“Quando se aventuraram no comércio da China, os ingleses apresentaram-se inevitavelmente perante a atenção dos chineses com a dupla desvantagem de serem estrangeiros e mercadores”. A observação é de Peter Auber, autor de “Analysis of the Constitution of the East-India Company” (1826).
Auber, Secretário da Companhia de 1829 a 1836, peca apenas, talvez, pela ligeireza dos termos. Mais do que “desvantagem”, a condição de “estrangeiros”, ainda por cima “mercadores”, era um verdadeiro anátema na China.
Isso mesmo ditava a maneira confucionista de ver o mundo, ordenando ocupações segundo a utilidade para o Estado e para a sociedade. Pela avidez e potencial instabilidade que gerava, o comércio era das menos conceituadas, particularmente o que advinha do mar, perigoso domínio de piratas e contrabandistas.
Depois de primeiros contactos fascinados pela civilização chinesa, a postura dos ocidentais tornou-se progressivamente mais dura, até a arrogância ser a atitude mais comum entre os que, a partir do século XVIII, começaram a chegar ao Império do Meio. Agiam como se tudo e todos tivessem um preço.
Em português, temos as detalhadas descrições das transacções nas feiras de Cantão deixadas pelo frade arrábido José de Jesus Maria a confirmarem as suspeitas de Confúcio.
A ambição de lucros fáceis inclinava a malícia para o comércio, a razão de todas as relações. Inquinada esta fonte, “e como a natureza humana propende sempre para o mal, se acha cada vez mais corrupta com o veneno mortífero da culpa, indigna de espirituais e temporais felicidades; e que coisa nestes termos se pode esperar, senão uma perversão total daqueles homens”, questionava o beato José de Jesus Maria.
Cantão era o porto mais procurado pelos “diabos estrangeiros”, concentrados nos subúrbios da cidade, junto ao rio, onde permaneciam durante a época de feira, de Setembro a Março. Estavam confinados às treze feitorias da exclusiva união de comerciantes chineses, Hong, os únicos autorizados a negociar com os ocidentais. Ali o chá era pesado, embalado e exportado para a Europa, juntamente com as sedas.
No outro prato desta balança desequilibrava uma imensa China que já tinha tudo o que precisava, dispensando a maioria dos produtos que lhe ofereciam. Como observara António Bocarro, ainda no século XVII, “se possuíramos livre só o comércio da China, bastava sem nenhum outro, porque para todo este Oriente serve o que nela há, e para todo o mundo”.
Mas há sempre excepções. Uma era o ópio. Nenhuma quantidade que aportasse na costa chinesa era suficiente para saciar o apetite que ali havia, logo degenerado num destrutivo vício.
Na China, acredita-se que a droga fez parte de um elaborado plano para quebrar o moral do país, instigando o problema social na origem da grande humilhação consumada nas duas guerras que levaram o nome da maldita substância. Deliberada ou não, foi a consequência. É entre esses estilhaços que ainda vivemos.
Do nevoeiro da História, todavia, desprende-se uma figura algo esquecida e cuja importância as actuais circunstâncias ajudam a realçar, porque desafia maniqueísmos costumeiros e mostra que nada é a preto e branco, nem que bons e maus se dividem com inquestionável exactidão para um lado e para o outro.
De todos os “diabos estrangeiros” que a abertura dos portos atraiu à China, Robert Hart foi provavelmente o único lembrado com amizade no país, onde terá sido o ocidental mais influente a viver na Dinastia Qing.
Foi em 1854, com apenas 19 anos, que o irlandês desembarcou em Hong Kong. As aptidões linguísticas valeram-lhe um posto no serviço consular britânico da colónia, foi transferido para Ningbo e, depois, para a cidade de Cantão. Cedo, embrenhou-se na língua e cultura chinesas, que iria dominar.
Na ressaca da Iª Guerra do Ópio, a China debatia-se com a rebelião Taiping (1850-1864), o mais sangrento conflito do século XIX. Tendo provocado quase 30 milhões de mortes, foi uma séria ameaça existencial para o Império. Tempos incrivelmente tumultuosos que a enfraquecida corte Qing tentava, a custo, navegar.
A forçada abertura dos portos e a concessão de privilégios comerciais às potências ocidentais fizeram com que os cargos de liderança do Serviço de Alfândegas fossem praticamente todos ocupados por estrangeiros. Hart estava entre eles, mas empenhou-se em não ser apenas mais um.
Menos de uma década depois de ter chegado à China, foi escolhido para uma das mais poderosas posições no país: Inspector Geral das Alfândegas Marítimas Imperiais.
A incumbência foi levada à letra. Numa nota distribuída aos trabalhadores pouco depois da sua nomeação, Hart adverte que “deve ser distinta e permanentemente recordado que a Inspecção das Alfândegas é um serviço chinês, não estrangeiro. Como tal, é dever de cada membro comportar-se em relação ao povo chinês e aos governantes chineses de modo a evitar ofensas e mal-estar”.
Era um contraste acentuado com o antecessor de Hart no cargo (e o sucessor), e a maioria dos estrangeiros na China.
Segundo Edward B. Drew, comissário das Alfândegas contemporâneo de Hart, “subornar ou assediar os agentes era bastante comum entre os mercadores estrangeiros”. Enquanto os agentes enriqueciam, o país empobrecia sem receber os direitos que devia. “A desmoralização era generalizada e o governo parecia incapaz de corrigir a situação”.
Durante os 48 anos em que Hart foi Inspector Geral, as Alfândegas chinesas transformaram-se numa eficiente máquina de arrecadar receitas, que triplicaram, representando 80 por cento do dinheiro que entrava nos cofres do governo, essencial para a modernização do país. Hart pôde, assim, lançar as bases do serviço postal, da ferrovia, do sistema meteorológico e de navegação, com a construção de uma rede de mais de 60 faróis. Não era por acaso que, em Pequim, era tratado como “o nosso Hart”.
Pelas funções que exerceu, teve também de lidar com os portugueses e com Macau, que chegou a tentar adquirir para a Dinastia Qing, devido ao receio de que o estabelecimento fosse parar às mãos de outros cobiçosos países, dada a delapidada situação em que se encontrava o governo de Lisboa.
Enquanto tudo isto, Hart escreveu, escreveu muito. Tudo o que viveu ficou anotado nos mais de 70 volumes de um exaustivo diário, em inglês e chinês.
É por estes registos íntimos que ficamos a conhecer a atormentada (e falhada) repressão do seu abundante desejo sexual (teve concubinas e filhos ilegítimos), mas também como encarava a História que tinha consciência de viver.
Numa passagem de 1867, Hart escreve que “os ingleses são precisamente o tipo de pessoas para quem os chineses devem olhar com a maior aversão, o ódio mais forte e os sentimentos mais vingativos. Os ingleses arrastaram os chineses para duas guerras, queimaram o seu palácio e somos nós os que mais alto falam sobre a humanidade”.
Como os seus diários mostram, Hart era humano, demasiado humano. Uma sua grande virtude, porém, foi ter sabido reconhecer que os interesses de um país podem ser os interesses de outro, e que um mundo mais aberto, livre e entretido com o comércio não tende a desatar conflitos. Que Confúcio nos perdoe.
Hugo Pinto
Jornalista