As relações que se deterioram rapidamente entre Pequim, Taipé e Washington têm aumentado os riscos de acidentes e/ou conflitos militares entre o Exército de Libertação Popular (ELP) e as Forças Armadas de Taiwan e dos EUA no espaço aéreo ou nas águas próximas do Estreito da Formosa.
A 23 de Julho, Washington decidiu ordenar o encerramento do consulado da RPC em Houston, alegando, segundo o secretário de Estado americano Mike Pompeo, que a China “roubou” propriedade intelectual dos Estados Unidos. Em 21 de Julho, um tribunal federal americano já havia acusado uma investigadora chinesa do continente, Song Chen, de esconder a sua identidade e afiliação a um hospital do Exército de Libertação Popular quando solicitou um visto para realizar pesquisas na Universidade de Stanford.
Em retaliação, o governo da RPC ordenou a 24 de Julho o encerramento do consulado dos EUA em Chengdu. Foi noticiado que Pequim teria informações de que o consulado dos EUA em Chengdu estaria a recolher informações sensíveis sobre regiões tão importantes quanto o Tibete e Xinjiang.
Imediatamente, as relações sino-americanas mergulharam no ponto mais baixo desde a normalização das suas relações em 1972, quando o falecido Presidente Richard Nixon fez uma visita histórica a Pequim.
A 24 de Julho, o Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, fez um importante discurso sobre a política dos EUA em relação à China, afirmando que a República Popular da China é um regime “totalitário” que constitui uma “ameaça” séria ao mundo livre. E nesse discurso, apoiou abertamente os dissidentes políticos chineses Wei Jingsheng e Wang Dan, bem como o jovem democrata de Hong Kong Nathan Law, que Pompeo conhecera em Londres a 21 de Julho.
O discurso de Pompeo faz lembrar as observações do falecido Presidente Ronald Reagan, que em Junho de 1982 se referiu à antiga União Soviética como um estado “totalitário” que ameaçava o mundo inteiro. Pompeo deu um passo mais à frente: apelou a outros países com a mesma percepção para formarem uma “aliança democrática” com o objectivo de mudar a RPC. E acrescentou que a nova política dos EUA em relação à China não era “contenção”. Como tal, pode ser considerada uma aliança para cercar o regime marxista-leninista da RPC.
A par disso, as relações entre a República Popular da China e a República da China (Taiwan) pioraram a partir de 16 de Julho, quando Kao Ming-tsun, representante em exercício do Gabinete Económico e Cultural de Taipé (GECT) em Hong Kong, deixou a RAEHK por se recusar a assinar, sob juramento, uma declaração de apoio à política de “Uma China”. Três outros responsáveis oficiais de Taipé que se recusaram a assinar o documento regressaram também a Taiwan. Restam agora onze funcionários no GECT. Claramente, Pequim reforçou a sua pressão sobre Taipé após a promulgação da lei de segurança nacional da RAEHK.
Em retaliação, o governo de Taiwan decidiu não renovar os vistos aos representantes de Hong Kong que se encontram em Taipé. Em resultado disso, os responsáveis de Hong Kong que continuam a trabalhar em Taipé regressarão provavelmente a Hong Kong após o expirar dos seus vistos. E, simultaneamente, tudo indica que o governo de Taiwan vá rever as leis e regulamentos que tratam das relações comerciais, culturais e económicas com Hong Kong e Macau.
Neste ambiente de relações cada vez mais tensas entre Pequim, Taipé e Washington, há a possibilidade de ocorrerem acidentes ou recontros militares no Estreito de Taiwan.
Na noite de 23 de Julho, por volta das 19h30, e na manhã de 24, alguns aviões chineses entraram na zona de identificação de defesa aérea de Taiwan, de acordo com notícias difundidas em Taipé. Caças F-16 de Taiwan levantaram imediatamente voo para interceptarem os intrusos. Por outro lado, de acordo com informações veiculadas pela Iniciativa de Pesquisa Estratégica no Mar da China Meridional, da Universidade de Pequim, e depois confirmadas por Taiwan, aviões chineses também perseguiram várias aeronaves americanas, incluindo RC-135 de reconhecimento, P-8A Poseidon anti-submarinas e ainda KC-135 Stratotanker, quando estas, recentemente, se aproximaram demasiado de regiões costeiras da China.
O incidente ocorreu na noite de 23 de Julho, e soou assim o aviso enviado aos pilotos dos aparelhos americanos: “Daqui a Força Aérea Naval da China em patrulha. Vocês estão a aproximar-se do domínio aéreo chinês. Mudem de rumo imediatamente ou serão interceptados”. Fontes de Taiwan disseram que os aviões dos EUA estavam a tentar detectar os movimentos do Exército de Libertação Popular ao longo das regiões costeiras do Sul da China, especialmente em áreas ao redor das ilhas Dongsha (Pratas), que, segundo algumas notícias, talvez se tornem alvo de ocupação chinesa durante os seus próximos exercícios militares, em Agosto.
Analistas militares de Taipé entendem que a aproximação dos aviões chineses a espaço aéreo sob controlo de Taiwan na noite de 23, foi uma forma de testar a resposta e reunir mais informações sobre as instalações militares de Taiwan. Um especialista militar de Taipé defende que os EUA enviem forças navais para realizarem exercícios conjuntos com Taiwan perto das Ilhas Pratas – sugestão que, a ser seguida, poderá ser interpretada como uma provocação pelo exército chinês.
Nos últimos tempos, forças navais e aéreas da China e dos EUA têm estado muito activas nos mares do Sul da China e no estreito de Taiwan. As ilhas Dongsha (Pratas) são consideradas um local militarmente estratégico para a China, cujo porta-aviões Liaoning, em Abril deste ano, passou pelo canal Bashi para realizar exercícios navais no oceano. Também em Abril, o Ministério da Defesa japonês e a imprensa de Tóquio avistaram o porta-aviões Liaoning a atravessar o Estreito de Miyako com dois destroyers lança-mísseis do Tipo 052D, duas fragatas 054A e uma nave auxiliar de abastecimento Tipo 901.
O Exército de Libertação Popular fará exercícios militares na península de Leizhou até 2 de Agosto, logo após as manobras de Han Kuang, por parte do exército de Taiwan, realizadas de 13 a 17 de Julho.
Num momento em que os militares das três partes endurecem a sua postura, a possibilidade de acidentes e/ou escaramuças militares não pode ser excluída. Jin Canrong, professor de relações internacionais da Universidade de Remin, disse isso mesmo à TV Cabo de Hong Kong, a 25 de Julho. E são vários os factores que podem conduzir a esses acidentes ou escaramuças, bem como os meios para as evitar.
Primeiro, a retórica entre políticos e diplomatas da RPC e dos EUA terá de ser atenuada se os dois países quiserem mesmo reparar um relacionamento profundamente afectado por questões como a guerra comercial ou o litígio em torno da Huawei.
Segundo, não há mecanismo de ligação militar entre a RPC e Taiwan. Como tal, o desfecho dos recentes incidentes aéreos dependeu muito da capacidade de contenção de ambos os lados.
Terceiro, os líderes de Taiwan poderão ter de baixar o tom da retórica e atenuar as suas actividades anti-RPC. No entanto, o Partido Democrático Progressista (PDP) de Tsai Ing-wen propôs medidas que poderão provocar ainda mais a RPC, incluindo a possibilidade de mudança do nome da China Airlines para Taiwan Airlines, enfatizando Taiwan na capa dos passaportes e implementando reformas constitucionais para permitir que todos os maiores de 18 anos tenham direito a voto. A reforma constitucional de redução da idade eleitoral vai provavelmente favorecer e reforçar a base de poder do PDP, e o ênfase em Taiwan no nome da companhia aérea e na capa do passaporte visa sobretudo a ‘des-mainlandização’ da República da China. Esta ‘des-mainlandização’ – perdoem-nos os leitores o neologismo – provavelmente levará a linha-dura do regime da RPC a defender uma rápida acção militar contra Taiwan.
A liderança do PDP tem adoptado recentemente uma política muito mais ousada de ‘des-mainlandização’, talvez em função da falta de travões e contrapesos dos EUA. É que a administração republicana do Presidente Donald Trump vem seguindo uma política pró-Taiwan e ‘de facto’ pró-PDP, ideológica e militarmente.
Quarto, resta saber se serão os chamados falcões a dominar as máquinas militares da China, Taiwan e EUA. O Presidente Xi Jinping não fez qualquer comentário adicional, em público, sobre esta tensão desde o importante discurso sobre Taiwan que proferiu a 1 de Janeiro de 2019.
Ocasionalmente, alguns elementos conotados com a linha dura podem ser vistos nas redes sociais do Continente a defender que este seria o momento oportuno para a RPC “assumir” a República da China. Mas, felizmente, líderes da linha mais moderada também podem ser vistos, tanto no Continente quanto em Taiwan, a defender medidas de apaziguamento, como a interação crescente entre as cidades de Xangai e Taipé, para melhorar as relações bilaterais. O autarca de Taiwan Ke Wen-je proferiu um discurso no Fórum Xangai-Taipé, a 22 de Julho, em que defendeu que “a harmonia familiar é melhor do que a hostilidade familiar”.
Quinto, embora a opinião pública seja geralmente ignorada na elaboração de políticas militares, a maioria dos cidadãos dos dois lados do Estreito não gostaria de testemunhar acidentes ou escaramuças militares. A maioria dos habitantes do Continente está ansiosa por ver um regresso à normalidade, após a pandemia e as inundações registadas em vastas zonas da China. Por outro lado, uma sondagem realizada pela ETtoday em Taiwan mostrou que, se uma guerra eclodisse agora, 40,9% dos inquiridos estariam dispostos a combater, mas 49,1% expressaram a sua relutância em fazê-lo. Uma maioria acha também que o recrutamento militar obrigatório deve ser imposto em Taiwan para sua protecção. 75,2 por cento dos inquiridos estão a favor do serviço militar obrigatório, 17,9 estão contra e 6,9 por cento não têm opinião.
Em resumo, uma crise militar não pode ser excluída. Espera-se, por isso, que líderes políticos e diplomatas de todas as partes possam realmente abrandar a sua retórica; que um mecanismo de ligação, para criação de condições de confiança, possa eventualmente ser estabelecido entre a RPC e Taiwan; que o PDP possa atenuar algumas das suas iniciativas de ‘des-mainlandização’; que as forças armadas continuem a ser dominadas por moderados e não por falcões’; e que a opinião maioritária a favor da manutenção do ‘status quo’ seja respeitada. Caso contrário, a iminente nova Guerra Fria entre a República Popular da China e os EUA não será um bom presságio para o futuro das relações militares entre Pequim, Taipé e Washington.
Sonny Lo Shiu Hing
Autor e Professor de Ciência Política
Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Macau News Agency/MNA.