Um querido diabo estrangeiro

“Quando se aventuraram no comércio da China, os ingleses apresentaram-se inevitavelmente perante a atenção dos chineses com a dupla desvantagem de serem estrangeiros e mercadores”. A observação é de Peter Auber, autor de “Analysis of the Constitution of the East-India Company” (1826). 

Auber, Secretário da Companhia de 1829 a 1836, peca apenas, talvez, pela ligeireza dos termos. Mais do que “desvantagem”, a condição de “estrangeiros”, ainda por cima “mercadores”, era um verdadeiro anátema na China. 

Isso mesmo ditava a maneira confucionista de ver o mundo, ordenando ocupações segundo a utilidade para o Estado e para a sociedade. Pela avidez e potencial instabilidade que gerava, o comércio era das menos conceituadas, particularmente o que advinha do mar, perigoso domínio de piratas e contrabandistas.

Depois de primeiros contactos fascinados pela civilização chinesa, a postura dos ocidentais tornou-se progressivamente mais dura, até a arrogância ser a atitude mais comum entre os que, a partir do século XVIII, começaram a chegar ao Império do Meio. Agiam como se tudo e todos tivessem um preço.

Em português, temos as detalhadas descrições das transacções nas feiras de Cantão deixadas pelo frade arrábido José de Jesus Maria a confirmarem as suspeitas de Confúcio. 

A ambição de lucros fáceis inclinava a malícia para o comércio, a razão de todas as relações. Inquinada esta fonte, “e como a natureza humana propende sempre para o mal, se acha cada vez mais corrupta com o veneno mortífero da culpa, indigna de espirituais e temporais felicidades; e que coisa nestes termos se pode esperar, senão uma perversão total daqueles homens”, questionava o beato José de Jesus Maria. 

Cantão era o porto mais procurado pelos “diabos estrangeiros”, concentrados nos subúrbios da cidade, junto ao rio, onde permaneciam durante a época de feira, de Setembro a Março. Estavam confinados às treze feitorias da exclusiva união de comerciantes chineses, Hong, os únicos autorizados a negociar com os ocidentais. Ali o chá era pesado, embalado e exportado para a Europa, juntamente com as sedas. 

No outro prato desta balança desequilibrava uma imensa China que já tinha tudo o que precisava, dispensando a maioria dos produtos que lhe ofereciam. Como observara António Bocarro, ainda no século XVII, “se possuíramos livre só o comércio da China, bastava sem nenhum outro, porque para todo este Oriente serve o que nela há, e para todo o mundo”.

Mas há sempre excepções. Uma era o ópio. Nenhuma quantidade que aportasse na costa chinesa era suficiente para saciar o apetite que ali havia, logo degenerado num destrutivo vício. 

Na China, acredita-se que a droga fez parte de um elaborado plano para quebrar o moral do país, instigando o problema social na origem da grande humilhação consumada nas duas guerras que levaram o nome da maldita substância. Deliberada ou não, foi a consequência. É entre esses estilhaços que ainda vivemos.

Do nevoeiro da História, todavia, desprende-se uma figura algo esquecida e cuja importância as actuais circunstâncias ajudam a realçar, porque desafia maniqueísmos costumeiros e mostra que nada é a preto e branco, nem que bons e maus se dividem com inquestionável exactidão para um lado e para o outro.

De todos os “diabos estrangeiros” que a abertura dos portos atraiu à China, Robert Hart foi provavelmente o único lembrado com amizade no país, onde terá sido o ocidental mais influente a viver na Dinastia Qing. 

Foi em 1854, com apenas 19 anos, que o irlandês desembarcou em Hong Kong. As aptidões linguísticas valeram-lhe um posto no serviço consular britânico da colónia, foi transferido para Ningbo e, depois, para a cidade de Cantão. Cedo, embrenhou-se na língua e cultura chinesas, que iria dominar.

Na ressaca da Iª Guerra do Ópio, a China debatia-se com a rebelião Taiping (1850-1864), o mais sangrento conflito do século XIX. Tendo provocado quase 30 milhões de mortes, foi uma séria ameaça existencial para o Império. Tempos incrivelmente tumultuosos que a enfraquecida corte Qing tentava, a custo, navegar. 

A forçada abertura dos portos e a concessão de privilégios comerciais às potências ocidentais fizeram com que os cargos de liderança do Serviço de Alfândegas fossem praticamente todos ocupados por estrangeiros. Hart estava entre eles, mas empenhou-se em não ser apenas mais um.

Menos de uma década depois de ter chegado à China, foi escolhido para uma das mais poderosas posições no país: Inspector Geral das Alfândegas Marítimas Imperiais. 

A incumbência foi levada à letra. Numa nota distribuída aos trabalhadores pouco depois da sua nomeação, Hart adverte que “deve ser distinta e permanentemente recordado que a Inspecção das Alfândegas é um serviço chinês, não estrangeiro. Como tal, é dever de cada membro comportar-se em relação ao povo chinês e aos governantes chineses de modo a evitar ofensas e mal-estar”. 

Era um contraste acentuado com o antecessor de Hart no cargo (e o sucessor), e a maioria dos estrangeiros na China.

Segundo Edward B. Drew, comissário das Alfândegas contemporâneo de Hart, “subornar ou assediar os agentes era bastante comum entre os mercadores estrangeiros”. Enquanto os agentes enriqueciam, o país empobrecia sem receber os direitos que devia. “A desmoralização era generalizada e o governo parecia incapaz de corrigir a situação”.

Durante os 48 anos em que Hart foi Inspector Geral, as Alfândegas chinesas transformaram-se numa eficiente máquina de arrecadar receitas, que triplicaram, representando 80 por cento do dinheiro que entrava nos cofres do governo, essencial para a modernização do país. Hart pôde, assim, lançar as bases do serviço postal, da ferrovia, do sistema meteorológico e de navegação, com a construção de uma rede de mais de 60 faróis. Não era por acaso que, em Pequim, era tratado como “o nosso Hart”. 

Pelas funções que exerceu, teve também de lidar com os portugueses e com Macau, que chegou a tentar adquirir para a Dinastia Qing, devido ao receio de que o estabelecimento fosse parar às mãos de outros cobiçosos países, dada a delapidada situação em que se encontrava o governo de Lisboa.

Enquanto tudo isto, Hart escreveu, escreveu muito. Tudo o que viveu ficou anotado nos mais de 70 volumes de um exaustivo diário, em inglês e chinês.

É por estes registos íntimos que ficamos a conhecer a atormentada (e falhada) repressão do seu abundante desejo sexual (teve concubinas e filhos ilegítimos), mas também como encarava a História que tinha consciência de viver.

Numa passagem de 1867, Hart escreve que “os ingleses são precisamente o tipo de pessoas para quem os chineses devem olhar com a maior aversão, o ódio mais forte e os sentimentos mais vingativos. Os ingleses arrastaram os chineses para duas guerras, queimaram o seu palácio e somos nós os que mais alto falam sobre a humanidade”. 

Como os seus diários mostram, Hart era humano, demasiado humano. Uma sua grande virtude, porém, foi ter sabido reconhecer que os interesses de um país podem ser os interesses de outro, e que um mundo mais aberto, livre e entretido com o comércio não tende a desatar conflitos. Que Confúcio nos perdoe. 

Hugo Pinto

Jornalista

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Limpar e desinfectar em tempo de pandemia

São muitas as vezes em que me perguntam se lavar as mãos chega. “Se este é um acto que faz diferença? Se convém antes usar uma solução de gel à base de álcool? Ou se é preferível usar sabonete ou sabão em gel? Se usar um gel de mãos antibacteriano é melhor? Mas e então, se usamos soluções de água oxigenada ou antissépticos para desinfectar feridas, não seria melhor usar estes produtos?” Por isso, aqui vão algumas respostas.

Limpar, lavar, e desinfectar, quais são as diferenças?

Podem parecer termos idênticos, e embora tenham alguma similaridade, são acções diferentes com finalidades distintas.

Limpar implica apenas remover sujidade. Tal como quando limpamos a casa e aspiramos o chão ou limpamos o pó dos móveis. Retiramos sujidades maiores que evitam acumulação de ácaros que nos podem incomodar bastante por provocarem alergias, principalmente respiratórias, em alguns de nós. Limpar superfícies e objectos de uso comum é o suficiente para evitar problemas maiores de saúde.

Mas, lavar (limpar com produtos líquidos ou com água) é mais eficaz para algumas situações, pois permite uma melhor limpeza. É por isso que lavamos a roupa, que tomamos banho, que lavamos as mãos. Normalmente, fazemos estas lavagem com sabão ou soluções de sabão que são o ideal para remover sujidades e algumas substâncias que possam conter proteínas ou enzimas que são desnaturadas (têm a sua forma alterada perdendo a sua actividade) na presença do sabão. Esta lavagem remove quantidades maiores de micróbios (principalmente devido à desnaturação proteica), deixando-os apenas com uma presença vestigial com a qual o nosso sistema imunitário sabe lidar (na maioria das vezes).

No entanto, e principalmente em época de pandemia, mesmo apenas uma presença vestigial de alguns microorganismos pode ser fatal, especialmente se nos estivermos a referir a microorganismos patogénicos (causadores de doença) ou a vírus como o da COVID-19. Então, quando queremos garantir que não existem micróbios, temos que desinfectar. A desinfeção é normalmente feita para eliminar e destruir micróbios, através de substâncias químicas sendo a mais comum o etanol, também chamado de álcool etílico, a 70%. Existem por isso inúmeras soluções de gel com etanol, normalmente a 70%. Ou seja, numa mistura com um volume de, por exemplo, 100ml, em que existem 70 ml de álcool. Encontramos no mercado as mais variadas formas, tamanhos, cores e cheiros destas soluções, que se tornaram essenciais desde o início da pandemia. No entanto, a adição de cor ou perfume não tem qualquer influência nos microorganismos. Por isso, prefiro as soluções mais simples com a menor quantidade de ingredientes possíveis, desde que 70% da constituição seja de etanol. Até porque, podem existir componentes mais agressivos para peles mais sensíveis. E foram até já detectadas algumas marcas, não comercializadas em Macau (não se preocupem), com componentes tóxicos.

Contudo, convém ter em conta que a eficácia destes produtos desinfectantes, depende do tipo de componentes na sua constituição, da concentração de álcool utilizada, do volume que é usado e do tempo de contacto na área a desinfectar.

Porque é que o etanol a 70% é recomendado?

Tendo em conta que também se encontra à venda etanol a por exemplo 90%, porque se usa tanto o de 70%? A maior parte de nós seríamos levados a pensar que quanto mais álcool: melhor, mais eficaz para desinfectar e matar microorganismos. Mas existe uma lógica por detrás deste valor específico e não é porque os microorganismos saibam fazer contas. O álcool desinfecta porque desnatura proteínas microbianas em soluções aquosas. Uma certa quantidade de água (30%) no álcool a 70% facilita sua penetração nas células microbianas, amplifica e facilita a sua acção, e garante que o álcool não evapora rápido demais e actua durante tempo suficiente para ser eficaz.

Outros antissépticos

Um antisséptico é uma solução usada para desinfectar tecidos vivos ou pele. Para além das soluções de álcool, anteriormente referidas, e que usamos regularmente como antissépticos para desinfectar as mãos, existem outras opções.

Um exemplo é a água oxigenada (ou peróxido de hidrogénio) que foi usada por muitas décadas como um antisséptico comum. É um produto de composição química simples que também actua como agente clareador e oxidante. Quando as células do sangue entram em contacto com a água oxigenada, elas usam uma enzima (chamada catalase) para converter a água oxigenada (ou peróxido de oxigénio, H2O2) em água (H2O) e oxigénio (O2). Quando em pequenas quantidades, a água oxigenada começa a borbulhar devido à transformação química gerada pela enzima das células do sangue. São essas pequenas bolhas que ajudam a libertar possíveis partículas que estejam nas feridas. No entanto, embora relativamente eficaz, a água oxigenada também destrói células saudáveis dificultando a cura das feridas (principalmente se usada por longos períodos).

Descontaminar e esterilizar, quais são as diferenças?

Estes também podem parecer termos idênticos, e embora tenham alguma semelhança, são acções com propósitos diferenciados. Descontaminar implica remover contaminações, em termos microbiológicos (sim, porque as contaminações também podem ser de natureza química) implica matar o/os microrganismo/os que estão a contaminar, ou em contacto com, uma determinada área.

Esterilizar, implica uma remoção completa de todo e qualquer microorganismo vivo. É o que se faz, por exemplo, com os instrumentos médicos usados nas operações, ou com muitos dos materiais, por exemplo de vidro, nos laboratórios. A esterilização é um processo mais complexo que pode ser feito de várias formas, mas normalmente implica a exposição do que se quer esterilizar, a temperaturas muito elevadas durante um certo período de tempo. Existem equipamentos específicos para estes fins, como é o caso das autoclaves. Estas são uma espécie de panelas de pressão, que garantem que os objectos que têm dentro se mantêm a 121ºC por pelo menos 15 minutos.

O mais importante nas nossas rotinas diárias é: mantermos boas práticas de higiene e percebermos como e porque o fazemos. Para além das técnicas e produtos para controlar e eliminar microorganismos de que vos falei, existem muitos mais e haverá sempre muito mais por contar.

Marta Filipa Simões

Cientista

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O nascimento do Partido Bauhinia em Hong Kong: Significado e Implicações

O recente anúncio da formação do Partido Bauhinia na Região Administrativa Especial de Hong Kong (RAEHK) tem um importante significado político e implicações para o desenvolvimento político da cidade.

Foi noticiado em Hong Kong que o Partido Bauhinia tinha sido criado em Março e registado como empresa em Maio de 2020 por três habitantes de Hong Kong nascidos no continente, nomeadamente Li Shan, Wong Chau-chi, e Chen Jianwen. 

Li nasceu em Sichuan e mais tarde foi educado e trabalhou nos EUA. Licenciou-se na Universidade de Tsinghua pelo seu bacharelato em sistema de informação de gestão, depois adquiriu o seu mestrado em economia na Universidade da Califórnia, Davis, e finalmente obteve o seu doutoramento em economia no Massachusetts Institute of Technology. Li trabalhou na Goldman Sachs em Nova Iorque, Hong Kong e Londres. Trabalhou também no Banco de Desenvolvimento da China de Pequim e no Lehman Brothers Asia, Hong Kong. De 2015 até ao presente, Li é o Director Executivo da Silk Road Finance Corporation Limited em Hong Kong. É membro do Conselho de Administração do Grupo Credit Suisse desde 2019.

Wong Chau-chi também nasceu no continente e mais tarde formou-se no Pomona College com o seu bacharelato em economia e relações internacionais. Prosseguiu os seus estudos de mestrado em política pública na Kennedy School of Government da Universidade de Harvard e estudou história política no St. Anthony’s College da Universidade de Oxford. De acordo com fontes do website, trabalhou como líder empresarial para os departamentos de derivados e valores mobiliários da Goldman Sachs, Citibank e BNP Paribas, bem como para os departamentos de gestão da General Electric e McKinsey. 

Chen Jianwen é um director do Haifu International Finance Holding Group. É membro da Conferência Consultiva Política Popular Chinesa e vice-presidente da Academia Chinesa de Governação (Hong Kong) Industrial and Commercial Professional Alumni Association.

Segundo a plataforma deste novo Partido Bauhinia, procura promover um sistema político “democrático” adequado a Hong Kong com base no Estado de direito e nas liberdades civis “com a realização do sufrágio universal tal como garantido pela Lei Básica”. O partido procura ter mais 50 anos de “um país, dois sistemas” em Hong Kong após 2047, incluindo a realização dos princípios de “amar a China e Hon Kong”, protegendo o Estado de direito, e promovendo um sistema bicameral no qual a Câmara Baixa seria composta por membros eleitos directamente e uma Câmara Alta composta por membros nomeados pelo Chefe do Executivo. O partido também apoia a parceria público-público no financiamento da Visão Lantau Tomorrow, ao mesmo tempo que visa recrutar até 250.000 membros na sociedade de Hong Kong. Como partido político, irá naturalmente nomear e apoiar candidatos para o Conselho Legislativo e para as eleições do Chefe do Executivo no futuro.

As reacções imediatas dos círculos políticos em Hong Kong ao súbito nascimento do Partido Bauhinia variaram de morno a negativo. Alguns partidos e elites pró-governamentais existentes sublinharam que embora estes novos líderes políticos fossem anteriormente desconhecidos politicamente, resta saber como é que o seu partido irá actuar no sistema político da RAEHK. Alguns observadores que são negativos argumentaram que, devido à imposição da lei de segurança nacional, a ascensão do Partido Bauhinia e a sua plataforma de defesa de 50 anos inalterada após 2047 parecem ser “pouco atraentes” para muitas pessoas de Hong Kong, que têm estado “assustadas” após a securitização da RAEHK a 30 de Junho de 2020. Alguns têm argumentado que o Partido Bauhinia parece estar demasiado próximo das autoridades centrais no continente, fazendo assim com que o seu aparecimento pareça uma outra fase do “um país, dois sistemas” na RAEHK, onde o cultivo do “novo povo de Hong Kong” está a aproximar-se. Por “novo povo de Hong Kong”, alguns observadores referiram-se à ascensão das elites de Hong Kong nascidas no continente, que são cada vez mais influentes económica e politicamente, e que são talvez muito mais “correctas” e “leais” politicamente do que muitos habitantes de Hong Kong nascidos na região.

De uma perspectiva objectiva, a formação do Partido Bauhinia na RAEHK é politicamente significativa e indiscutivelmente positiva.

Antes de mais, embora alguns observadores tenham rotulado os líderes do novo Partido Bauhinia como a emergência de “novo povo de Hong Kong”, o partido pode preencher a lacuna existente de todos os partidos pró-estabelecimento e das elites pró-Pequim. O cerne do problema da RAEHK nos últimos anos tem sido o desenvolvimento estático dos partidos pró-estabelecimento, desde a Aliança Democrática para o Melhoramento e Progresso de Hong Kong (DAB), pró-Pequim, até ao Partido Liberal pró-empresarial. O DAB tem permanecido relativamente fraco nas eleições directas do Conselho Legislativo (LegCo), apenas captando no máximo 40 a 45% dos votos e não desafiando a frente democrática que tem permanecido comparativamente forte com quase 50 a 55% dos votos populares. 

O DAB tornou-se de facto tão fraco que outros grupos políticos pró-Pequim tiveram de emergir e ajudá-los eleitoralmente como uma ampla frente unida, incluindo o Novo Partido Popular e a Federação dos Sindicatos. Resta saber se o Partido Bauhinia se tornará mais um grupo “auxiliar” a assistir o DAB como um mecanismo de frente unido na participação eleitoral. No entanto, uma coisa é clara: ambos os partidos têm antecedentes de classe muito diferentes. O DAB tende a ser uma maquinaria de frente unida composta por cidadãos de classe média e baixa, enquanto que o Partido Bauhinia parece concentrar-se nas elites empresariais neste momento. 

Enquanto o Partido Liberal afirma representar os interesses do sector empresarial, não participou nas eleições directas tanto do LegCo como das Câmaras Municipais. Outro grupo empresarial, nomeadamente a Business and Professionals Alliance (BPA), continua a ter influência nos círculos funcionais do LegCo, mas não nas eleições directas. Tanto o Partido Liberal como a BPA têm as suas graves limitações eleitorais.

Como tal, a emergência do Partido Bauhinia é potencialmente significativa. Se conseguir realmente expandir a sua adesão a fim de abraçar mais pessoas nascidas em Hong Kong, e se participar activamente nas eleições directas do LegCo e dos Conselhos Distritais a médio e longo prazo, então talvez a ascensão do Partido Bauhinia possa ser uma força não só a ser considerada, mas também a preencher as lacunas cruciais dos grupos pró-Pequim existentes.

Em segundo lugar, pode argumentar-se que as forças existentes pró-estabelecimento e pró-Pequim têm permanecido tão fraca em termos eleitorais e políticos que não puderam actuar como um intermediário eficaz entre a RAEHK e as autoridades centrais em Pequim. Em termos críticos, uma esmagadora maioria das elites pró-Pequim existentes parece não ter conseguido articular os interesses e expressar os pontos de vista de muitos cidadãos comuns de Hong Kong ao governo central. Como tal, se o Partido Bauhinia puder falar pelos interesses e preocupações de mais pessoas de Hong Kong, pode e irá tornar-se uma nova força pró-Pequim e pró-estabelecimento estreitando o fosso entre alguns Hongkongers e as autoridades centrais. 

Terceiro, em termos de plataforma eleitoral, o Partido Bauhinia parece ser mais audacioso do que a sabedoria convencional supõe. O facto de falar de uma legislatura bicameral, com uma câmara baixa totalmente eleita directamente e uma câmara alta composta por membros nomeados, aponta para um passo progressivo em frente. Nenhum dos grupos pró-estabelecimento existentes mencionou a necessidade de reforma política na RAEHK após os protestos perturbadores de 2019. Embora a defesa do Partido Bauhinia de ter a Câmara Alta composta por membros nomeados pelo Chefe do Executivo possa talvez ser melhorada e democratizada ainda mais, a ideia de ter uma Câmara Baixa composta por membros totalmente eleitos directamente é uma plataforma ousada sem rival por quaisquer outras forças pró-estabelecimento existentes. Ter uma câmara baixa inteiramente eleita por sufrágio directo pode e irá resolver o problema de longa data das disputas incessantes entre os democratas e as autoridades da RAEHK. No entanto, o desafio para o Partido Bauhinia é ponderar como tornar os métodos de selecção da Câmara Alta talvez mais democráticos e estabelecer pontes entre a Câmara Alta nomeada e a Câmara Baixa totalmente eleita por sufrágio directo. Por exemplo, a influência política da câmara alta pode ser restringida pelo poder de vetar um certo número ou tipo de contas aprovadas anualmente pela câmara baixa. Ou pode ser criada uma comissão entre as duas casas para martelar soluções para projectos de lei contestados. Por outras palavras, o desenho institucional das relações entre a câmara alta e a câmara baixa pode e deve ser mais aperfeiçoado.

Em quarto lugar, ao contrário dos partidos e grupos pró-negócios existentes que se agarram ao status quo económico e político, o Partido Bauhinia tem falado da necessidade de restringir a influência dos promotores fundiários na RAEHK. Não é claro se esta questão será mais refinada, mas as contradições sociais da RAEHK desde 1997 têm sido agravadas pelo aumento da diferença de rendimentos entre ricos e pobres. Muitos membros das classes baixas e trabalhadoras atribuem a culpa às poderosas elites terrestres, mas o governo da RAEHK pouco tem feito para resolver a questão. Embora o controlo do arrendamento seja estudado por um comité recentemente formado, muitas pessoas pobres ainda pagam alugueres elevados em unidades com condições e higiene deficientes. Embora a China continental esteja a dar importância à prevenção de monopólios, o desenvolvimento fundiário da RAEHK continua a ser dominado pela poderosa classe fundiária. O facto de o Partido Bauhinia apontar para o poderoso papel da classe fundiária é talvez uma observação aguçada e ousada sem rival por parte dos grupos pró-negócios existentes, que têm evitado discussões sobre a raiz das contradições sociais e do descontentamento público na RAEHK.

Em quinto lugar, é talvez o momento oportuno para que, após 23 anos da entrega, mais gente nascida no continente de Hong Kong seja encorajada a participar na política da RAEHK. Se o “novo povo de Hong Kong” puder unir-se aos habitantes locais de Hong Kong, o fenómeno passado de testemunhar em público uma minoria de localistas que discriminavam os visitantes continentais irá, assim o esperamos, desvanecer-se. Afinal de contas, muitos habitantes locais de Hong Kong têm os seus pais nascidos no continente e emigrados para Hong Kong. Se os líderes e membros do Partido Bauhinia se identificam como o povo de Hong Kong, não importa se nascem no continente ou não. Pelo contrário, a participação sociopolítica activa do povo de Hong Kong nascido no continente deveria ser abraçada para realizar a ideia de “povo de Hong Kong governando Hong Kong”.

Em suma, a ascensão do novo Partido Bauhinia tem vindo a acrescentar um elemento de excitação à paisagem política seca da RAEHK, especialmente após a promulgação da lei de segurança nacional em finais de Junho de 2020. Tem um enorme potencial para preencher as lacunas existentes no desempenho decepcionante dos actuais partidos pró-Pequim e pró-estabelecimento, tornando-se um intermediário muito mais eficaz que pode colmatar as lacunas de comunicação e expectativas entre muitos Hongkongers e as autoridades centrais, considerando a questão da reforma política de uma forma muito mais imaginativa e ousada do que os grupos pró-governamentais existentes, brincando com a ideia de lidar com o sério fosso entre os poderosos ricos e os impotentes cidadãos comuns, e agindo como um símbolo de reunião do povo de Hong Kong, nascido no continente e nascido no local. De facto, resta saber se o Partido Bauhinia será capaz de alcançar um avanço sócio-político nos próximos anos.

Sonny Lo

Autor e Professor de Ciência Política

Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Macau News Agency/MNA

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Recordando a minha querida irmã Juliana

Há 30 anos que trabalhava com a irmã Juliana no Centro Bom Pastor. A forma como nos conhecemos foi, de alguma forma, espantosa, embora eu já a conhecesse pelos serviços que tem vindo a prestar; mas um dia, quando eu estava na rua, cruzámo-nos e perguntou se eu conhecia alguma assistente social disposta a trabalhar para ela e para as irmãs Bom Pastor e eu então disse-lhe que podia contratar-me e que estava disposta a trabalhar para ela. Depois disso decidimos estabelecer juntas o Centro Bom Pastor a partir de 1990. 

No início, era uma relação patroa-empregada, mas lentamente a nossa relação tornou-se numa boa parceira de boas amigas. A relação era tão próxima como uma relação mãe-filha. Em todos estes anos, pude aprender e testemunhar com ela o serviço prestado sem interesse próprio e a dedicação para com as mulheres e crianças que servimos. Por exemplo, ela foi observadora das nossas mulheres quando se tratava das suas necessidades, ela dava o seu melhor para satisfazer as necessidades básicas de cada pessoa, a fim de ser suficientemente competente para se ajudar a si própria. Lembro-me de que a cada novo ano ela convidava os residentes a comerem juntos um ‘yum cha’ ou buffet para desfrutar do amor e dos cuidados que damos. Para que se sintam respeitadas. Isto é algo que tenho testemunhado em todos estes anos e que penso que nos faz distinguir de outros serviços sociais.

Agora que ela faleceu, além de me sentir devastada, o que posso fazer agora é organizar o funeral como que estando a acompanhá-la uma última vez. Apesar de me sentir triste, vou defender os últimos desejos da minha irmã. Na noite anterior ao seu internamento no hospital (8 de Dezembro), ela ainda me enviou uma mensagem dizendo que estava realmente ansiosa por celebrar o 30.º aniversário do Centro Bom Pastor. Porque ela queria dar graças a Deus e a todos aqueles que têm ajudado ao longo dos 30 anos. Outro desejo que ela tinha era o de ajudar uma mãe birmanesa, que ela visitava na prisão. Ela esperava ajudá-la a regressar à sua cidade natal, assim que saísse da prisão. Embora esta mulher tenha cometido um erro, a irmã acreditava que ainda havia valor nela, fazendo jus ao nosso lema: uma pessoa tem mais valor do que o mundo inteiro.

A irmã Juliana acredita que o povo que vem pedir ajuda precisa de nós para as suas necessidades básicas, e isto é mais importante para manter os seus direitos humanos básicos e a sua dignidade. Até ao último minuto da sua vida, ela ainda contribuiu com o seu amor para os mais necessitados. Tal como o caso da mulher birmanesa, antes de falecer, ela continuou a ir à prisão para a visitar e dar-lhe apoio. Ela continua a dar o seu amor às pessoas até ao último minuto da sua vida. Embora tivéssemos ideias e pontos de vista diferentes, conseguíamos partilhar e aceitar as nossas diferenças.

Como directora, ela deu-me mais liberdade, oportunidade e apoio para me desenvolver e desenvolver o meu potencial. Ela utilizou uma forma diferente aumentar a consciencialização da sociedade e prestar mais atenção e cuidado aos mais desfavorecidos. Aprendi tanto com ela. Seguirei a sua atitude no sentido de ajudar as pessoas mais vulneráveis.

Debbie Lai

Directora do Centro Bom Pastor

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A política de Biden em relação à China, Taiwan e Hong Kong

Embora o mundo ainda esteja a observar o resultado do colégio eleitoral dos EUA nas eleições presidenciais amargamente contestadas, a próxima administração Joe Biden irá provavelmente adoptar uma mistura de política de contenção e envolvimento em relação à República Popular da China (RPC), uma abordagem de apoio contínuo à República da China sobre Taiwan, e uma política de direitos humanos sobre a Região Administrativa Especial de Hong Kong (RAEHK).

A 2 de Dezembro, a Comissão de Análise Económica e de Segurança EUA-China (CESRC) publicou um relatório anual sobre a China ao Congresso, incluindo a sua avaliação da RPC, Taiwan e Hong Kong. Enquanto a sua secção sobre Hong Kong foi muito crítica em relação à evolução da situação, a secção sobre Taiwan foi pontuada pela defesa de uma nova ideia de que o Director do Instituto Americano em Taiwan (AIT) deveria ser directamente nomeado pelo Presidente dos EUA e depois aprovado pelo Senado. Se esta ideia fosse adoptada, significaria uma elevação de facto do estatuto do Director do AIT a um nível de “embaixador”. Além disso, o relatório sugeria que o Congresso deveria, através da lei revista de Taipé, solicitar ao governo dos EUA que se opusesse a qualquer tentativa de resolução do estatuto de Taiwan por qualquer tentativa de ser feita em organizações internacionais em que os EUA são membros. Finalmente, o relatório apelava para que o Congresso incluísse Taiwan nos esforços multilaterais de coordenação e reforço da cooperação e segurança da cadeia de abastecimento através da expansão do programa Quadro Global de Cooperação e Formação ou da criação de um novo acordo multilateral com democracias com os mesmos objectivos.

Se algumas das ideias acima referidas fossem adoptadas e implementadas, pode-se prever que a RPC teria provavelmente fortes reacções aos EUA.

Em 2 de Dezembro, o Presidente eleito dos EUA, Joe Biden, observou que, depois de se tornar formalmente o Presidente, não retiraria as tarifas dos EUA sobre produtos chineses que foram o resultado da primeira fase das negociações comerciais EUA-China. Claramente, a política comercial mais dura da administração Trump em relação à China iria continuar no novo governo Biden, pelo menos a curto prazo.

Após a publicação do relatório do CESRC, a guerra de palavras entre a China continental e Taiwan parecia intensificar-se. A 4 de Dezembro, o Gabinete para os Assuntos de Taiwan do Conselho de Estado da RPC (TAO) advertiu o Partido Democrático Progressista (DPP) contra qualquer interferência nos assuntos de Hong Kong, pois as autoridades do DPP tinham feito comentários sobre a prisão de Joshua Wong, Agnes Chow e Ivan Lam, que foram condenados a 13 meses e meio, dez meses e sete meses, respectivamente, pelo tribunal de Hong Kong pela sua mobilização de algumas pessoas para cercar a sede da polícia em Junho de 2019. Uma investigadora do continente, Sheng Jiuyuan, da Academia de Ciências Sociais de Xangai, criticou o DPP por não compreender o facto de que as pessoas de Hong Kong que violaram a lei devem ser penalizadas legalmente.

A 5 de Dezembro, um órgão de comunicação social pró-Pequim da RAEHK criticou a administração do DPP em Taiwan por proibir a importação de um livro infantil continental, o qual, de acordo com três legisladores do DPP, conduziu uma “frente cultural unida” e utilizou caracteres chineses simplificados. O Kuomintang (KMT) em Taiwan criticou o DPP não só por ter exagerado na reacção ao livro infantil publicado no continente, mas também por ter agido como o Imperador Qin Shihuang que ordenou a “queima” dos clássicos confucionistas. O livro infantil visava retratar como uma criança interagia com o seu pai, que era médico que lidava com o surto de Covid-19, e que não podia regressar a casa para desfrutar do Ano Novo Chinês Lunar. As relações entre a RPC e Taiwan deterioraram-se de tal forma que mesmo um livro infantil importado para Taiwan se tornou fortemente politizado.

A 5 de Dezembro, Wang Zaixi, um antigo director-adjunto do TAO do Conselho de Estado, participou numa conferência anual do Global Timesand observou que a perspectiva de reunificação pacífica com Taiwan está a tornar-se mais remota do que nunca. Acrescentou que as relações entre os dois Estreitos estão agora no pior momento dos últimos setenta anos, principalmente devido às “relações conspiratórias mútuas entre Taiwan e os EUA”. Wang disse que três factores estão também a moldar as relações entre os dois Estreitos, nomeadamente o actual sistema político de Taiwan, o alvo do diálogo e da negociação pacífica, e a ecologia social de Taiwan. 

Wang criticou a administração do DPP por “conspirar” com os EUA e tornar-se o “jogo de xadrez americano”. Além disso, Taiwan tornou-se dominado pela política partidária, que “alterou” o alvo do diálogo pacífico entre a RPC e os EUA. Finalmente, Wang observou que a ecologia social de Taiwan mudou de tal forma que nenhum partido estaria disposto a discutir com o continente sobre a questão da reunificação pacífica, pois ao fazê-lo seria rotulado como os “agentes da RPC”. Wang acrescentou que a reunificação com Taiwan não pode ser um jogo de longa espera; em vez disso, deve haver o uso da força militar como “uma função intimidante” para promover o processo de reunificação.

As observações de Wang foram significativas. Ele identificou os EUA como o principal obstáculo para as relações entre as duas margens do Estreito. O desenvolvimento da política partidária é visto como um obstáculo às relações entre os dois lados do Estreito, a menos que o KMT regressasse ao poder presidencial num futuro distante. Por último, a RPC deve utilizar a força militar como moeda de troca para exercer uma pressão contínua sobre Taiwan.

A observação de Wang de que o DPP está deliberadamente ao lado dos EUA tem algumas provas. A 7 de Dezembro, foi noticiado que o governo do DPP em Taiwan iria formar uma delegação para assistir à cerimónia inaugural de Biden como o próximo presidente dos EUA. Já a 8 de Novembro, o líder de Taiwan Tsai Ing-wen tinha felicitado Biden como presidente eleito – uma medida tomada dezassete dias antes da mensagem de felicitações do Presidente da RPC Xi Jinping a Biden. 

Mais importante ainda, Taiwan decidiu recentemente comprar 300 mísseis aos EUA, que de Maio a Novembro já tinham feito cinco anúncios de transacções de armas a Taiwan, para aumentar a capacidade de dissuasão da ilha em relação à China continental.

Em resposta às vendas de armas dos EUA a Taiwan, a 8 de Dezembro, o TAO do Conselho de Estado da RPC e o Ministério dos Negócios Estrangeiros opuseram-se à iniciativa americana. Sob a administração do Trump, houve até agora onze transacções de armas dos EUA para Taiwan. É de prever que a administração Biden não se afaste significativamente das práticas republicanas, embora a frequência possa diminuir.

A 4 de Dezembro, o Secretário de Estado norte-americano Mike Pompeo anunciou que o governo norte-americano terminou vários programas de intercâmbio entre a RPC e os EUA, dizendo que estes programas foram utilizados como uma “ferramenta” pela China para exercer o seu “poder suave”. Estes programas incluem o Programa Educativo e Cultural de Hong Kong. O agravamento das relações EUA-China já foi entrincheirado antes que Joe Biden jure formalmente como o próximo Presidente dos EUA. Durante o crepúsculo da administração Trump, Pompeo deu um passo decisivo para contrariar a RPC e isto já deixou um legado ao novo governo de Biden.

A 7 de Dezembro, o Ministro dos Negócios Estrangeiros da RPC, Wang Yi, realizou uma videoconferência com uma delegação do Conselho Empresarial EUA-China, afirmando que esperava um desenvolvimento “estável e saudável” nas relações EUA-China. Acrescentou que ambos os lados deveriam manter o espírito de não-conflito, não-conflito, respeito mútuo e cooperação vantajosa para ambas as partes. Pode dizer-se que Wang Yi ofereceu o seu ramo de oliveira à nova administração Biden.

Depois de Joe Biden ter nomeado Lloyd Austin para o próximo Secretário da Defesa, um artigo escrito pelo analista militar Wei Dongxu no Global Times disse que as “políticas militares de Austin serão racionais” porque ele é “um oficial militar tradicional e pragmático”. Além disso, Wei acreditava que os EUA sob Biden iriam adoptar uma mistura de contenção e empenhamento em relação à China.

De facto, durante a campanha eleitoral presidencial, Biden mencionou que gostaria de envolver a China em organizações multilaterais, vinculando o governo da RPC às regras e normas na arena internacional. Da mesma forma, a vice-presidente eleita Kamala Harris observou na sua campanha eleitoral que os EUA gostariam de envolver a China em vez de adoptarem uma política de confrontação aberta. Criticou Mike Pence e a administração Trump por prejudicarem alguns americanos ao imporem tarifas aos produtos chineses.

No entanto, se Biden já mencionou que não iria alterar as tarifas sobre os produtos chineses pelo menos a curto prazo, espera-se que o recém-nomeado representante comercial dos EUA e Katherine Tai, nascida em Taiwan, seja continuamente rigoroso e de princípios com a China.

Como tal, é previsível que a nova administração de Biden seja muito provavelmente caracterizada por uma política de congestão, nomeadamente uma mistura de contenção e compromisso. A contenção continuará à medida que a China for sendo vista pelos EUA como uma verdadeira ameaça militar, mas o empenhamento também regressará utilizando o multilateralismo. 

Coincidentemente, a China sob o Presidente Xi Jinping tem vindo a enfatizar a importância do multilateralismo na sua diplomacia internacional. Por conseguinte, é muito provável que tanto a China como os EUA se envolvam um com o outro e debatam sobre várias questões em organizações multilaterais.

Dadas as fortes reacções americanas à promulgação da lei de segurança nacional na RAEHK em finais de Junho de 2020, e à punição de alguns manifestantes pelas suas actividades em 2019 e 2020, pode prever-se que o governo dos EUA, especialmente o Congresso, continuará a adoptar uma política de direitos humanos de linha dura em relação a Hong Kong, tal como sancionar funcionários tanto da RPC como da RAEHK, ao mesmo tempo que dá mais protecção aos dissidentes políticos de Hong Kong. 

Sobre a questão de Taiwan, a administração Biden irá provavelmente adoptar uma estratégia com duas vertentes, continuando a vender armas sofisticadas para aumentar a capacidade militar de Taiwan e apoiando Taiwan a aderir a algumas organizações multilaterais sob a liderança dos EUA. Houve relatos sobre a possível iniciativa de Biden de estabelecer uma cimeira de democracias. Se a administração Biden o fizer, Taiwan será muito provavelmente convidado a ser membro da cimeira. No entanto, resta saber se o cargo de Director da AIT seria promovido a nível de “embaixador”, pois uma tal medida seria provavelmente provocadora do ponto de vista político.

Em conclusão, a política da administração Trump em relação à China e Taiwan terá continuidade no próximo governo Biden, nomeadamente a política comercial sobre a China e a venda de armas a Taiwan. Acima de tudo, Biden e os seus subordinados irão provavelmente adoptar uma mistura de contenção e empenhamento em relação à RPC. No entanto, o multilateralismo será um elemento comum entre os EUA e a China, com a possibilidade de envolvimento mútuo, diálogo e debate. Contudo, o multilateralismo é uma coisa, mas a expectativa americana de vincular a RPC às regras e normas internacionais será outra questão litigiosa e complexa que ainda terá de ser observada.

Sonny Lo

Autor e Professor de Ciência Política

Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Macau News Agency/MNA

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Macau, na saúde e na doença

“Imagine-se um amphibio raro, de excepcional beleza, deitado sobre um flanco numa praia de lodo, e soerguendo do mar a cabeça num gracil torcicolo.

O dorso, mostrando ao sol a pelle de inestimavel preço, inflecte-se ligeiramente, como se quizesse occultar na donairosa postura uma ulcera saniosa que lhe corroe o ventre semi-submerso. Pulsa-lhe forte o coração; vive, mas preso no lodo. A nutrição, porém, resente-se com a extensão e a chronicidade da ulcera,

Assim é Macau. A Penha é a cabeça, que mal se demarca do collo; a face ventral perde-se no porto interior; a ulcera alastra-se pelo Bazar, Tarrafeiro, Patane, San-kiu, Sa-kong e pelas varzeas; e o dorso é a pittoresca e sadia contra-costa. O açoriamento do porto refreia-lhe a actividade, compromette-lhe a vida de relação; e a ulcera, urbana e social, sem tendência para a cura, alastra-se em constante suppuração, cachetisa-lhe as forças vitaes, definha-lhe de continuo a vida vegetativa”.

Foi com esta imagem de uma criatura algo mitológica, estranhamente formosa e debilitada, que o médico António do Nascimento Leitão procurou impressionar quem o ouvia falar sobre “A Sanidade de Macau”, em Fevereiro de 1909, no Grémio Militar de Macau (assim chamado antes de se converter ao clubismo anglicista).

Era uma visão com pretensões literárias, mas a questão de fundo andava longe da ficção. Na ínfima Macau, encontrou-se sempre espaço para divisões – até para separar a terra sadia da terra insalubre. 

Essa delimitação, ou confinamento (como também é apropriado dizer), foi prática em Macau desde os primórdios, continuamente devida a origens étnicas. Foi desse modo que se estabeleceu a divisória entre a cidade cristã, europeia, e o Bazar, o “bairro china”. 

Apesar de a cidade das muralhas se ter habituado a que essas defesas se esboroassem com a passagem do tempo, permeáveis mais à natureza humana do que dos elementos, Macau mantinha-se no século XX desigualmente repartida entre a parte ocidental e a oriental, que eram mais do que meras referências geográficas. 

Os portugueses concentravam-se no extremo da península que ia da Igreja de Santo António, no Patane, à Fortaleza do Monte de S. Paulo, e daí até ao mar. Por ali, construíram-se as igrejas e os conventos, estandartes que chamavam a atenção de quem se aproximava de barco ao estabelecimento. 

Voltada para o porto exterior, pela Praia Grande, a cidade cristã tinha vistas largas, arejadas, e contrastava com o que estava do outro lado, para trás, a norte e na zona oriental da península, por onde se estendia a cidade chinesa com as suas ruas estreitas, becos, um céu rasante.

Pelo porto interior acumulavam-se as povoações ribeirinhas montadas em palafitas. Com o tempo, estas aldeias haviam de cobrir o rio, estreitado com sucessivos aterros, trepar colinas e azangar muralhas.

Mas por mais que se alastrasse, a cidade chinesa condensava a sua essência no Bazar, termo carregado de exotismo que a imaginação ocidental fixou como símbolo, por excelência, do Oriente.

“Tudo é alegria no Bazar”, suspirava Jaime do Inso nas suas “Cenas da Vida de Macau” (1941), fascinado com “a policromia das lojas; o vaivém constante duma população activa mas que desconhece precipitações; os vasos de flores; os leitões assados e os patos salgados pendurados nas portas como uma tentação à voracidade dos chineses”. Para o oficial da Marinha portuguesa, o Bazar representava a “China imutável e milenária, sórdida mas estonteante, que atrai, que se namora, que nos narcotiza e encanta”. 

Era uma quase perfeita oposição ao que (não) se passava na parte alta de Macau, do “sossego do burgo português setecentista, das igrejas e travessas, do ambiente provinciano, duma grandeza decaída com a perda do antigo comércio e navegação”.

Este deslumbramento com o “bairro china”, contudo, aparece tardio nos escritos acerca de Macau, e, mesmo depois disso, o olhar ocidental sobre o Bazar continuou a oscilar entre a atracção e o repúdio. 

Na conferência de 1909, o médico Leitão descrevia o Bazar como um conjunto de  “ruelas sem ar [que] correm na penumbra”, de uma densidade claustrofóbica, onde “por todas moram a miséria e o vício”, concorridas que eram as “íntimas comunicações entre elas e as artérias mais amplas e de maior movimento: o do jogo que conduz à desgraça; a do ópio à doença; a do crime ao estiolamento da prisão; e a da morte à vala misterioso do sepulcro”. 

Quase uma década mais tarde, outro médico, J. António Filipe de Morais Palha, autor de “Macau e a Saúde Pública” (1917), insiste na imagem de uma cidade dividida entre a doença e o vigor. 

Assim, “as belas colinas da Guia, Penha e Monghá prestam-se à fundação de admiráveis bairros europeus, essencialmente salubres”, enquanto “a insalubridade do solo de Macau reside principalmente nos terrenos baixos, abarrotados de húmus”.

Mas tinha sido ali que a cidade florescera. Do lodo, qual lótus. “Como oferecessem melhores condições de abrigo contra os ciclones, que frequentemente e desapiedadamente varrem a costa da China, foi ali que o povo chinês se estabeleceu em formigueiro, formando os principais e os mais populosos bairros de Salong, Sankiu, Patane, Tarrafeiro, Bazar e Praia de Manduco”.

A vitalidade, todavia, podia ser enganadora. “Sem drenagem, e possuindo apenas uma canalização de esgoto superficial, deficiente e incompleta, hoje interrompida em muitos pontos, deixaram-se impregnar de todos os despejos domésticos, líquidos e sólidos, incluindo os excrementos de gente e de animais deitados à rua com um desplante e desvergonha incríveis, tornando-se numa putrilagem, onde pululam toda a espécie de germens e onde se passam toda a qualidade de fermentações”.

De forma sistemática, desde as últimas décadas do século XIX, os bairros chineses foram sendo identificados como focos de doenças. Nos relatórios das sucessivas epidemias que assolaram Macau, deixaram-se sugestões que iam além das medidas meramente sanitárias, já no sentido do “urbanismo higiénico”: que se rasgassem largas avenidas, plantassem árvores, recolhesse o lixo, construíssem casas com melhores condições e uma rede de saneamento.

Havia de generalizar-se a expectativa de que a face da cidade fosse profundamente alterada. Como escreve Morais Palha, “de há muito que esses bairros [chineses] têm os seus dias contados. Na bela Avenida Almeida Ribeiro ficou iniciado o saneamento do mais importante em extensão, população e riqueza, bairro do Bazar Chinês. A estes seguir-se-ão outros, e temos fé de que brevemente a colónia se expurgará de todos os seus focos de infecção e surgirá bela e radiante, como verdadeira pérola que é do extremo-oriente, onde justamente goza os créditos de ser das mais saudáveis”.

Da década de 1880 em diante, Macau passou por um processo de renovação urbana que não tinha paralelo na história do território e isso devia-se, em grande parte, à necessidade de combater epidemias (a outra grande razão era o porto interior).

Os primeiro exemplos dessa modernização, e alargamento da cidade, são os bairros de São Lázaro e Volong, construídos nos aterros da antiga horta que ali havia. 

Em 1882, apelava-se à “remoção das imundícies acumuladas naquele bairro”, recorda José Gomes da Silva no relatório de 1895 sobre a peste bubónica. De acordo com este director dos Serviços de Saúde, “a obra de saneamento que primeiro se impunha era a demolição e aterro da horta do Volong”, que o médico atestava ser “um local talhado adrede para uma orgia de bactérias e vibriões”.

Literalmente, o progresso abria caminhos. A cidade de colinas rochosas, áridas, cobria-se de um verde prazenteiro. A paisagem era domada por um imaginário iluminado de placidez, largueza e harmonia. 

Depois de São Lázaro e Volong, foi saneada também a várzea de Tap Seac, considerada outro dos focos de infecção.

Fronteira a esses campos no principal vale da cidade construiu-se a Avenida Vasco da Gama (hoje a Av. de Sidónio Pais e a Rua de Ferreira do Amaral), acompanhada, de um lado e do outro, de filas de árvores (algumas ainda lá estão). “Apesar de recentemente plantadas, produzem já um efeito muito agradável e que quando se tornarem frondosas formarão extensas abóbadas de folhagem transformando aquele local num retiro fresco e aprazível”, anunciava-se no “Jornal Único” que celebrava, em 1898, o 4.º centenário do descobrimento do caminho marítimo para a Índia. “Esta Avenida ou esplanada, que se acha ainda por assim dizer em via de formação, veio preencher uma grande lacuna que havia na cidade formada de ruas estreitas e de muitos becos sem saída dando um desafogo aos habitantes de Macau”.

Para as autoridades portuguesas de então, era mais do que simbólica homenagem a Vasco da Gama. O mostrengo, tanto o que surge à cabeça deste texto como o outro das Tormentas, tinham passado à história. 

Hugo Pinto

Jornalista

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O regresso da Cabeça de Cavalo de Bronze ao Antigo Palácio de Verão

O regresso de uma cabeça de cavalo de bronze ao Velho Palácio de Verão da China no dia 1 de Dezembro assinalou não só o sucesso do esforço chinês na aquisição dos tesouros perdidos que foram saqueados por países estrangeiros durante a dinastia Qing, mas também a determinação da República Popular da China (RPC) em recuperar os tesouros nacionais como meio de reforçar os sentimentos patrióticos entre os chineses no continente, Hong Kong e Macau.

O Velho Palácio de Verão foi incendiado pelas forças britânicas e francesas durante a segunda expedição anglo-francesa à China em Outubro de 1860, levando à tremenda perda de tesouros nacionais e artefactos da dinastia Qing. Durante a rebelião dos Boxer em 1900, oito países estrangeiros invadiram a China, suprimiram os Boxers e saquearam novamente os Yuanmingyuan. As famosas doze cabeças de bronze animal, que eram partes de uma fonte no Palácio, foram roubadas por soldados e oficiais militares estrangeiros.

A partir de 2020, apenas sete das doze cabeças de bronze regressaram à China, incluindo as cabeças de rato, boi, tigre, coelho, cavalo, macaco e porco. 

Em 2000, o China Poly Group investiu 33 milhões de HK$ para adquirir as cabeças de bronze de boi, tigre e macaco durante um leilão em Hong Kong. Estão agora armazenadas no Museu Poly Art de Pequim.

Em 2003, o governo da RPC criou um fundo especial para salvar os tesouros nacionais saqueados no estrangeiro e para procurar o paradeiro da cabeça do porco. Em Setembro de 2000, Stanley Ho, o magnata empresarial de Hong Kong e Macau, doou 6 milhões de yuan directamente ao fundo, que acabou por adquirir a cabeça do porco a um coleccionador americano e devolveu-a ao Museu Politécnico de Arte.

Em 2007, a cabeça de porco apareceu num leilão de Hong Kong realizado pela Sotheby. A Administração Nacional e do Património Cultural da RPC tentou intervir. Stanley Ho investiu HK$69 milhões para adquirir a cabeça de cavalo, que mais tarde foi devolvida ao Palácio Velho de Verão em 2019. A devolução da cabeça de cavalo de bronze em 2019 foi calendarizada de modo a celebrar o 70º aniversário da RPC e o 20º aniversário da devolução da soberania e administração de Macau à China – uma celebração tripla que aponta para a ascensão da RPC e a sua inversão da humilhação nacional da dinastia Qing.

Em 2009, um coleccionador francês Pierre Berge vendeu as cabeças de rato e de coelho num leilão onde um empresário chinês Cai Mingchao utilizou 31,4 milhões de euros para a comprar. No entanto, mais tarde, Cai recusou-se a pagar por isso, alegando que as duas cabeças tinham sido roubadas da China. As cabeças de rato e de coelho mudaram de mãos para a propriedade de outro empresário francês, François Pinault, que era um chefe da Christie’s que tinha colocado as cabeças em leilão, mas que em 2013 anunciou doá-las e devolvê-las à China. Em Junho de 2013, a vice-ministra da RPC Liu Yandong e François Pinault assistiram a uma cerimónia de abertura da exposição das cabeças de ratos e coelhos no museu nacional da RPC.

Actualmente, faltam cinco cabeças de bronze – dragão, cobra, cabra, galo e cão. Em Dezembro de 2018, a cabeça de dragão apareceu num leilão em França e um empresário chinês utilizou 2,4 milhões de euros para a adquirir, mas a sua autenticidade continua por provar. Um membro da Associação Académica Profissional chinesa Yuanmingyuan, Liu Yang, disse em Dezembro de 2018 que o anterior proprietário da cabeça do dragão tinha sido um funcionário francês na China durante o século XIX, deduzindo assim que a cabeça de bronze era real. No entanto, um investigador do museu de Xangai, Zhou Ya, observou que ninguém sabia como era a cabeça do dragão, e que não havia qualquer registo histórico. Havia também um rumor que dizia que a cabeça do dragão era talvez propriedade de um coleccionador em Taiwan.

O governo da RPC utilizou a campanha de recuperação das cabeças de bronze de três maneiras. Primeiro, o antigo Palácio de Verão é agora um parque arqueológico e patrimonial nacional para que possa ser “uma base de demonstração para a educação patriótica”, de acordo com a Administração Nacional e do Património Cultural da RPC (NCHA). Em 2000, o governo municipal de Pequim e a NCHA decidiram reestruturar Yuanmingyuan, onde haveria um museu renovado, um museu de história da dinastia Qing e um centro de investigação para turistas apreciarem os locais e compreenderem o contexto histórico. No entanto, o complexo trabalho de renovação foi, em certa medida, dificultado pelo surto de Covid-19 desde o início de 2020.

Em segundo lugar, o governo da RPC incentiva os empresários patrióticos a fazer doações ao Yuanmingyuan para o seu trabalho de recuperação parcial. Por exemplo, em Março de 1993, um empresário de Hong Kong, Tsang Hin-chi, doou 8 milhões de yuan-chi a Yuanmingyuan para o trabalho de reconstrução das suas muralhas. Em Maio de 2019, Tsang assistiu a uma cerimónia de abertura do muro que ligava três jardins. A direcção de Yuanmingyuan expressou a sua profunda gratidão a Tsang pelo seu “elevado espírito de patriotismo”.

Assim, a recuperação de artefactos e o trabalho de reconstrução do Velho Palácio de Verão necessitam do apoio e doação de empresários chineses, incluindo os de Hong Kong e Macau.

Em terceiro lugar, alguns peritos no estudo de Yuanmingyuan disseram que apenas 20% dos tesouros nacionais perdidos se encontram na RPC, enquanto 80% deles permanecem em países estrangeiros, incluindo museus estrangeiros. Como tal, é quase uma tarefa impossível recuperar todos os tesouros nacionais perdidos de Yuanmingyuan.

Recentemente, duas facções compostas por peritos debateram sobre como Yuanmingyuan deve ser abordado. Uma facção argumentou que as ruínas de Yuanmingyuan deveriam ser retidas para mostrar ao povo chinês como os países estrangeiros saquearam a China sob a dinastia Qing durante a era da invasão imperialista e da pilhagem cultural. A outra facção, contudo, argumentou que Yuanmingyuan deveria ser renovado e restaurado para demonstrar a mistura glamorosa da arte chinesa, arquitectura, pintura, escultura, jardim, pagodes e lagos.

Entre os dois argumentos da facção, a direcção do Palácio Velho de Verão tem vindo a realizar um trabalho de recuperação parcial, restaurando alguns dos jardins e reconstruindo alguns portões do palácio. Na prática, não é fácil rejuvenescer todas as áreas do Palácio de Verão Velho, pois pelo menos uma área perto do portão principal do palácio tornou-se um distrito residencial. Além disso, enquanto 86 sítios exigem trabalhos de manutenção regulares, outros sítios são muito mais complexos do que a sabedoria convencional supõe, incluindo 56 sítios de construção, 21 sítios de pedra e 9 sítios de solo abandonado.

Em 2015, um homem de negócios na província de Zhejiang, Xu Wenrong, investiu 30 mil milhões de yuan na construção de uma réplica do antigo Palácio de Verão em Hengdian, Zhejiang. Ele questionou se seria possível ou necessário replicar Yuanmingyuan. O projecto de Xu foi concluído em 2016. A sua ideia de reconstruir o Velho Palácio de Verão foi alegadamente estimulada por um livro escrito pelo jornalista francês, Bernard Brizay, cujo The Sack of the Old Summer Palace foi publicado em 2003, argumentando que a reconstrução do parque temático iria “lavar” o registo histórico dos militares franceses de saquear e queimar o Yuanmingyuan. 

Victor Hugo, um famoso romancista e dramaturgo francês do movimento Romântico, escreveu em Novembro de 1861 que o Velho Palácio de Verão “era uma espécie de tremenda obra-prima desconhecida, vislumbrada à distância numa espécie de crepúsculo, como uma silhueta da civilização da Ásia no horizonte da civilização da Europa”. No entanto, Hugo disse que dois bandidos (soldados de França e Inglaterra) destruíram o Velho Palácio de Verão. Chegou ao ponto de escrever: “Os crimes dos que lideram não são culpa dos que são liderados; os governos são por vezes bandidos, os povos nunca”. Embora a destruição do Palácio de Verão Velho tenha sido uma humilhação nacional à dinastia Qing, foi também um testemunho da brutalidade das guerras e da criminalidade da pilhagem transfronteiriça de tesouros nacionais do Estado visado e vitimizado.

Em resumo, a ascensão da RPC foi acompanhada por uma campanha para recuperar os tesouros saqueados do Velho Palácio de Verão. Tal campanha tem significados políticos e culturais. Enquanto os chineses podem ser educados patrioticamente através da compreensão da história trágica do Palácio de Verão Velho, a recuperação dos tesouros nacionais e o trabalho de restauração parcial requer o apoio e a mobilização dos empresários chineses patrióticos. O dilema é se Yuanmingyuan será ou retido com as suas ruínas ou restaurado ao seu antigo glamour e elegância. Entretanto, é adoptada uma solução de médio alcance; nomeadamente a retenção das suas ruínas para a educação patriótica enquanto se realiza um trabalho de restauração parcial.

Sonny Lo

Autor e Professor de Ciência Política

Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Macau News Agency/MNA

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Epílogo de uma história inacabada

É por funestas razões, mas o ano que está a terminar não deverá ser esquecido tão cedo, mau grado o desejo de um mundo em suspenso e virado ao contrário por causa de uma pandemia.

Simplesmente, não se julgava, neste tempo, que fosse possível tanto desarranjo, tanta disrupção (como agora se diz muito), tanta doença, tanta morte. 

Se é para aprender que nos lembramos ou se é para esquecer que preferimos ignorar, será necessário esperar para ver. 

Todavia, 2020 já desvenda algumas respostas e mostra-nos como, em tantos sentidos, estamos ainda próximos do passado, mesmo daquele de há séculos. 

Mostra a história. Não importa o ano, um surto de uma doença fatal provoca sempre a mesma reacção aos comuns mortais – negação inicial, respostas tardias, rumores, desinformação, medo, desconfiança e atribuição de culpa aos “outros”. Foi assim também em Macau ao longo das várias epidemias por que a cidade passou.

Os primeiros registos mais ou menos metódicos são de 1850. “Uma pequena epidemia de cólera-morbus, que fez algumas vítimas”, escreve o médico Lúcio Augusto da Silva no relatório de outro surto de cólera, desta feita em 1862, lamentando que não havia documentos, apenas “informações de pessoas, que pouco podem esclarecer, e referências vagas ou pouco explicativas em raras comunicações oficiais”.

Do que se pudera recolher, sabia-se que a epidemia de 1850 fez vítima mortal o então governador, Pedro Alexandrino da Cunha, que esteve no cargo pouco mais de um mês.

Cinco anos depois, Macau foi atacada por “uma epidemia de bexigas, de que faleceram mais de duzentos indivíduos”. A doença voltaria a manifestar-se em 1857, um ano antes de a cólera ter grassado de novo; em 1862 e 1864, cólera outra vez, a que se seguiu uma aparente acalmia. Só uma década depois houve mais um surto – de dengue. Em 1888, registou-se nova epidemia de cólera e, em 1891, Macau teve de lidar com duas epidemias de influenza e varíola.

No entanto, seria apenas em 1895, com a peste bubónica, que a cidade foi visitada por uma “epidemia digna d’esse nome”, escreveu José Gomes da Silva, o então director dos Serviços de Saúde, no relatório sobre o acontecimento.

Até então, “a pouca importância ligada a este assunto pelas autoridades explicava-se pela benignidade do clima de Macau, onde as epidemias e endemias reinantes causavam pouco sensíveis estragos”.

Por outro lado, as autoridades portuguesas “nunca prestaram atenção especial às estatísticas necrológicas da população chinesa”, a larga maioria.

Em 1895, Gomes da Silva regozijava com os progressos que rompiam “com preconceitos absurdos e com o horror dos chinas a inovações”.

Agora, os pacientes (independentemente da etnia) eram isolados, os cadáveres limpos, as casas e ruas desinfectadas, e examinavam-se todos os que chegavam ao território. O caso não era para menos.

Tinha sido em 1894 que a peste se espalhara de Guangzhou até Hong Kong, deixando Macau na expectativa.

Tudo isto testemunha Camilo Pessanha, acabado de chegar ao Extremo Oriente. Numa carta ao pai, em Maio de 1894, o então secretário do Liceu descreve como “por Hong Kong e Cantão tem andado a peste negra, uma epidemia terrível que tem dizimado famílias e famílias”. Em Cantão, “contam que há dias foi encontrada morta dentro de casa uma família de 5 pessoas, e em um quarto separado, morto também um china que ali se tinha introduzido para roubar”. Na vizinha Hong Kong, acrescenta o poeta, havia “40 a 50 óbitos por dia”, com tendência “a crescer”. A Macau, “felizmente”, a epidemia não chegara – “por enquanto”.

Foi só a 30 de Janeiro de 1895 que o jornal Echo Macaense deu conta de uma “febre de mau carácter”, que se tinha propalado “no sítio do Tarrafeiro”. Eram “alguns casos isolados produzidos principalmente pelas más condições higiénicas” e “não tinham carácter epidémico”.

O jornal nunca mais pegou no assunto. Nem quando, numa povoação chinesa vizinha das Portas do Cerco, “se haviam dado alguns casos de doença desconhecida, que fulminava os indivíduos depois de uma febre súbita”, como anota José Gomes da Silva no seu relatório.

Estava-se em Março quando um caso suscitou “desconfianças e terrores”, que se confidenciavam em rumores e cartas privadas.

No dia 24 desse mês, “o facultativo naval, Gonçalves Pereira”, foi chamado a ver um doente, chinês, adulto, chegado de Hong Kong: “Temperatura a 40.º, bubão inguinal difuso, língua fuliginosa, pele seca, pulso filiforme, quase imperceptível; princípios de ataxia, alternando com um estado semicomatoso; horas depois, convulsões, morte”. 

Era o primeiro diagnóstico oficial de peste bubónica. Não tardou, confirmou-se um segundo caso, a “neta d’um mestre china”.

Nas memórias que escreveu sobre aqueles tempos, no entanto, o médico António José Gonçalves Pereira toma nota de outra data para o primeiro caso de peste, cerca de dois meses antes daquela indicada no relatório oficial.

Como se lê nas suas “Imagens do Oriente: impressões de viagens”, em Janeiro de 1895, Gonçalves Pereira foi responsável por examinar os “cules” que esperavam seguir viagem para S. Tomé, tendo detectado dois “com febres e bubões”. O médico não tinha dúvidas: “era a peste bubónica”.

Isso mesmo transmitiu ao governador, Horta e Costa, que lhe “pediu o máximo segredo, não denunciando os dois casos”. Tudo para que não se estragasse a viagem e o negócio. 

A mão-de-obra chinesa lá seguiu no “África”. “O comandante teve tanta sorte que nem na viagem nem em S. Tomé apareceu mais algum caso”.

Nas suas “impressões”, Gonçalves Pereira sentiu-se também à vontade para revelar que, depois de “oficialmente declarada a peste bubónica em Macau”, o governador informou o governo da metrópole, pedindo verbas para ajudar ao combate da doença. 

No entanto, “de Lisboa”, escreve Gonçalves Pereira, o ministro respondeu que não autorizava “nem um real”, porque “a peste é uma doença dos chinas, eles que façam as despesas para a sua extinção”.

O governo de Macau ficou, assim, impedido de “tomar medidas enérgicas”, os casos aumentaram e com eles o pânico. “Havia uma dificuldade enorme em apanhar os doentes, que faziam todo o possível para iludirem os médicos”, escreveu Gonçalves Pereira.

Foi em Abril que a mortalidade atingiu o máximo, chegando a morrer de peste, em média, 24 pessoas por dia.

No sopé da Guia, estava montado o Hospital da Solidão, construído em bambu. Para ali eram enviados os casos suspeitos e confirmados, os “empestados”. 

Neste hospital de campanha, a última baixa registou-se em 30 de Junho. No dia 17 de Julho, transferido o último doente, o Hospital da Solidão foi “inutilizado e queimado”.

De Abril a Junho, houve mais de 1.200 casos mortais de peste bubónica em Macau, onde, à semelhança de Hong Kong, os efeitos da doença duraram vários anos.

Em 1896, o Echo Macaense voltaria a escrever sobre a peste, agora como epílogo de uma história que se esperava passada, mas que, hoje, tem inusitadas ressonâncias: “Várias pessoas contrairiam a doença, dia após dia. (…) Foi aí que cada um, tomado pelo medo, passou a tentar salvar apenas a si próprio. A cada anoitecer, acendiam-se as luminárias sobre os prédios, fechavam-se as portas das bodegas, eram poucos a andar pelas ruas. Os mercados permaneciam vazios, algo que não se via há décadas. Mesmo a próspera e animada região de ruas amplas e moradas tranquilas exibiam, em cada pátio, em cada quintal, uma atmosfera desolada”. 

Hugo Pinto

Jornalista

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Ascensão e Queda

A semana passada trouxe-nos uma curiosa combinação de notícias que muitos interpretaram como uma metáfora, ou até um aparente render da guarda, entre os Estados Unidos e a China na exploração espacial. No mesmo dia em que o Mundo assistiu à histórica alunagem da Chang’e 5 foi também confrontado com o impressionante colapso final do observatório de Arecibo.

A Queda de um Gigante

O observatório de Arecibo foi um marco da astronomia moderna. Estabelecido em Porto Rico em 1963, e com 305 m de diâmetro, foi durante várias décadas o maior rádio-telescópio do mundo (tendo sido ultrapassado, apenas em 2016, pelos 500 m do gigante telescópio FAST da China).

A antena gigante de Arecibo está bem presente no imaginário de todos graças quer a vários documentários, quer ao facto de ter marcado presença em filmes ou séries de TV. Entre estes, destaque para Contacto (a adaptação do livro de Carl Sagan com Jodie Foster), Goldeneye (a primeira incursão de Pierce Brosnan como James Bond), e a sua aparição num episódio da série “Ficheiros Secretos” (X-Files).

Do ponto de vista científico, o observatório teve uma carreira notável com vários estudos pioneiros, incluindo o primeiro mapeamento da superfície de Vénus, a inesperada descoberta de gelo em Mercúrio, o estudo de asteroides, e o seu envolvimento na detecção de ondas gravitacionais (prémio Novel da Física em 1993). Mas o observatório de Arecibo notabilizou-se acima de tudo pela sua ligação ao programa SETI (acrónimo de “Search for Extraterrestrial Intelligence”). Foi daqui que foi emitida a primeira mensagem humana direcionada a eventuais ouvintes alienígenas. Enviada em 1974, esta mensagem de rádio consistia num código binário, e incluía informações sobre o DNA, um diagrama do sistema solar, e outras informações sobre a vida no nosso planeta.

Os últimos anos marcaram um rápido declínio, com danos causados por terramotos e vários furacões, nomeadamente pela destrutiva passagem do furacão Maria por Porto Rico, em Setembro de 2017. Mas a machadada final veio dos cortes orçamentais e falta de verbas para recuperar uma estrutura que caía aos pedaços e se tornara um risco para a segurança. No dia 1 de Dezembro, a plataforma suspensa de 900 toneladas cedeu de vez e colapsou sobre o telescópio, causando danos irreparáveis. Um triste fim e sem glória para este gigante…

Chang’e 5

Do outro lado do Mundo, o dia 1 de Dezembro era motivo de celebração, com o sucesso da chegada à lua da missão Chang’e 5. Esta missão representa mais um marco histórico para a Agência Espacial Chinesa. O grande destaque vai para a recolha de amostras de solo e rochas lunares, numa complexa operação que culminará com a sua chegada à Terra, prevista actualmente para o dia 24 de Dezembro. Estas serão as primeiras novas amostras obtidas da superfície da Lua desde a missão soviética Luna 24, de 1976!

O local de onde foram recolhidas amostras encontra-se numa das áreas da superfície da Lua formadas mais recentemente. A sua análise deverá trazer-nos novidades sobre a origem e evolução geológica do nosso satélite. Esperam-se novos desenvolvimentos para breve!

Macau

Também no dia 1 de Dezembro, Macau teve boas novidades no sector espacial! Esta data trouxe-nos a aguardada inauguração da nova plataforma experimental de Astrobiologia e Cosmoquímica (parte do Laboratório de Referência Estatal Chinês para as Ciências Lunares e Planetárias, alojado na Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau). Esta plataforma é a única do seu tipo em toda a China e está directamente ligada à análise das novas amostras lunares da Chang’e 5 que virão para Macau. Para além disso, espera-se que esta nova plataforma venha a ter um relevante papel no planeamento, articulação, e desenrolar de novas missões Chinesas a Marte (nomeadamente em busca de vida), e a outras partes do Sistema Solar.

Em tempos ainda marcados pela pandemia, é bom não perder de vista que Macau precisa de ter capacidade de atrair e reter investigadores de topo para poder liderar na ciência e no desenvolvimento. Sem detrimento da segurança e saúde pública de todos nós, a actual política isolacionista de Macau não deve pôr em risco este potencial de afirmação do território ao impedir indefinidamente a entrada de mão-de-obra altamente qualificada e especializada, que serve os objectivos de desenvolvimento do território.

O reforço da capacidade laboratorial e de investigação em Macau é um passo vital para a afirmação do “cluster” espacial e para a diversificação do território. No entanto, esta aposta só faz sentido se for aliada ao reforço dos recursos humanos e à aposta na internacionalização e captação de talentos.

André Antunes

Cientista

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Joe Biden e as relações Estados Unidos-China

A vitória de Biden nas eleições presidenciais americanas irá trazer mudanças significativas na política externa americana como na visão da China em relação aos Estados Unidos. O que não deixará de trazer consequências para a Europa.

A politica externa dos Estados Unidos andou nos últimos quatro anos prisioneira do estilo brusco, ríspido e imprevisível de Donald Trump. A relação com a China foi espelho dessa turbulência. Em publico, Trump foi assertivo quanto ao défice comercial com a China e a deslocalização de empresas americanas neste país. Em privado, foi cerimonioso com Xi Jinping e silencioso quanto ao problema dos direitos humano na China.

O estilo agreste de Trump surpreendeu a China e constituiu um rompimento com a estabilidade da política externa bilateral quer sob liderança democrata quer republicana. Uma politica externa marcada pela cooperação nas relações económicas e comerciais, pelo intercâmbio científico e académico, pelo diálogo nas questões de segurança internacional, pelo reforço das organizações internacionais e da ONU.

Joe Biden é um outro estilo de politico e tem uma experiência que o seu antecessor não tem. Vice-Presidente de Barack Obama manteve contactos com os principais lideres mundiais. Presidente da Comissão de Relações Externas do Senado, entre 1997 e 2008 conheceu, por dentro, todos os problemas da agenda externa dos Estados Unidos.  

Mas apesar disso irá confrontar-se com um legado muito difícil, nomeadamente nas relações bilaterais com a China. Depois de uma série de meses de disputas e sanções comerciais a Pequim, Trump resumiu a estratégia americana a um acordo ‘phase one’ em matéria de comércio. Para o lado da China, o compromisso de importar duzentos mil milhões de dólares em mercadorias americanas, não manipular a moeda chinesa, o renminbi e assegurar a proteção industrial a produtos americanos. Pelo lado dos Estados Unidos, o compromisso de importar cento e oitenta milhões de dólares em produtos chineses. A valores de Setembro de 2020 as importações de um lado e do outro cifram-se em menos de cinquenta por cento dos referidos patamares. O défice comercial  objeto de grande retórica cifrava-se em Setembro em duzentos e vinte e nove mil milhões de dólares. Um progresso reduzido, portanto.

O que irá mudar com Biden na politica bilateral? Num artigo que publicou na edição de Novembro/Dezembro na revista ‘Foreign Affairs’ – Why America must lead again – Biden afirma que a sua primeira aposta será doméstica, pois só reforçando o país nesse plano se pode restaurar a liderança americana global. Biden quer, assim, regressar à agenda pré-Trump, reanimando as principais alianças dos Estados Unidos no mundo e promovendo uma abordagem multilateralista aos problemas internacionais.  

Sobre a China quererá rever o acordo global de comércio assinado por Trump para nele incluir várias questões politicas da agenda bilateral, como a questão de Hong Kong, a situação no Mar do Sul da China, os direitos humanos China ou as alegadas actividades de espionagem chinesas em solo americano. Ou ainda a cooperação em matéria de luta contra o terrorismo e criminalidade cibernética. Não estará disponível para conceder um acordo generoso às pretensões da China em matéria de objectivos de comércio nem a anular, de uma só vez, os direitos de importação adicionais impostor por Trump às mercadorias chinesas. Ou seja esperará para ver. 

Biden é um politico multilateral que privilegia o que ele chama “uma politica externa para a classe média”. Fazer os Estados Unidos reingressar no Acordo de Paris sobre o Clima e na Organização Mundial de Saúde. Reabrir negociações com a Rússia em matéria de controlo de armas nucleares e redução de armas estratégicas. Descomprimir as relações internacionais depois de quatro anos de alvoroço e crispação com a Europa e com os aliados asiáticos.  Um regresso de saudar a um wilsonismo activo.

Arnaldo Gonçalves

Professor Universitário

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