Relações tensas entre Pequim, Taipé e Washington darão origem a uma crise militar?

As relações que se deterioram rapidamente entre Pequim, Taipé e Washington têm aumentado os riscos de acidentes e/ou conflitos militares entre o Exército de Libertação  Popular (ELP) e as Forças Armadas de Taiwan e dos EUA no espaço aéreo ou nas águas próximas do Estreito da Formosa.

A 23 de Julho, Washington decidiu ordenar o encerramento do consulado da RPC em Houston, alegando, segundo o secretário de Estado americano Mike Pompeo, que a China “roubou” propriedade intelectual dos Estados Unidos. Em 21 de Julho, um tribunal federal americano já havia acusado uma investigadora chinesa do continente, Song Chen, de esconder a sua identidade e afiliação a um hospital do Exército de Libertação  Popular quando solicitou um visto para realizar pesquisas na Universidade de Stanford.

Em retaliação, o governo da RPC ordenou a 24 de Julho o encerramento do consulado dos EUA em Chengdu. Foi noticiado que Pequim teria informações de que o consulado dos EUA em Chengdu estaria a recolher informações sensíveis sobre regiões tão importantes quanto o Tibete e Xinjiang.

Imediatamente, as relações sino-americanas mergulharam no ponto mais baixo desde a normalização das suas relações em 1972, quando o falecido Presidente Richard Nixon fez uma visita histórica a Pequim.

A 24 de Julho, o Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, fez um importante discurso sobre a política dos EUA em relação à China, afirmando que a República Popular da China é um regime “totalitário” que constitui uma “ameaça” séria ao mundo livre. E nesse discurso, apoiou abertamente os dissidentes políticos chineses Wei Jingsheng e Wang Dan, bem como o jovem democrata de Hong Kong Nathan Law, que Pompeo conhecera em Londres a 21 de Julho.

O discurso de Pompeo faz lembrar as observações do falecido Presidente Ronald Reagan, que em Junho de 1982 se referiu à antiga União Soviética como um estado “totalitário” que ameaçava o mundo inteiro. Pompeo deu um passo mais à frente: apelou a outros países com a mesma percepção para formarem uma “aliança democrática” com o objectivo de mudar a RPC. E acrescentou que a nova política dos EUA em relação à China não era “contenção”. Como tal, pode ser considerada uma aliança para cercar o regime marxista-leninista da RPC.

A par disso, as relações entre a República Popular da China e a República da China (Taiwan) pioraram a partir de 16 de Julho, quando Kao Ming-tsun, representante em exercício do Gabinete Económico e Cultural de Taipé (GECT) em Hong Kong, deixou a RAEHK por se recusar a assinar, sob juramento, uma declaração de apoio à política de “Uma China”. Três outros responsáveis oficiais de Taipé que se recusaram a assinar o documento regressaram também a Taiwan. Restam agora onze funcionários no GECT. Claramente, Pequim reforçou a sua pressão sobre Taipé após a promulgação da lei de segurança nacional da RAEHK.

Em retaliação, o governo de Taiwan decidiu não renovar os vistos aos representantes de Hong Kong que se encontram em Taipé. Em resultado disso, os responsáveis de Hong Kong que continuam a trabalhar em Taipé regressarão provavelmente a Hong Kong após o expirar dos seus vistos. E, simultaneamente, tudo indica que o governo de Taiwan vá rever as leis e regulamentos que tratam das relações comerciais, culturais e económicas com Hong Kong e Macau.

Neste ambiente de relações cada vez mais tensas entre Pequim, Taipé e Washington, há a possibilidade de ocorrerem acidentes ou recontros militares no Estreito de Taiwan.

Na noite de 23 de Julho, por volta das 19h30, e na manhã de 24, alguns aviões chineses entraram na zona de identificação de defesa aérea de Taiwan, de acordo com notícias difundidas em Taipé. Caças F-16 de Taiwan levantaram imediatamente voo para interceptarem os intrusos. Por outro lado, de acordo com informações veiculadas pela Iniciativa de Pesquisa Estratégica no Mar da China Meridional, da Universidade de Pequim, e depois confirmadas por Taiwan, aviões chineses também perseguiram várias aeronaves americanas, incluindo RC-135 de reconhecimento, P-8A Poseidon anti-submarinas e ainda KC-135 Stratotanker, quando estas, recentemente, se aproximaram demasiado de regiões costeiras da China.

O incidente ocorreu na noite de 23 de Julho, e soou assim o aviso enviado aos pilotos dos aparelhos americanos: “Daqui a Força Aérea Naval da China em patrulha. Vocês estão a aproximar-se do domínio aéreo chinês. Mudem de rumo imediatamente ou serão interceptados”. Fontes de Taiwan disseram que os aviões dos EUA estavam a tentar detectar os movimentos do Exército de Libertação Popular  ao longo das regiões costeiras do Sul da China, especialmente em áreas ao redor das ilhas Dongsha (Pratas), que, segundo algumas notícias, talvez se tornem alvo de ocupação chinesa durante os seus próximos exercícios militares, em Agosto.

Analistas militares de Taipé entendem que a aproximação dos aviões chineses a espaço aéreo sob controlo de Taiwan na noite de 23, foi uma forma de testar a resposta e reunir mais informações sobre as instalações militares de Taiwan. Um especialista militar de Taipé defende que os EUA enviem forças navais para realizarem exercícios conjuntos com Taiwan perto das Ilhas Pratas – sugestão que, a ser seguida, poderá ser interpretada como uma provocação pelo exército chinês. 

Nos últimos tempos, forças navais e aéreas da China e dos EUA têm estado muito activas nos mares do Sul da China e no estreito de Taiwan. As ilhas Dongsha (Pratas) são consideradas um local militarmente estratégico para a China, cujo porta-aviões Liaoning, em Abril deste ano, passou pelo canal Bashi para realizar exercícios navais no oceano. Também em Abril, o Ministério da Defesa japonês e a imprensa de Tóquio avistaram o porta-aviões Liaoning a atravessar o Estreito de Miyako com dois destroyers lança-mísseis do Tipo 052D, duas fragatas 054A e uma nave auxiliar de abastecimento Tipo 901.

O Exército de Libertação Popular fará exercícios militares na península de Leizhou até 2 de Agosto, logo após as manobras de Han Kuang, por parte do exército de Taiwan, realizadas de 13 a 17 de Julho.

Num momento em que os militares das três partes endurecem a sua postura, a possibilidade de acidentes e/ou escaramuças militares não pode ser excluída. Jin Canrong, professor de relações internacionais da Universidade de Remin, disse isso mesmo à TV Cabo de Hong Kong, a 25 de Julho. E são vários os factores que podem conduzir a esses acidentes ou escaramuças, bem como os meios para as evitar.

Primeiro, a retórica entre políticos e diplomatas da RPC e dos EUA terá de ser atenuada se os dois países quiserem mesmo reparar um relacionamento profundamente afectado por questões como a guerra comercial ou o litígio em torno da Huawei.

Segundo, não há mecanismo de ligação militar entre a RPC e Taiwan. Como tal, o desfecho dos recentes incidentes aéreos dependeu muito da capacidade de contenção de ambos os lados.

Terceiro, os líderes de Taiwan poderão ter de baixar o tom da retórica e atenuar as suas actividades anti-RPC. No entanto, o Partido Democrático Progressista (PDP) de Tsai Ing-wen propôs medidas que poderão provocar ainda mais a RPC, incluindo a possibilidade de mudança do nome da China Airlines para Taiwan Airlines, enfatizando Taiwan na capa dos passaportes e implementando reformas constitucionais para permitir que todos os maiores de 18 anos tenham direito a voto. A reforma constitucional de redução da idade eleitoral vai provavelmente favorecer e reforçar a base de poder do PDP, e o ênfase em Taiwan no nome da companhia aérea e na capa do passaporte visa sobretudo a ‘des-mainlandização’ da República da China. Esta ‘des-mainlandização’ – perdoem-nos os leitores o neologismo – provavelmente levará a linha-dura do regime da RPC a defender uma rápida acção militar contra Taiwan.

A liderança do PDP tem adoptado recentemente uma política muito mais ousada de ‘des-mainlandização’, talvez em função da falta de travões e contrapesos dos EUA. É que a administração republicana do Presidente Donald Trump vem seguindo uma política pró-Taiwan e ‘de facto’ pró-PDP, ideológica e militarmente.

Quarto, resta saber se serão os chamados falcões a dominar as máquinas militares da China, Taiwan e EUA. O Presidente Xi Jinping não fez qualquer comentário adicional, em público, sobre esta tensão desde o importante discurso sobre Taiwan que proferiu a 1 de Janeiro de 2019.

Ocasionalmente, alguns elementos conotados com a linha dura podem ser vistos nas redes sociais do Continente a defender que este seria o momento oportuno para a RPC “assumir” a República da China. Mas, felizmente, líderes da linha mais moderada também podem ser vistos,  tanto no Continente quanto em Taiwan, a defender medidas de apaziguamento, como a interação crescente entre as cidades de Xangai e Taipé, para melhorar as relações bilaterais. O autarca de Taiwan Ke Wen-je proferiu um discurso no Fórum Xangai-Taipé, a 22 de Julho, em que defendeu que “a harmonia familiar é melhor do que a hostilidade familiar”.

Quinto, embora a opinião pública seja geralmente ignorada na elaboração de políticas militares, a maioria dos cidadãos dos dois lados do Estreito não gostaria de testemunhar  acidentes ou escaramuças militares. A maioria dos habitantes do Continente está ansiosa por ver um regresso à normalidade, após a pandemia e as inundações registadas em vastas zonas da China. Por outro lado, uma sondagem realizada pela ETtoday em Taiwan mostrou que, se uma guerra eclodisse agora, 40,9% dos inquiridos estariam dispostos a combater, mas 49,1% expressaram a sua relutância em fazê-lo. Uma maioria acha também que o recrutamento militar obrigatório deve ser imposto em Taiwan para sua protecção. 75,2 por cento dos inquiridos estão a favor do serviço militar obrigatório, 17,9 estão contra e 6,9 por cento não têm opinião.

Em resumo, uma crise militar não pode ser excluída. Espera-se, por isso, que líderes políticos e diplomatas de todas as partes possam realmente abrandar a sua retórica; que um mecanismo de ligação, para criação de condições de confiança, possa eventualmente ser estabelecido entre a RPC e Taiwan; que o PDP possa atenuar algumas das suas iniciativas de ‘des-mainlandização’; que as forças armadas continuem a ser dominadas por moderados e não por falcões’; e que a opinião maioritária a favor da manutenção do ‘status quo’ seja respeitada. Caso contrário, a iminente nova Guerra Fria entre a República Popular da China e os EUA não será um bom presságio para o futuro das relações militares entre Pequim, Taipé e Washington.

Sonny Lo Shiu Hing 

Autor e Professor de Ciência Política

Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Macau News Agency/MNA.

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Ressurgimento de casos de Covid-19 em Hong Kong: Implicações e Ilações

Desde o aparecimento repentino de 25 casos de residentes infectados por Covid-19 a 8 de Julho, Hong Kong viu-se mergulhada num terceiro surto epidémico, levantando preocupações por parte do governo e do público quanto à penetração do vírus na comunidade e expondo fraquezas cruciais como a insuficiência dos testes e um controlo pouco eficaz dos casos importados de Covid-19.

A 7 de Julho, foram detectados nove casos de infecção, incluindo cinco de fontes desconhecidas. O mais preocupante nesse dia foi constatar que estudantes, professores e encarregados de educação estavam entre as pessoas infectadas, denunciando desse modo a ferocidade do vírus e a sua infiltração na comunidade escolar.

A 8 de Julho, 25 novos casos de infecção foram descobertos, incluindo dois grandes grupos de um lar de idosos e de um restaurante, tendo cinco casos origens desconhecidas.

A 9 de de Julho, foram anunciados 34 casos, o maior número de residentes infectados em Julho. O grupo do Lar de Idosos Tze Wan Shan Kong Tai testemunhou um aumento de 23 infecções, afectando não apenas os hóspedes mas também alguns funcionários. Outro grupo era composto por sete taxistas e os seus familiares. Claramente, a Covid-19 tinha penetrado profundamente na comunidade e estava a espalhar-se rapidamente entre as pessoas comuns.

A 10 de Julho, foram detectados 38 casos de infecção, incluindo 32 locais. Entre estes, 11 tiveram origem em infecções de grupo num complexo de habitação pública chamado Ming Chuen, em Shatin. Muitos moradores ficaram assustados e abandonaram o bairro. A maioria destes casos eram assintomáticos, mas alguns dos residentes infectados apresentavam sintomas como tosse, espirros, dores no peito e dores de cabeça. Os serviços de Protecção Ambiental e de Habitação do Governo de Hong Kong inspeccionaram o edifício Ming Chuen, mesmo acreditando que o vírus não se estava a espalhar por causa de qualquer fuga nas canalizações, já que se localizavam fora do complexo habitacional. O Governo não chegou a nenhuma conclusão sobre as origens da Covid-19 neste local, e por agora não planeia mandar evacuar o edifício. 

No entanto, numa mulher de 66 anos, residente no edifício Ming Chuen, descobriu-se um valor CT de 22, o que significa que o seu nível de infecção era muito mais severo do que o dos restantes casos. Os funcionários do Governo recolheram amostras dos residentes, enquanto colocavam em quarentena aqueles que estavam comprovadamente infectados com o vírus.

Cerca de 30.000 pessoas vivem no bairro de habitação pública de Shui Chuen Ao, onde está integrado o edifício Ming Chuen. Como alguns moradores infectados com a Covid-19 visitaram um mercado e um centro comercial próximos, temia-se que mais residentes pudessem estar infectados com o vírus. Embora o trabalho de desinfecção tenha sido realizado imediatamente no mercado e no centro comercial, as receitas de ambos caíram imediatamente nos dias 11 e 12 de Julho.

Dos 11 residentes infectados no edifício Ming Chuen, dois deles são estudantes do ensino primário. As duas escolas primárias que frequentam interromperam imediatamente todas as aulas a 10 de Julho, enquanto o centro comunitário localizado no edifício Ming Chuen encerrou todas as suas actividades por duas semanas.

Relatórios entretanto elaborados apontam para quatro factores principais que terão desencadeado o surto de Covid-19 no bairro de Shui Chuen Ao. Em primeiro lugar, muitos moradores não usavam máscaras, incluindo membros de comunidades oriundas de países do Sul da Ásia. Em segundo lugar, alguns moradores queixaram-se à imprensa que os funcionários da empresa de limpeza usavam os mesmos pedaços de pano para lavar todo o tipo de instalações, incluindo pavimentos, paredes e grades. Em terceiro lugar, muitos moradores do bairro com baixos rendimentos reutilizavam as suas máscaras muitas vezes, em vez de comprar novas. Em quarto lugar, os elevadores do edifício estavam muito congestionados, acomodando quase 50 pessoas nas horas de pico, o que aumentava por si só a possibilidade de infecções. Não se sabe se esses factores realmente contribuiram para o surto de Covid-19; no entanto, os hábitos de vida e a consciencialização e vigilância do público parecem ser os principais problemas a ter em conta neste e noutros surtos.

O lar de idosos Kong Tai demonstrou também como a Covid-19 conseguiu tirar partido do contexto ambiental para infectar 34 pessoas em quatro dias. Primeiro, as camas para os idosos estavam com sobreocupação. Segundo, as pessoas infectadas incluíam não apenas os hóspedes mas também a equipa de enfermagem, com quem mantinham contacto frequente, assim contribuindo para a propagação da doença.

Por outro lado, quatro dos taxistas que foram infectados com a Covid-19 a 9 de Julho, visitaram o mesmo restaurante de ‘fast food’ ou tiveram interacção com pessoas que frequentaram esse restaurante.

A 10 de Julho, seis casos de infecção foram dados como casos importados, incluindo o de duas pessoas infectadas que já haviam até deixado Hong Kong. Um era marinheiro e o outro era um piloto americano que regressou aos Estados Unidos. Os outros quatro casos envolveram filipinos que tinham acabado de chegar a Hong Kong. Portanto, houve lacunas no tratamento dos casos importados, pois as infecções foram descobertas tarde e a más horas, quer por se tratar de casos assintomáticos, quer por os resultados dos testes terem sido conhecidos de uma forma relativamente lenta para a mobilidade das pessoas infectadas.

Alguns cientistas de Hong Kong acreditam que a Covid-19 se tornou entretanto muito mais virulenta, através de mutações, e que se espalha agora pela comunidade mais rapidamente do que nunca. Apelam, por isso, aos moradores de complexos de habitação económica que verifiquem as suas casas de banho e canos de cozinha, para se certificarem de que não há fugas que possam contribuir para a disseminação do vírus. Além disso, sugerem que os motoristas mantenham as janelas dos seus táxis sempre abertas, para reduzirem a possibilidade de infecção pela Covid-19. Em suma, os cientistas de Hong Kong procuram enfatizar a importância da higiene pública nos esforços da comunidade para travar a propagação da doença.

Devido às infecções contraídas por alguns estudantes, os serviços de Educação da RAEHK anunciaram a 10 de Julho que todas as escolas, primárias e secundárias, e jardins de infância encerrariam as suas portas a partir de 13 de Julho, até novo aviso. As escolas terão autonomia para organizar os exames segundo os seus critérios, mas o distanciamento social deverá ser mantido entre os estudantes.

Por outro lado, a Feira do Livro anual que está programada para se realizar de 15 a 21 de Julho provavelmente continuará como previsto, mas os livreiros participantes terão de instituir medidas mais rígidas de controle de multidões e distanciamento social. Apenas 60% dos habituais participantes estarão este ano na Feira do Livro. Responsáveis dos serviços de saúde estarão no local do certame, para garantirem que serão observados os padrões de higiene.

A 11 de Julho, foram detectados mais 29 casos de infecção, incluindo 12 casos importados e 8 de fontes desconhecidas. Num dos casos, um residente que foi comprar sushi a 22 de Junho a uma loja no complexo de habitação pública de Ping Shek, sentiu-se desconfortável depois de um homem que lá se encontrava também ter tossido. Tudo leva a crer que a propagação da doença é, de facto, relativamente fácil e rápida, o que aponta para a necessidade de os cidadãos usarem máscaras para reduzirem o risco de infecção, nomeadamente por pessoas que não exibam sintomas.

Do ressurgimento de casos de Covid-19 extraem lições importantes para a cidade, válidas também para outras partes do mundo. Primeiro, a higiene pública é extremamente importante para impedir a propagação da doença. Segundo, o público precisa de manter uma atitude vigilante, jamais devendo deixar de usar máscaras. Em lugares  onde a Covid-19 assume contornos muito graves, há ainda muitos cidadãos que parecem não reconhecer a importância do uso de máscaras para a protecção das pessoas. Terceiro, a realização de testes de Covid-19 precisa de ser acelerada e massificada em Hong Kong. Na China continental, a rapidez e a escala dos testes parecem ser um factor decisivo para conter a propagação da doença nas grandes cidades, como Pequim. Quarto, é necessário definir requisitos rigorosos para testes e quarentenas relativamente a visitantes recém-chegados a Hong Kong. As críticas mais apontadas às autoridades de Hong Kong passam pelas lacunas existentes não apenas na detecção de casos de infecção entre os residentes, mas também na falta de controlo rigoroso sobre os visitantes de outros países.

Se a Covid-19 continua a ser uma doença de elevada virulência, capaz de se infiltrar em diferentes recantos da sociedade de Hong Kong, então a experiência que aqui se tiver poderá servir de lição a outros países ou territórios onde a Covid-19 permaneça uma séria ameaça.

 

Sonny Lo

Autor e Professor de Ciência Política

Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Macau News Agency/MNA.

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Etnia, Identidade e mestiçagem: Os limites da supremacia racial 

EtnicidadeOriginariamente o termo etnia descrevia as populações que não tinham acesso à “Polis” (Grega) ficando excluídas do regime social, político e moral da «cidade-estado». 

Mais tarde este conceito é recuperado por Georges Vacher de Lapouge (1854-1936) antropólogo francês, teórico da eugenia e do racialismo e que ficou conhecido como um dos fundadores da antropossociologia, o estudo antropológico e sociológico da raça como meio de estabelecer a superioridade de certos povos, inspirado pelo conceito de «eugenia» lançado por Francis Galton (1822-1911), que preconizava a possibilidade de uma raça conseguir transmitir por descendência um maior número de características comuns de certa qualidade sendo mais bem sucedida em fazer perpetuar a sua herança. As sucessivas gerações dos seus descendentes teriam mais possibilidades de sobreviver e dominar as restantes raças.  

Estes autores acabaram por inspirar erroneamente, as posições que hoje defendem do apuramento racial, ou seja, a possibilidade de assumir o aniquilamento das raças ditas inferiores em prol de uma determinada supremacia das raças puras. 

Convém, no entanto, esclarecer que a recuperação do termo «etnia» visava essencialmente permitir a inclusão de um terceiro modo de classificação dos povos, ao lado da raça e da nação. A nação descreveria a entidade política e socio-histórica, a raça descreveria as características biológicas dos povos e caberia à etnia, segundo Lapouge, descrever os grupos humanos a partir das referências mestiçadas com características hibridadas na fisionomia, língua e cultura e que, tendo em conta o contexto da época foi aplicado (apropriado) pelo poder hegemónico das potencias coloniais europeias para determinar os povos que não tinham espaço no mundo civilizado a exemplo da «Polis» grega.   

Mais tarde, a referência aos grupos étnicos, passou por sua vez, a colocar em destaque justamente a unidade social que lança mão dessas características reais ou imaginadas para produzir e demarcar limites com a relação a outras unidades sociais, ou seja, o princípio da diferença.

O peso semântico das populações deixa de ser depositado apenas nas características substantivas que definem uma raça ou uma nação, para recair também na sua razão subjetiva e socio-antropológica da realidade das etnias, desconstruindo o primado da superioridade e elevando o princípio da diferença.

Com os contributos posteriores de Benedith Anderson (1936-2015) que introduz o conceito de «comunidades imaginadas» e, na sua esteira, reforçada por Stuart Hall (1932-2014), que o contextualiza no quadro da pós-modernidade e da globalização, passou-se a sustentar a ideia de que o sistema de simbolização dos grupos étnicos, que eles preferem chamar “comunidades”, podiam ganhar autonomia e emanciparem-se como realidade social. 

O adjetivo “imaginado” que acrescentaram à comunidade (ou grupo étnico) justifica-se porque a atitude simbólica que marca a autopercepção e o sentimento de pertença não dependeriam de regras de interação entre grupos reais, mas antes da relação entre comunidades imateriais, formadas por dispositivos de compartilhamento de experiências como a literatura, a imprensa, os mitos, os ritos, as datas, os heróis e  as demais referências para a construção do seu coletivo enquanto entidade autónoma .

Assim, a etnicidade passa a descrever performances identitárias que incluem também os amplos contextos derivados das diásporas que salpicaram o mundo formando populações cada vez mais mestiçadas e hibridadas, quer do ponto de vista genético, quer do ponto de vista cultural, retirando espaço às teorias eugenistas e naturalistas que preconizavam uma única via pela reprodução controlada.

A realidade de Macau ilustra bem este contexto, acolhendo a presença de etnias multifacetadas, multiculturais e pluriétnicas, anulando em boa parte a importância da raça e da nação para a sua classificação ou caracterização, optando por privilegiar as suas referências étnicas, grupais e de comunidades num emaranhado de traços hibridados que se entrecruzam e se autonomizam em cada espaço de pertença reclamado.

O paradoxo que se coloca é que os alicerces que hoje fundamentam as aspirações a uma supremacia racial derivam precisamente dos postulados que vieram a consagrar o conceito de etnia como reinvenção da diferença entre os povos, ampliando o primado da classificação das raças para classificar os grupos humanos e atenuando o conceito de nação que deixa de ser limitativo ao espaço fronteiriço para passar a espaços transnacionais inundados de diásporas e migrações em massa que catalisam a emergência das comunidades mestiçadas e imaginadas um pouco por todo o mundo.

Lamento o mal-entendido dos crentes da supremacia racial. Ao basearam-se nas teorias do eugenismo e racialismo como fonte de inspiração, pensaram encontrar aí os motivos  para as suas ações mas, há alguns limites para essa pretensão, talvez pelo facto de estarem  equivocados quanto ao seu papel no percurso histórico da ciência social, pois o contributo dessas posições vai precisamente no sentido contrário, foi a partir delas que a antropologia foi construindo a contextualização das etnias como realidade autónoma e com princípios identitários que reclamam o principio do  direito à diferença, permitindo uma melhor explicação do mundo atual e global, que é essencialmente salpicado por etnias e identidades de caracter mestiçado, dito isto: Deixem-nos respirar.

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Carlos Piteira

Investigador do Instituto do Oriente

Docente do Instituto Superior de Ciências Socias e Políticas / Universidade de Lisboa

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Lei de segurança nacional e nomeações para Hong Kong: Legalismo e Centralismo chinês

Hong Kong national security law protest

FOTOGRAFIA: MIGUEL CANDELA/EPA

Sonny Lo Shiu Hing*

Com a publicação da Lei de Segurança Nacional e o anúncio de quem a vai aplicar, está estabelecido o mecanismo de segurança nacional para a Região Administrativa Especial de Hong Kong (RAEHK), caracterizado por uma combinação de legalismo e centralismo chinês.

Em primeiro lugar, se o legalismo chinês tem sido tradicionalmente pontuado pelo uso da lei como uma ferramenta da governação, emprego de tácticas de exercício do poder e reforço da autoridade, essas relações triangulares entre lei, táctica e autoridade podem ser vistas no conteúdo da Lei de Segurança Nacional (doravante, Lei).

O Capítulo Três da Lei estipula as penalidades para a secessão, subversão, actividades terroristas e o “conluio” com países estrangeiros ou elementos externos para “fazer perigar” a segurança nacional. Essas penas, que variam de três a dez anos de prisão ou mais, dependerão de como os juízes nomeados pelo Chefe do Executivo aplicarem a lei e proferirem as sentenças. Essas penas podem ser de tal modo severas que a própria prisão perpétua é admitida, o que vem demonstrar a adopção do princípio legalista pelos redactores da Lei. Historicamente, o legalismo opta por pensas pesadas como forma de dissuadir o crime.

Do ponto de vista táctico, o Artigo 29º da Lei adopta uma definição ampla de “conluio”, que inclui uma pessoa que “rouba, espia, transaciona ou fornece ilegalmente segredos ou informações de Estado”, que “conspira com um país estrangeiro” para impor sanções contra a RAEHK e que “instiga ao ódio” dos residentes de Hong Kong contra o governo central ou o governo da RAEHK. Além disso, instituições, organizações e indivíduos baseados fora de Hong Kong podem ser condenados por crimes de segurança nacional se as suas actividades se enquadrarem no artigo 29º.

Após a publicação da Lei a 1 de Julho, o Director do Gabinete de Ligação, Luo Huining, referiu-se ao diploma como “uma espada afiada pendente” sobre uma minoria do povo de Hong Kong. As observações de Luo comprovam que a abordagem legalista chinesa foi a adoptada, nomeadamente fazendo uso de penas pesadas e termos jurídicos vagos que legitimem a utilização do máximo de dissuasão possível contra os infractores da segurança nacional, por parte das autoridades.

O escopo da aplicação da lei é amplo. O artigo 37º aplica-se a uma pessoa que seja residente permanente da RAEHK ou a um organismo estabelecido na região, se a pessoa ou o organismo cometerem um crime de segurança nacional.

O corolário do Artigo 37º é que, para os jovens de Hong Kong que cometeram crimes contra a segurança nacional, mas que escaparam da RAEHK para outros países, eles podem ser objecto de extradição para a China se entrarem ou permanecerem num país com tratado de extradição com a RPC.

Seis organizações dissolveram-se (incluindo o Demosisto e o Civil Diplomatic Network) e seis pessoas escaparam de Hong Kong para outros países antes da publicação da Lei de Segurança Nacional. Em 2 de Julho, foi noticiado que Nathan Law, um jovem activista que fez lobby nos Estados Unidos pela aplicação de sanções à RAEHK, fugiu de Hong Kong para destino desconhecido.

O Artigo 38º diz que “esta lei aplicar-se-á a delitos abrangidos por esta lei cometidos contra a RAEHK fora da região por uma pessoa que não seja um residente permanente da região”. Esta norma é análoga à do Artigo 8º do Código Penal da China, que pode ser aplicada a “estrangeiros que, fora do território da República Popular da China, cometam crimes contra o estado da RPC ou contra os seus cidadãos”.

O que se pode aferir do artigo 38º é que, se estrangeiros cometerem crimes previstos na Lei de Segurança Nacional de Hong Kong, poderão ser alvo de um pedido de extradição da China caso se encontrem num país que tenha acordo de extradição com a RPC.

Cabe aqui recordar o caso de Gui Minhai, um editor de livros sueco nascido na China que se viu envolvido no incidente da livraria Causeway Bay, na RAEHK, e que viria a desaparecer da Tailândia no final de 2015. Depois ter sido “trazido de volta” à República Popular da China, Gui renunciou publicamente à sua cidadania sueca durante uma confissão televisiva. Com este caso ficou a saber-se que mesmo um cidadão “estrangeiro” como Gui, podia passar a ser considerado cidadão da China Continental e que podia ser “trazido de volta” à RPC. A China e a Tailândia têm em vigor um acordo de extradição celebrado em Maio de 2009.

Em segundo lugar, toda a Lei de Segurança Nacional e o pessoal nomeado para a aplicar são ilustrativos da adopção do centralismo dentro do princípio do “centralismo democrático” de regimes comunistas como o da RPC. O elemento “democrático” é aqui de menor importância, embora o Artigo 4º mencione que “os direitos humanos devem ser respeitados e protegidos para garantir a segurança nacional” na RAEHK. O Artigo 4º sustenta que “os direitos e liberdades, incluindo as liberdades de expressão, reunião e manifestação” serão protegidos de acordo com a lei.

No entanto, a 4 de Julho foi noticiado na imprensa de Hong Kong que as bibliotecas públicas retiraram temporariamente das suas estantes vários livros escritos por Joshua Wong, Tanya Chan e Chin Wun. Além disso, as autoridades de Hong Kong proclamaram a 2 de Julho que o slogan “Liberate Hong Kong, revolution of our times” (‘Libertemos Hong Kong, a revolução dos nossos tempos’) tem uma conotação “secessionista e subversiva”.

A 4 de Julho, o Director do Gabinete de Ligação, Luo Huining, foi nomeado por Pequim conselheiro do Continente para o Comité de Salvaguarda da Segurança Nacional na RAEHK (a seguir denominado Comité). Ao mesmo tempo, Zheng Yanxiong, membro do comité provincial do partido em Guangdong, foi nomeado chefe do Gabinete para Salvaguardar a Segurança Nacional do Governo Popular Central na RAEHK (a seguir denominado Gabinete). Em 3 de Julho, Edwina Lau foi empossada como vice-comissária de polícia (segurança nacional) da RAEHK. O governo de HK anunciou também que os membros do Comité, presidido pela Chefe do Executivo Carrie Lam, incluem o Secretário-chefe Matthew Cheung, o Secretário para as Finanças Paul Chan, a Secretária para a Justiça Teresa Cheng, o Secretário para a Segurança John Lee, o comissário de polícia Chris Tang, o director da Imigração Au Ka-wang, o Comissário da Alfândega e Impostos Especiais Hermes Tang, o Director do Gabinete do Chefe do Executivo Chan Kwok-ki e Edwina Lau.

As consequências destas nomeações para o aparato de segurança nacional de Hong Kong são significativas.

Primeiro, o director do Gabinete de Ligação (GL) Luo ocupa quatro diferentes cargos: director do GL, consultor do Comité, vice-director do Gabinete de Assuntos de Macau de Hong Kong e membro do Comité de Coordenação Central de Pequim em Hong Kong e Macau. O seu poder foi institucionalmente reforçado, pois passa a aconselhar a Chefe do Executivo, através do Comité, sobre a nomeação de juízes que irão lidar com os casos de segurança nacional (Artigo 44º), e a participar na implementação de “bases de investigação e instalações electrónicas” em locais onde ocorram infrações à segurança nacional. (Artigo 43º).

O artigo 44º diz que uma pessoa não pode ser designada juiz para julgar um caso de segurança nacional “se ele ou ela tiver feito alguma declaração ou assumido um comportamento que de alguma maneira tivessem posto em risco a segurança nacional”. Embora a Chefe do Executivo possa consultar o Comité e o Juiz-Presidente do Tribunal de Última Instância de Hong Kong sobre a escolha dos juízes que lidam com a segurança nacional, se o vai ou não fazer é algo do domínio do costume constitucional (de alguma forma, um hábito político). Mas, na consulta ao Comité sobre a nomeação dos juízes (Artigo 44º), ao Director do GL é institucionalmente reconhecido o poder de se pronunciar, embora isso não se traduza necessariamente num poder de veto.

Segundo, antes que o Chefe do Executivo indigite o vice-comissário da polícia encarregado da segurança nacional (artigo 16º), e antes de nomear um Procurador-Geral no Departamento dos Assuntos de Justiça para lidar com a segurança nacional (artigo 18º), essas nomeações têm de ser sujeitas a parecer do chefe do Gabinete do Governo Central para a Salvaguarda da Segurança Nacional na RAEHK), em conformidade com o artigo 48º da Lei.

Do ponto de vista da nomenclatura, tanto o director do GL como o chefe do Gabinete do Continente podem supervisionar o poder do Chefe do Executivo. Não admira, por isso, que o Apple Daily tenha escrito em editorial, a 4 de Julho, que o Director do GL é “de facto um secretário do partido” na RAEHK.

Se a RAEHK for comparada a uma província do Continente, a figura da Chefe do Executivo assemelha-se à de um governador provincial, enquanto o secretário do partido da RAEHK seria o Diretor do GL, e o principal responsável pela segurança nacional seria o chefe do Gabinete nomeado por Pequim. Ou seja, a segurança nacional de Hong Kong está claramente sob o rígido controlo das autoridades centrais, enquanto as elites políticas da RAEHK são basicamente responsáveis pela sua implementação.

Terceiro, a nomeação de Zheng Yanxiong, de Guangdong, para chefiar o Gabinete implica que a segurança nacional da RAEHK passa a estar também sob a esfera do aparato de segurança nacional de Guangdong. Com um cargo equiparado a ministro-adjunto, o chefe do Gabinete coordena com a Guarnição de Hong Kong e com o Gabinete do Comissário do Ministério das Relações Exteriores da China de igual para igual. Se for estabelecido o costume constitucional de ter o chefe de segurança nacional de Guangdong como chefe do Gabinete(para a Salvaguarda da Segurança Nacional em Hong Kong, relembre-se), isso significará que Pequim vê a segurança nacional de Hong Kong como estando intimamente ligada ao desenvolvimento de Guangdong e da Grande Baía. Do ponto de vista de Pequim, os infractores da segurança nacional na RAEHK não podem e não lhes será permitido entrarem ou  infiltrarem-se no Continente, principalmente em Guangdong e na Grande Baía. Pode, desde já, prever-se que bases de dados pessoais venham a ser amplamente usadas para conduzir vigilância sobre uma minoria de pessoas de Hong Kong consideradas “um perigo” para a segurança nacional.

A lei de segurança nacional e o pessoal nomeado para a RAEHK vieram comprovar que Pequim lida com a segurança nacional de Hong Kong combinando legalismo com centralismo, através do reforço do poder do Director do Gabinete de Ligação e do alargamento dos poderes de supervisão de Guangdong sobre a segurança nacional de Hong Kong. Todo o sistema reflecte a desconfiança de Pequim em relação às autoridades de Hong Kong, em função do surto, da persistência e da gravidade dos protestos ocorridos entre Junho e Dezembro de 2019.

*Autor e Professor de Ciência Política

Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Macau News Agency/MNA.

OPINION-National Security Law and Personnel for Hong Kong: Chinese Legalism and Centralism

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