Macau no pós-Hato: Uma leitura

 

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Fotografia: Eduardo Martins;

Uma semana depois do tufão Hato ter flagelado, sem dó nem piedade, a costa do sul da China – e Hong Kong e Macau em particular –  é altura de fazer um balanço e extrair conclusões que possam ser úteis.

A primeira observação é lamentar a perda de dez vidas humanas e o número elevado de feridos causados pelo impacto do tufão que, ao que me lembro, não tem comparável na história recente do território. Existe sempre uma margem de imponderável nestas situações e por mais cuidados que se tenham é impossível controlar tudo, mas houve erros humanos na gestão desta crise.

A segunda e terceira observações têm a ver com o sistema de previsão destes fenómenos naturais e com o sistema de emergência e segurança civil. É preciso reconhecer que os dois falharam de forma clara e evidente e há procedimentos e responsabilidades que importa repensar ou apurar.

Quanto ao primeiro já muita tinta correu sobre a demissão do director dos Serviços Meteorológicos e Geofísicos de Macau, o Dr. Fong Soi Kun. Do ponto de vista orgânico cabe aos serviços meteorológicos verificar e acompanhar a evolução destas tempestades naturais que regularmente caiem sobre o território, no período de Verão.  Incumbe-lhes, em particular, “manter e desenvolver os sistemas de vigilância e de informação, cabendo-lhe, em exclusivo, a emissão de avisos de mau tempo de carácter meteorológico às entidades públicas e privadas”. É o que diz textualmente a sua lei orgânica, o Decreto-Lei n.º 64/94/M, de 26 de Dezembro.

Daqui resulta que é aos SMGM que cabe fixar a cadência das medidas de alerta com vista a se interromperem as aulas nos estabelecimentos de ensino ou se suspender a prestação de trabalho dos funcionários públicos.  O exercício destas competências não ocorre no vazio. O director dos serviços depende hierarquicamente do Secretário para as Obras Públicas e Transportes. É do meu conhecimento que, pelo menos até Dezembro de 1999, o lançamento de avisos de alerta de tufão – designadamente o sinal 8 – era acompanhado de uma comunicação ao gabinete do Secretário-Adjunto que o comunicava hierarquicamente ao Governador. Não tenho razões para afirmar que o sistema mudou.

Se houve má gestão dos avisos de alerta, por falha de previsão quanto à curva de risco da tempestade, creio que a responsabilidade é num só sentido. Se houve interferências do exterior, designadamente de responsáveis de casinos, na forma de pressões sobre membros do Executivo, essas pressões – ilegítimas – devem ser investigadas e os seus autores responsabilizados. O Ministério Público está em funções e seguramente avançará com qualquer inquérito que se imponha.

Percebido o impacto brutal do tufão, na transição do dia 23 para o dia 24 de Agosto, várias coisas falharam. E aqui entramos na análise do sistema de emergência e segurança civil.  Não é claro, pelo que leio dos dispositivos legais, se existiu uma verdadeira coordenação da acção dos vários departamentos governamentais que actuam em caso de catástrofe natural e que incluem designadamente os bombeiros, os serviços de polícia, as obras públicas, os serviços municipais, os serviços de saúde, os serviços de acção social.

Tendo em conta o exemplo português o que é habitual existir, a nível da administração pública, é um comando centralizado de emergência e protecção civil que faz a coordenação das várias entidades envolvidas e que gere todo o trabalho de informação aos cidadãos e à comunicação social. Em Portugal esse comando tem o nome de Autoridade Nacional de Protecção Civil e dispõe de um conjunto de atribuições particularizadas num Plano de Emergência de Protecção Civil em que as várias autoridades de Protecção Civil, nos seus diversos níveis, definem as orientações relativamente ao modo de actuação dos vários organismos, serviços e estruturas a empenhar em operações de Protecção Civil de forma a minimizar os efeitos de um acidente grave ou catástrofe sobre as vidas, a economia, o património e o ambiente.

Em Macau não parece existir algo de semelhante. Nunca ouvi falar num Plano de Emergência de Protecção Civil e é claro quem compete elaborá-lo. Aliás, a necessidade do Chefe do Executivo promover reuniões de coordenação com os secretários do governo e com os principais dirigentes dos serviços no próprio dia 24 de Agosto corrobora, manifestamente, a existência dessa falha estrutural. Como o corrobora, a necessidade do governo da RAEM, a partir do local da reunião, dar uma conferência de imprensa para informar a comunicação social das medidas que estavam a ser tomadas. Não recordo, em quase trinta anos de Macau, de ver algo semelhante, o que denota outra coisa: a ausência de uma estratégia de comunicação social.

Não deixa de ser significativo que entre a noite do dia 23 de Agosto e o meio-dia do dia 24 a população de Macau tenha tido apenas acesso à informação veiculada pelas redes sociais ou proveniente de Hong Kong. GCS, TDM Rádio e Televisão estiveram suspensas durante esse período de tempo. Poder-se-á dizer que houve quebras de electricidade e que não era possível emitir, mas as telecomunicações mantiveram-se operacionais durante todas essas horas.  Os Serviços Meteorológicos de Hong Kong, o governo da RAEHK e alguma imprensa, como o South China Morning Post, manteve a difusão de informação sistemática sobre a Região vizinha nesse interim. A pergunta para que não encontro resposta é o que esteve a Rádio Macau a fazer entre as 7 e as 12 horas do dia 24 quando tinha acesso, por exemplo, à sua página no Facebook e a manteve sem qualquer actualização?

Não desconheço que existe uma estrutura dependente do Secretário para a Segurança, Dr. Wong Sio Chak e que compreende um Comandante Geral dos Serviços de Polícia Unitários que gere dois centros de operações, um para Macau e outro para as Ilhas e que por sua vez encima um conjunto de serviços e corporações no domínio da segurança e protecção civil. O Decreto-Lei n.º 72/92/M, de 28 de Setembro, define as missões de protecção civil e fixa a necessidade de coordenação das várias entidades que actuam em situações de emergência. Este diploma foi objecto de um pequeno ajustamento, em 2002, através do Regulamento Administrativo 32/2002, de 12 de Dezembro, cujo propósito parece ter sido compatibilizar a política de protecção civil com a política de segurança interna de Macau.

Mas este normativo tem uma norma essencial que importa reter “os cidadãos têm direito à informação sobre os riscos a que estão sujeitos, decorrentes de acidente grave, catástrofe ou calamidade e sobre as medidas adoptadas ou a adoptar com vista a minimizar os seus efeitos”. Essa informação sobre o tufão Hato foi manifestamente inexistente e lacunar. Cabia ao Secretário para a Segurança assegurá-la.  Ficam por esclarecer se teria havido necessidade de decretar o estado de calamidade a que reporta o artigo 11.o  do referido Decreto-lei n.º 72/92/M.

Do ponto de vista operacional, o que há a concluir é que o dispositivo de acorrência a catástrofes ou calamidades dirigido pelo Comandante Geral dos Serviços Unitários, Comandante Ma Io Kun não funcionou como deveria.

Há um outro ponto também importante e tem a ver com a filosofia de emergência e segurança civil. Fará sentido equiparar a prevenção e minimização de situações de emergência, advindas de factos de origem natural com quebras de segurança interna provocadas por actos humanos? A meu ver não. O controlo dos efeitos de um tufão não tem a ver, imediatamente, com “garantir a ordem, a tranquilidade pública e a protecção de pessoas e bens, o prevenir e investigar a criminalidade e controlar a migração” propósitos firmados pela política de segurança interna como a leio, a partir da Lei n.º 9/2002, de 4 de Dezembro, a chamada Lei de Segurança Interna.  Enquanto no primeiro caso estamos no plano civilista para que é essencial a franca e pronta colaboração de todos os cidadãos em conjunto com as autoridades policiais, no segundo caso as necessidades de prevenção e actuação põem-se no domínio quase militar ou pelo menos militarizado.  A lógica do comando é diferente, o tipo de responsabilidade das unidades operacionais absolutamente distinta.

Parte dos problemas que aconteceram com o tufão Hato têm a ver com o desajustamento do modelo de emergência e protecção civil às actuais necessidades da RAEM, uma urbe densa do ponto de vista populacional, anárquica do ponto de vista urbanístico, sobrecarregada pelo enorme afluxo de visitantes e turistas e com vias de comunicação empasteladas. Tudo ingredientes que são um convite ao desastre e à calamidade alargada.

Esperemos que até à próxima época de tufões as autoridades repensem o seu modelo de emergência e segurança civil. É natural que os cidadãos sejam críticos à resposta que foi dada e importa da próxima vez evitar igual número de vítimas ou superiores. A acontecer as responsabilidades serão de outra natureza: políticas.

 

Arnaldo Gonçalves é jurista e professor de Ciência Política e Relações Internacionais. Escreve neste espaço quinzenalmente.

 

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