E ainda:«Eu venci a morte … Eu estarei sempre convosco».

Mas eis os factos: o consumismo em que parece que todos estamos irremediavelmente  a cair na excessiva preocupação com o comer, beber, vestir, dormir e bem estar; o economicismo que domina até à paranoia e à imoralidade a nossa humanidade; o materialismo, prático e filosófico, que está a avassalar nas sociedades ditas mais desenvolvidas; o ateísmo que subverte astuciosa e serpentinamente as grantes culturas e religiões.

Onde está o Espírito ?

 

Luís Sequeira, Sacerdote e Antigo Superior da Companhia de Jesus em Macau. Escreve neste espaço todas as semanas, sempre às sextas-feiras.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Esboçando um sorriso num tom de desabafo

 

Marco Polo's Route On Silk Road To China

Por vezes sabe bem sair do politicamente correcto, ou da cordialidade ajustada, para tecer algumas considerações, em tom de desabafo, aliciado, provavelmente, por um cansaço que se vai acumulando ao longo de um ano lectivo e que se reflecte nalguma falta de “paciência” para discursos demasiadamente consensuais.

A esse respeito, ao longo destes últimos meses a quantidade de opiniões e explicações que têm sido difundidas nos meios académicos, e não só, sobre a China e o seu modelo estratégico ganha uma exuberância de autores e conhecedores da “mente” oriental (ou chinesa) como nunca se viu.

Para tal, basta verificar o crescimento em exponencial da quantidade de especialistas no Ocidente – e em particular em Portugal – que se pronunciam e escrevem sobre a realidade chinesa, incluindo Macau, reclamando o vasto conhecimento que têm sobre a China e o espaço da RAEM em particular, bastando-lhes para tal aceder à vasta informação que veicula cada vez mais nas redes cibernéticas em quantidade e intensidade, para formularem “doutas” opiniões sobre como “lidar” com os chineses.

À medida que o tempo vai passando, numa dinâmica daquilo que achámos por bem apelidar de pós transição aí em Macau, ficamos cada vez mais com a sensação que a percepção que por cá se vive sobre o que é Macau (ou a RAEM) não corresponde, em boa medida, ao impulso temporal e estrutural que vai decorrendo aí no território.

As mudanças no espaço da RAEM são sem dúvidas bem significativas no decurso destes últimos anos que norteiam o postulado da pós transição, quer do ponto de vista estrutural e físico, quer do ponto de vista social e politico, sendo que as primeiras são bem mais visíveis do que as segundas. Qualquer transeunte que tenha por referência a Macau do período da governação portuguesa ao chegar ao território após estes anos passados, fica por certo desorientado e estupefacto com as mudanças que se processaram em termos do seu enquadramento paisagístico, arquitectónico e de modernidade que Macau vai esboçando a quem transita o seu espaço fronteiriço.

Também do ponto de vista social e político as mudanças vão se processando – estas talvez menos perceptíveis porque as dinâmicas são também elas mais lentas, ou mesmo ocultas –  por forma a produzir um efeito de harmonização e pacificação para quem aí habita e faz a sua vida quotidiana. O segredo provavelmente está em fazer, sem que disso se dê conta, a pouco e pouco o poder em Macau vai-se reformulando com as substituições nos cargos estratégicos e quase sem nos apercebermos a autonomia vai-se diluindo de braço dado com o poder central.

Porém, para quem observa daqui de Portugal, dá a sensação que ainda não nos mentalizamos nem interiorizamos que Macau é já um espaço tutelado pela China (se é que alguma vez deixou de o ser) e continuamos a fazer interpretações como se ainda estivéssemos ligados por um cordão umbilical, tentando recuperar um pouco a tradição pós colonial do legado europeu.

Chegamos mesmo ao ponto de pensarmos que somos capazes de traduzir a estratégia que a China vai tecendo e qual a melhor forma para Macau se posicionar, como se a nossa interpretação fosse a mais legítima, esquecendo-nos que a mentalidade e o pensamento oriental são forjados por matrizes culturais, cognitivas e psicossociais a que somos completamente alheios.

A facilidade com que nos pronunciamos sobre os destinos de Macau e a forma como damos os contornos necessários para a realização desses propósitos, deixam-me um pouco perplexo, suscitando-me dúvidas sobre a minha incapacidade para os entender.

Sendo este espaço, um espaço de “crónica de autor”, o mesmo sugere-nos a possibilidade de podermos pensar em “voz alta” sobre o que vemos, ouvimos e sentimos para partilhar com os leitores. É, pois, nessa linha que teço estes comentários, apropriando-me também eu de uma leitura meramente individual do que se vai passando aqui (em Portugal) sobre o que vai acontecendo em Macau.

Posto isto, pouco me resta acrescentar. Apenas registo o meu desabafo e esboço um pequeno sorriso por saber que por detrás das palavras que por aqui se vão tecendo, existe algo de mais profundo na forma como poder chinês vai moldando o seu percurso. O tempo se encarregará de demonstrar as diferentes perspectivas.

 

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(o texto não segue o acordo ortográfico em vigor)

Carlos Piteira

Investigador do Instituto do Oriente

Docente do Instituto Superior de Ciências Socias e Politicas / Universidade de Lisboa

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Os Pequenos e Simples

1.Criançãs
No desejo de compreender a relação do Homem com Deus e, particularmente a atitude do ser humano, homem ou mulher, de não sentir necessidade d’Ele ou de se afastar d’Ele ou até de negar a Sua existência, o texto do Evangelho deste décimo quarto Domingo do Ano Litúrgico parece ser capaz de oferecer pontos de reflexão que nos permitem perceber certos aspectos, nem sempre considerados, sobre essa experiência do crer ou não crer em Deus.
Antes de mais, parto do pressuposto que as questões sobre Deus nascem do coração humano e não da deficiência ou insuficiência de Deus, o que seria uma contradição em si mesmo, pois Deus é a Perfeição. E não só: Deus é Amor. Portanto, Ele também não evita nem exclui ninguém do Seu conhecimento ou da Sua intimidade.
Há que descer ao mais profundo da natureza humana e entrar no mais íntimo do coração e aí tentar descobrir a razão do afastamento ou da incredulidade no ‘mistério’ da presença de Deus na Humanidade e no Universo.
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Voltando ao texto evangélico, escutamos a oração de Jesus : «Eu te bendigo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondestes estas verdades aos sábios e inteligentes e as revelastes aos pequeninos».
A simplicidade de pensamento dos pequenos, assim como a confiança amorosa das crianças é condição fundamental para todos aqueles que se aproximam de Deus. Fala-se, aqui, das atitudes genuínas, transparentes e próprias dos mais pequenos que tanto enobrecem uma pessoa quando praticadas sendo adultos. Não se trata de imitar infantilismos, ingenuidades ou manipulações de meninos mimados. Não, para homens e mulheres que se prezam, isso são imaturidades! Do que aqui se se esforça por entender é a disposição correcta na procura de Deus que, à semelhança da criança, consiste um abandonar-se a Deus confiante que Ele lhe será sempre fiel na Verdade, no Amor e na Perfeição.
Segundo as palavras do Senhor Jesus, o Mestre, todo aquele que quer conhecer a Deus e, muito mais, entrar na Sua intimidade tem que se apresentar com um coração simples e cheio de confiança. Todavia, se nos aproximamos como «sábios e inteligente» ou, por outras palavras, convencidos da nossa própria inteligência ou, pior ainda, que a razão e racionalidade humanas são capazes de explicar tudo na Vida, até o próprio Deus, estamos a caminho duma enorme desilusão e a dar passos para nos precipitarmos num enorme vazio interior.
Contudo, que fique bem claro. A inteligência humana, a exemplo de vida do genial Tomás de Aquino, tal como o coração humano, na experiência pessoal do tão igualmente genial Agostinho de Hipona, intrinsecamente, ambos procuram e só podem descansar quando encontram a Deus.
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Jesus Cristo, no Evangelho deste Domingo, aponta-nos ainda para uma situação que nos revela um outro aspecto ou uma outra faceta da dificuldade do ser humano de chegar a Deus : «Vinde a mim, todos vós que andais cansados e oprimidos, e Eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e a minha carga é leve.»
Neste caso é o peso das dificuldades, das dores e das angústias da vida. Elas são como um «jugo» que nos cansa, oprime e esmaga. São capazes, na realiddade, de nos fazerem perder a esperança em nós mesmos, na humanidade e em Deus. Na verdade, «tomar a Cruz de cada dia» é uma situação que não só provoca, tão frequentemente, um bloqueio na relação com Deus mas também, e muito infelizmente, leva a tantos a afastarem-se do caminho para o encontro com Deus.
Cristo na Cruz, morto e ressuscitado, constitui a encarnação de todo o sofrimento humano, levado até ao extremo, à morte, como é também a encarnação da vitória sobre a morte e o mal . Por isso é que Ele pode afirmar com vigor, compreensão e bondade : «Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e a minha carga é leve.»
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Assim, na primeira situação, pela racionalidade, pela razão, os seres humanos fazem-se de fortes e, consciente ou inconscientemente, tornam-se arrogantes e como diz o próprio Senhor Jesus, pretendem ser reconhecidos como «sábios e inteligentes» e acabam por declarar que Deus não faz sentido, não responde a todas as questões da existência da Humanidade e do Cosmos e terminam, dizendo. Ele não existe. E aí temos o Racionalismo, o Agnosticismo, o Cientismo, o Tecnocratismo, o Materialismo, o Ateísmo, uma panóplia multiforme de ideologias e correntes de pensamente em que se conclui que o contacto com Deus não é possivel, não é necessário ou Ele, simplesmente, não existe. Com Cristo Jesus exclamo: «Deus Pai, escondestes estas verdades aos sábios e inteligentes e as revelastes aos pequeninos».
Na segunda situação, as pessoas chegam a essa mesma atitude de pôr de parte Deus ou a negar qualquer sentido da Sua presença nas suas vidas por outra via, a da sensibilidade e da afectividade. Pelas emoções, sentimentos e afectos, enfim, pela «Angústia de Morte» em que «a Cruz de cada dia» faz passar, regular e infalivelmente a todos, mais parece, então, ser o abandono de Deus o único caminho do coração humano. Ilusão e engano!
Ao contrário, eis que ouvimos a voz de Jesus, o Bom Pastor: «Vinde a mim, todos vós que andais cansados e oprimidos, e Eu vos aliviarei».
Luís Sequeira, Sacerdote e antigo Superior da Companhia de Jesus em Macau. Escreve neste espaço todas as semanas, sempre às sextas-feiras.

 

 

 

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Duas décadas de Fórum Luso-Asiático

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Cumprem-se vinte anos da constituição do Fórum Luso-Asiático, neste mês de Julho, organização não-governamental vocacionada para o reforço do intercâmbio entre Portugal e os países asiáticos, no domínio cultural e académico e em dar maior visibilidade  às transformações ocorridas na China e em Macau. A constituição do Fórum Luso-Asiático teve lugar na delegação de Macau em Lisboa e intervieram no acto, directamente ou através de representante, quadros da administração portuguesa de Macau. Lembro aqui Nelson António, Virgínia Trigo, Celina Veiga de Oliveira, Sérgio Correia, Francisco Gonçalves Pereira, Gonçalo César de Sá, Paulo Godinho, João Francisco Pinto, Rui Rocha, Sebastião Póvoas, António Aresta, Rui Daniel, Natália Cunha, Carlos Oliveira, Carlos Borges, Rui Cabaço Gomes, Eduardo Cabrita e Magalhães e Silva. Lembro com saudade Francisco Gonçalves Pereira e Carlos Borges, entretanto desaparecidos.

Tem sido um caminho difícil, mas reconfortante pela celebração em conjunto. O Fórum foi a primeira instituição desta natureza criada em Portugal. Nos primeiros cinco anos da sua actividade, o Fórum centrou-se no debate da transição de Macau para a China, do seu acidentado mas também dos seus sucessos, num processo que à partida parecia condenada ao fracasso. Recorde-se em termos comparativos o processo de descolonização dos territórios portugueses em África. No fim, o processo correu com suavidade e estabilidade e a actual Região Administrativa Especial é uma consequência directa desses esforços e sucessos. Todos os governadores de Macau depois do 25 de Abril –  Garcia Leandro, Vasco de Almeida e Costa, Joaquim Pinto Machado, Carlos Melancia e Vasco Rocha Vieira – participaram nos jantares-debate que fomos organizando. Já muito doente, não pudemos contar, contudo, com Melo Egídio. Deixo uma nota de homenagem aos governadores Almeida Costa, Pinto Machado e Melo Egídio entretanto desaparecidos, os quais fazem parte da memória de Macau,

Acompanhámos também a situação de Timor-Leste,  chamando a atenção para a opressão com que a Indonésia aprisionava o povo maubere, um povo profundamente orgulhoso da sua herança portuguesa e da sua religiosidade católica. O esforço da nossa diplomacia, a boa-vontade dos Estados Unidos e da comunidade internacional permitiram que se levassem a bom porto as negociações com a Indonésia, o processo de auscultação do povo timorense (sobre o seu futuro) e a proclamação de independência. Timor é hoje um país livre, soberano, e democrático. Vive pacificamente com o seu vizinho indonésio e usufrui da partilha conjunta das riquezas do mar de Timor com o seu vizinho, a Austrália.

Assumi deste a primeira hora a liderança da associação, gizando iniciativas que pudessem ir de encontro aos interesses dos membros. Confesso que não fui totalmente bem-sucedido nesse desiderato. O implacável efeito do tempo e a distância geográfica da Ásia levou ao esboroar do interesse inicial dos que em Macau viveram um tempo das suas vidas. Mas continua a fazer sentido, direccionado a Portugal uma entidade que possa transmitir com conhecimento circunstancial o que se vai passando neste lugar do mundo.

Estabelecemos relações de cooperação e intercâmbio com duas instituições académicas – o Instituto de Ciências Sociais e Politicas da Universidade de Lisboa (ISCSP) e o Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica – o último dos quais a que me ligam laços de amizade como antigo discente. Sempre que se tornou útil fui participando em iniciativas pioneiras como a “Semana da China em Portugal”, organizada durante anos pela saudosa Prof. Ana Maria Amaro, a que os estudos luso-chineses tanto devem. Celebrámos um protocolo com o Instituto Internacional de Macau, na base do qual pudemos organizar iniciativas conjuntas, de que o recente debate sobre os 25 anos da Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre Macau foi um evento oportuno. Outros se seguirão no futuro.

Procurámos, em palestras e debates, despertar a atenção para as mudanças que na última década e meia vêem ocorrendo na China, fruto de um espantoso desenvolvimento económico e social e do processo de abertura ao exterior, lançado em 1978 pelo timoneiro da Nova China, Deng Xiao Ping. Para essas iniciativas contámos com a simpática colaboração dos Correios de Macau, da Livraria Portuguesa e do Instituto Politécnico de Macau, a cujos responsáveis estou muito grato. Iniciamos, há pouco, um novo ciclo sobre o papel das religiões no mundo contemporâneo, onde já tivemos as perspectivas do Islão e do Cristianismo. Esperamos reatar, em breve, o ciclo com as visões do Judaísmo e das religiões orientais. Afirma-se a ideia que o mundo ficou mais pobre com o recuo das religiões do plano da reflexão e do sentir humano, face ao avanço imparável do consumeirismo e do fascínio pelos bens materiais e pela acumulação doentia de riqueza. A pergunta que fica é se a raça humana progrediu ou se ficámos, por alguma forma, diminuídos do nosso próprio sentido de Humanidade.

Sempre que achei oportuno, fomos deixando alertas às autoridades portuguesas (em Lisboa) quando as relações luso-chinesas corriam o risco de derrapagem por desatenção dos responsáveis em Lisboa ou em Macau ou quando circunstâncias mal avaliadas punham em perigo a segurança e o bem-estar dos nossos compatriotas em Macau. Tenho para mim que os interesses da comunidade expatriada residente em Macau não são sempre idênticos aos da comunidade macaense. Cada organização zela pelos interesses dos que representa. Por isso, as nossas posições e a imagem que transmitimos – como portugueses – deve ser especialmente cautelosa.

Estamos aqui quando e enquanto as autoridades chinesas o acharem útil. Neste particular, a descrição da representação consular portuguesa em Macau é crucial. Como o é a independência e distanciamento das posições político-partidárias que possam estar em disputa em processos eleitorais. Macau é China agora.

Cumpre-me deixar também uma palavra de apreço aos sucessivos Ministros de Negócios Estrangeiros de Portugal –  Dr. Paulo Portas, Dr. Freitas do Amaral, Dr. Luis Amado – e aos gabinetes dos Srs Presidente da República Jorge Sampaio e Cavaco Silva pela simpatia e atenções que tiveram para connosco, ao longo destas duas décadas. A proximidade com Portugal deve ser sempre tentada até para que se perceba que à distância nos sentimos tão portugueses quanto os que residem no território pátrio.

Iremos celebrar no início do Outono, em Lisboa, os vinte anos de vida do Fórum Luso-Asiático. O programa está ainda a ser ultimado mas será, seguramente, uma oportunidade para revermos velhos amigos e conhecidos a partir das memórias que Portugal deixou em Macau como obra civilizacional. Fomos a primeira nação europeia a chegar a terras do Oriente e a aqui criar um entreposto. Fomos a última potência europeia a terminar as responsabilidades que a história um dia nos confiou e a transferi-las para a potência legítima, a República Popular da China.  Agora é tempo de olhar para o futuro.

 

 

Arnaldo Gonçalves é jurista e professor de Ciência Política e Relações Internacionais. Escreve neste espaço quinzenalmente, sempre às quintas-feiras.

 

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