Morte lenta

Pedro Galinha

Comecemos pelo fim. O filme “2049” termina com um grupo de jovens que, depois de recuperar a consciência, deposita uma flor morta na Cápsula do Tempo.

O simbolismo da cena, segundo os autores do projecto (universitário, é preciso que se diga), transporta-nos para uma sensação de certo saudosismo  pelos tempos que antecederam a transferência de soberania. Dizem os jovens, com idades entre os 20 e 23 anos, que, por essa altura, havia “humanidade” em Macau.

Não vivi os tempos da Administração portuguesa, nem tampouco posso julgá-la. Certo é que o presente e o futuro desta que é a minha nova terra poderia ser bem melhor.

“Perdida a autoridade dos portugueses, nos 50 anos seguintes, a dúvida está em saber se construímos ou se destruímos Macau. A máscara que os personagens usam nessa cena final significa que Macau se sacrificou a si própria, está a morrer como a cidade. Se quisermos mudar as coisas tarde demais, já tudo acabou. Será muito tarde para perceber o que aconteceu e, definitivamente, tarde demais para mudar”, contou o realizador Perry Fok, em entrevista ao PONTO FINAL.

Na morte lenta que os jovens decidiram ficcionar, entram o autoritarismo, os subsídios, a poluição, o trânsito infernal, a pobreza e questões de identidade, como a língua. Enfim, há pano para mangas e o propósito da película passa por fazer com que quem vê o produto final possa “reflectir” sobre aquilo que queremos no futuro.

Quem parece não pensar da mesma forma – sobre o meio de contribuir para um espaço social mais digno – são os deputados, que, na semana passada, tiveram intervenções absolutamente ridículas no hemiciclo. Em causa estavam seis projectos de lei assinados por José Pereira Coutinho.

Alguns, sim, eram pouco precisos e mereciam mais trabalho de casa. Mas, apesar de tudo, poderiam ser o primeiro passo para uma discussão séria, que a Assembleia parece não querer ter.

O tempo, alegaram os “colegas” de Coutinho (além de o acusarem de ter pretensões eleitoralistas), foi a barreira que travou a sua iniciativa legislativa, que é uma tarefa a que a maior parte não parece ser muito dada. No entanto, uma das propostas tinha apenas um artigo em discussão e não dava grande azo a atrasos ou contradições, já que em causa estava a dignidade humana.

Urge regular – traduzindo, proibir – a exibição dos detidos encapuzados, nas conferências de imprensa que têm lugar na sede da Polícia Judiciária. É o mínimo, num território que ratifica convenções de direitos humanos.

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Um governo pedinte

Vítor Quintã

 

O Chefe do Executivo voltou na última quinta-feira a sugerir às pessoas que não comprem casas, admitindo que “o mercado está sobreaquecido e os preços estão demasiado altos.”

A mensagem de Fernando Chui Sai On não é substancialmente diferente daquela que em Novembro transmitiu durante a apresentação das Linhas de Acção Governativa para 2013. Nessa altura, exortou as pessoas a verificarem se os rendimentos que auferem são suficiente para suportar o custo de uma casa.

Há duas semanas, o secretário para os Transportes e Obras Públicas, Lau Si Io, nada mais tinha a acrescentar do que pedir aos potenciais compradores que avaliem a sua capacidade financeira antes de comprarem uma casa.

Entretanto, os preços da habitação aumentaram 6,7 por cento nos primeiros três meses deste ano.

Hong Kong e o Continente têm introduzido novas medidas no sentido de arrefecerem os seus mercados de habitação. Não é contudo ainda claro se elas estarão a produzir os efeitos pretendidos.

Em Macau, o melhor que o Governo consegue fazer é pedir às pessoas que não exerçam o seu direito a comprar um imóvel. É ridículo.

O Governo pode em qualquer altura aconselhar as pessoas sobre o tipo de comportamento que as deve nortear. A reciclagem do lixo é disso um exemplo.

Se em algum momento o Executivo entende que a atitude de algumas pessoas – mesmo que não seja ilegal – está a prejudicar o interesse público, pode introduzir restrições.

Mas Chui Sai On é extremamente ingénuo se espera que os compradores – muitos deles testas-de-ferro para investidores do Continente – se abstenham de comprar imóveis apenas com base neste tipo de observações.

Se eu estivesse interessado em adquirir uma propriedade, este tipo de comentários apenas aguçaria o meu interesse em fechar rapidamente o negócio.

Um Governo que chega ao cúmulo de implorar ao público que colabore com ele é um Governo impotente, que tem falta de ideias, ou simplesmente não quer tomar as medidas necessárias.

Se os preços são muito altos, então há que fazer alguma coisa, independentemente de interesses do sector imobiliário e da construção civil.

Ao contrário do que sugere Chui Sai On, a população não pode dar-se ao luxo de esperar até que as cinco novas áreas de aterro estejam prontas a encaixar mais uns milhares de apartamentos.

O arrendamento, alternativa à compra uma casa, é cada vez mais caro.

Não é claro o quão caro está realmente a tornar-se, uma vez que os Serviços de Estatística e Censos não publicam dados sobre as rendas habitacionais desde o censo de 2011. Talvez tenhamos de esperar até ao próximo censo, em 2021.

O Governo deve abandonar o mito de que Macau é um mercado livre e aberto, como disse o economista Albano Martins numa entrevista ao Business Daily publicada na semana passada.

Já ninguém acredita nisso.

Nas telecomunicações, nos transportes, ou nos alimentos frescos… Nenhum destes sectores é verdadeiramente livre, em prejuízo da cidade.

Parece que o Executivo está empenhado em garantir que o mercado seja livre e aberto apenas quando beneficia o interesse dos mais poderosos, como é o caso dos promotores imobiliários e dos empresários da construção civil.

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Casais, acalmem-se

Sónia Nunes

Não sei se já repararam (possivelmente não, por andarem distraídos com o futebol e ocupados em contradizer valores milenares) mas as famílias estão mais próximas e menos disfuncionais. Desde que o Chefe do Executivo, Chui Sai On, se opôs à classificação da violência doméstica como crime público que se acabaram as gritarias no meu prédio. Já não há woks a estalarem azulejo, nem crianças com o rabo vermelho, de pé no tapete à porta de casa, chorosas e a pingar ranho do nariz à espera que a mãe as deixe entrar. Ambulâncias, só vi uma – mas por certo foi um acidente, uma briga de amor, que uma casa que não é ralhada, não é bem governada, ainda que seja às quatro da manhã.

A harmonia e os laços familiares estão cada vez mais fortes e isso deve-se a Chui Sai On, que impediu essa barbaridade civilizacional de tentar levar assuntos domésticos para a esquadra. É injusto e reaccionário afirmar que o Chefe do Executivo está a proteger os agressores só para manter as aparências. A prova foi dada na semana passada, com Chui a fazer uma distinção inovadora e perspicaz entre rixa e violência. Uma rixa é uma disputa, onde há pancada, sim senhor, mas admite-se o direito de resposta e a troca de insultos. Já na violência, há um abuso de força física sobre uma das partes. Em síntese: um casal, meia dúzia de chapadas, dois sopapos e cinco ofensas verbais – rixa; um casal, número impreciso de murros e pontapés (daqueles bem aviados) e uma entrada nas urgências – violência.  Capische?

É para os homens e mulheres que têm rixas que Chui Sai On olha quando propõe uma alternativa à queixa por violência doméstica e, eventualmente, ao divórcio: um centro de serviços para acalmar casais. A ideia é brilhante. Imagine-se um casal que chega à esquadra, ela com um olho negro e ele com a mão dorida. “Vai um chá de camomila?”, sugere o polícia, enquanto senta os dois e lhes pede para respirarem fundo dez vezes seguidas e imaginarem um bonito sol. Em cima da mesa, estão panfletos com programas de relaxamento: o casal pode escolher ir para uma sala ouvir uma colectânea de Pan Pipes ou sons do oceano, fazer massagens (a dois ou cada um por si) ou meditação. As possibilidades são infinitas e não me repugna a ideia de se oferecerem também viagens rejuvenescedoras para destinos exóticos.

O centro de serviços para acalmar casais não só é a resposta que falta à violência doméstica, perdão, rixa doméstica, como representa um nicho de mercado útil às pequenas e médias empresas e à diversificação da economia. Estou também convencida que, após a criação deste centro, o número de casamentos entre arqui-inimigos vai aumentar pelas óbvias vantagens que a protecção jurídica do murro entre família acarreta.

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Meter a cabeça no capuz

Inês Santinhos Gonçalves

O debate que esta semana se fez na Assembleia Legislativa em torno dos seis projectos de lei do deputado Pereira Coutinho foi absolutamente lamentável. Serei a primeira a admitir que Coutinho, ao apresentar diplomas em catadupa, está a ser eleitoralista. Nalguns casos, como o projecto relativo à protecção dos animais e à violência doméstica, aceito até a justificação dada pelos deputados de que o tempo que resta até às eleições é curto demais para se analisarem diplomas com alguma dimensão – apesar de não acreditar que esse seja o principal motivo para o chumbo. Mas enfim, Coutinho tem de dar a mão à palmatória: teve quatro anos para pensar no assunto e esteve a assobiar para o lado.

Mas isto não justifica que se chumbem automaticamente todos os projectos só por não serem do Governo (ou por serem de um deputado crítico como Coutinho) – porque sejamos honestos, foi isto que se passou. Independentemente dos interesses eleitoralistas – mas legítimos – de Coutinho, muitos dos seus diplomas abordavam assuntos relevantes e efectivamente muito debatidos na actualidade. Boa parte deles merecia atenção e, no mínimo, um debate sério.

O caso mais gritante foi o da protecção da imagem dos detidos. O projecto foi chumbado sem que se pusesse em cima da mesa um único argumento válido. O diploma tem apenas um artigo e prevê algo absolutamente óbvio em qualquer sociedade com um pingo de respeito pela dignidade humana. Mais ainda: este projecto de lei não belisca, parece-me, qualquer interesse privado. Então, afinal, porque é que foi chumbado?

Um ou outro deputado ainda ensaiou uma justificação: que ao proibir os detidos de serem exibidos em conferências de imprensa se pode estar a restringir o direito da população à informação e, em última instância, a liberdade de expressão. É caso para lembrar que quando não há nada para dizer, mais vale ficar calado. Esta inclassificável explicação foi a única – friso, a única – a ser apresentada no hemiciclo. Leonel Alves salientou a ausência de legitimação na lei para tal prática e votou a favor. De resto, silêncio.

Um chumbo vergonhoso, que diz muito sobre o respeito que a Assembleia Legislativa tem pelas liberdades, direitos e garantias.

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Hipocrisia intencional

Maria Caetano

 

Num fórum onde as discussões têm de tender por força de razão para o abstracto e universal, como é o caso do processo legislativo participado – quase sempre nos mínimos – pelos nossos deputados, é muito fácil perder o treino à empatia e, mais um bocadinho, perder a mão à realidade – ao caso, ao indivíduo, ao problema. Mesmo quando o sistema político existente permite apenas residuais delírios eleitoralistas, é num passo muito curto que vemos o debate guiado pela retórica vazia, pelo disparate e, não raras vezes, pela mais pura das hipocrisias.

É o que é, conforme é comum resumir a resignação, na impotência dos representados perante o total fracasso deste esquema parlamentar de débil representação. Aqui como noutros sítios, está muito certo. Não vale a pena amesquinhar esta Assembleia Legislativa sem ter em conta que há parlamentos muito mais universais que este que também redundam em fracasso total. Mas o caso aqui é este – e, para o caso, todos parecem esquecer a sua missão.

Há os legalistas, que justificam o alinhamento conservador e pró-Governo com o pezinho das letras miúdas e uma noção abstracta das garantias e direitos básicos, que acaba por não aproveitar a ninguém.

Há os inflamados adeptos da universalidade do voto que, no fim, invocam apenas as posições que os tornam populares junto da ideia de uma população anti-estrangeiro.

Há os incandescentíssimos indignados, dispostos a apontar com todos os dedos, mas cuja oportunidade não serve mais ninguém para além de si próprios.

Há os alinhadinhos tradicionais que fazem por defender o bairro e os operários, mas só em concertações de bastidores que acabam sempre goradas.

E há os obscenos, muito obscenos, que sem papas na língua admitem que só ali estão para zelar pelos próprios interesses. Depois há ainda os pesos mortos – tanto dá estarem lá como não estarem.

Há ainda uma classe à parte, que não faz qualquer sentido que ali esteja. São os deputados nomeados pelo Governo. Não é nada de pessoal, mas estão deslocados da função. Deviam estar nos gabinetes do Executivo e não num órgão de representação do conjunto dos cidadãos.

Não há nada de progressista e moralizador que saia desta Assembleia, onde todo o debate é inquinado por uma hipocrisia intencional. A discussão das passadas segunda e terça-feira de propostas sobre a violência doméstica, a protecção de Coloane como reserva ecológica, a reserva da dignidade e imagem dos suspeitos de crime detidos pela polícia, a proibição dos abusos sobre os animais, as garantias a assegurar aos trabalhadores com estatuto de não-residentes, são as ilustrações desanimadoras. Todas elas relativas à discussão de valores fundamentais de uma sociedade, e todas elas manipuladas e contrariadas sem a mínima seriedade. Nas próximas eleições, os eleitores podem votar em quem?

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Milagre da diversificação

Paulo Rego

A preocupação anda no ar: com as partículas finas poluentes, claro, que nos comem os pulmões e engolem a miríade de um crescimento que nos obriga a encolher em casa. Mas, afinal, há por aí outro medo a pairar; menos civilizacional, mais corporativo e oficial: o receio dos efeitos que o controlo dos fluxos de capital chineses causará no paraíso das receitas do jogo. Depois das declarações de Pansy Ho, que em vão quis tapar o sol com a peneira, dizendo que havia só fumo, e não fogo, o anúncio no China Daily de uma medida aparentemente nova – proibição de excursões para casinos – mas que afinal é tão velha que toda a gente já a sabe contornar, traz à baila uma questão que, mais dia menos dia, será incontornável.

A Sony, essa força aparentemente indestrutível do milagre japonês, não viu o iPod chegar; estava cega a proteger o negócio do vinil e ia sucumbindo às consequências do download; os jornais, distraídos com a sua importância, afogaram-se na Internet sem modelo de negócio e antes de medirem a força da onda; o capitalismo sem capital, paralisado na ilusão dos mercados futuros, caiu no buraco negro da crise que secou a torneira do crédito bancário… A lista é interminável e vem de muito longe. Há coisas que são o que são, mesmo antes de o serem. E gerir, mais do que fazer contas, é prever, intuir e recriar. E é isso que faz sentido em Macau. Porque havendo dinheiro de sobra, é bom que se aplique onde ele um dias pode faltar, investindo na construção do futuro.

Quando a economia tem dinheiro, a malta joga; quando a crise aperta, a malta joga; quando a maré é de sorte, a malta joga; quando o azar bate à porta, a malta também joga. Estonteante. A manipulação bolsista anuncia taxas de crescimento enormes; depois o jogo sobe 9 em vez de dez, e as acções caiem. É ridículo… Mas é o jogo, tão irracional como qualquer outro.

Já a futurologia da política na China tem hoje dados mais consistentes: a bolha imobiliária estará ao nível da norte-americana, em 2007, nas vésperas da hecatombe; o modelo de exportação baseado na mão-de-obra barata e na revolução industrial poluente está a ruir debaixo do céu negro e da falta de poder de compra global; o crescimento do PIB, nos últimos 20 anos, teve uma pobre distribuição per capita, criando tensão social e crise de legitimidade no partido único… E a lista continua.

Xi Jinping vai ter de mudar muita coisa. Imagine-se que avança mesmo a migração para a economia verde, a concessão de crédito aos privados e o fomento do consumo… Quem hoje vive do dinheiro que sai da China, sentirá o abalo do dinheiro que vai ter de ficar. Não é preciso nenhuma bola de cristal. Não sei se, quando, nem quanto; mas prevejo que sim, no curto prazo, e com alguma dimensão. Então o que fazer? Fechar os olhos e rezar para que assim não seja?

Seria bem melhor gerir; agir mais cedo do que tarde. Há um modelo de negócio VIP que precisa de um plano B, uma rede para a hipótese de queda. Não é para sair do jogo, é para sustentá-lo. Mas já agora, que tal levar um dia a sério a conversa gasta da diversificação. Será mesmo que tanto capital não tem imaginação para novos modelos de negócio? Era bom que tivesse. Porque mesmo que nada reduza a avalanche das fichas; apostar nisso talvez pague o milagre da diversificação.

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Um problema muito especial

Michael Grimes*

Podem não acreditar no aquecimento global, mas nesta altura certamente já acreditam nas partículas finas poluentes. Elas fazem parte da sopa sombria mascarada de ar fresco que vos invadiu os pulmões quando na semana passada puseram o pé nas ruas de Macau. Se alguém tivesse ainda dúvidas de que o ambiente na China está a transformar-se num desastre de proporções monumentais, a falta de qualidade do ar na semana passada serviu de alarme – ou melhor, provocou um ataque de tosse capaz de vos despertar.

Na última segunda-feira, os Serviços Meteorológicos e Geofísicos confirmaram ao Business Daily que a concentração de partículas finas – menores que 2,5 micrómetros – medida junto às vias de rodagem, por volta às 10h00, e novamente às 16h00, atingiu os 180 microgramas por metro cúbico. O padrão da qualidade do ar recomendado como saudável pela Organização Mundial de Saúde não deve ultrapassar em média – período de um ano – os dez microgramas de partículas finas por metro cúbico de ar.

Eu não saberia o que é uma partícula micrométrica mesmo que me beijasse os lábios antes de escorregar pela minha garganta. Mas percebo bem quando não consigo respirar. E um ar tão poluído que se torna impossível de respirar não é propriamente uma qualidade que eu procuro num destino mundial de turismo e lazer.

Por muito que este discurso pareça deitar abaixo a China, gostaria de salientar que todo o país está essencialmente a sacrificar o seu próprio ar, água e terra para fornecer ao resto do mundo computadores, tablets e telefones baratos, artigos de moda e outros bens de consumo nos quais o planeta se viciou. A Alemanha e a Grã-Bretanha também sacrificaram o seu ambiente no século XIX, quando a revolução industrial transformou esses países na fábrica do mundo. O que normalmente não se recorda é que levaram cerca de 150 anos a recuperar desse mal.

A China revela indiscutivelmente ter mais espírito de equipa – no sentido global – que a maioria dos poluidores per capita no Ocidente, quando se trata de discutir a redução da escala e do tipo de emissões poluentes. China e Índia argumentam – com alguma razão – que devem ser os países que mais contribuíram para o caos em que nos encontramos a mexerem-se primeiro e mais decisivamente para nos tirar dele.

Bom exemplo

Macau é um território suficientemente rico e autónomo para desenhar políticas públicas que sirvam de exemplo ao resto da região e do país. A indústria do jogo tem estado a fazer alguns esforços, tendo já estendido a campanha ‘Lights Out’ – no exterior dos casinos –, que começou a ser seguida uma vez por ano e já vai numa vez por mês. O Governo poderia também ajudar a reduzir drasticamente a quantidade de energia gasta para aquecer e arrefecer casas e escritórios. Devia fazê-lo introduzindo padrões internacionais de isolamento e vidros duplos obrigatórios para os novos empreendimentos como parte de um regulamento de construção urbana. Poderia ainda dar subsídios aos proprietários de imóveis antigos para investirem em isolamento – como acontece nalguns países da União Europeia. Estes podem parecer gestos pequenos e inúteis, mas é evidente para mim que registos da qualidade do ar como os da semana passada não podem simplesmente passar em claro, continuando sem controlo nem contestação. Qual é o sentido de ter um crescimento anual de dez por cento do PIB, se o ar é tão miserável que seus filhos não podem sequer sair à rua?

*Editor do Business Daily

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Governo à Sporting

Pedro Galinha

As injustiças mais cruéis são servidas no sofá, de madrugada e em véspera de dia trabalho. Isto quer dizer que, como podem imaginar, fui um dos espectadores do Benfica-Sporting, que terminou com a derrota dos “leões” (ou deveria dizer “leõezinhos”?), por 2-0.

As “águias”, cada vez mais embaladas para o título, tiveram a favor três factores. Em primeiro lugar, o árbitro João Capela, que não assinalou um penálti de Maxi Pereira sobre Diego Capel, na primeira parte do jogo e quando se registava um 0-0. Depois, a serenidade com que abordou o atrevimento dos jovens leoninos. Por último, o talento individual de alguns elementos, como Nicolás Gaitán, Lima, Luisão ou Garay.

Apesar de o “onze” de Jesualdo Ferreira ter mostrado raça e vontade de vencer, há um dado adquirido para os lados de Alvalade: falta um pouco mais de qualidade.

Na baliza, o problema nem é grave porque Rui Patrício é, sem dúvida, um dos melhores jogadores do plantel. Ou seja, é uma espécie de Cheong U, que raramente compromete a sua pasta dos Assuntos Sociais e Cultura e responde – quase sempre – de forma positiva aos desafios que lhe são colocados.

Quanto à defesa, foram utilizados no derby Miguel Lopes, Tiago Ilori, Marcos Rojo e Joãozinho. Todos têm potencial, mas é necessário que joguem mais coordenados nas acções em bloco.

Lembram-se das divergências entre Lau Si Io e Francis Tam, em relação ao Macau Studio City? A defesa do Sporting funciona mais ou menos da mesma forma. No ano passado, o secretário para os Transportes e Obras Públicas deu garantias de que não haveria jogo no projecto liderado pela operadora de Lawrence Ho, mas o responsável pela Economia e Finanças disse acabou por dizer que, a partir deste ano, iria ser considerada a distribuição de mesas.

No meio campo, Rinaudo assume-se como Chui Sai On. Voluntarioso q.b., aparece umas quantas vezes em bom plano (os 100 milhões de patacas doados a Sichuan são de aplaudir). No entanto, peca por não chamar a si a voz de comando e deveria dar o “murro na mesa” quando o caso está mal parado.

André Martins é o elo mais fraco, por isso lembrei-me do director dos Serviços de Administração e Função Pública, José Chu, que estaria bem no banco de suplentes, depois de não ter gostado do “bufo” que tornou público o “caso da fibra óptica”. Já Eric Dier, adolescente e guerreiro, passeia talento, bom senso e “coração”, como Guilherme Ung Vai Meng, que – à medida daquilo que lhe é possível – tem levado a bom porto o barco do Instituto Cultural.

Na frente, a pérola Bruma mostra que consegue ser aguerrido e imprevisível, qual Cheong Kuok Va, que a meio de conferências de imprensa sobre o balanço da criminalidade dá à sola para não responder àquilo que não é conveniente. E Diego Capel? Bom, o espanhol tem tiques de Jaime Carion, já que, quando aparece, fica sempre a saber a pouco (sim, continuam por esclarecer muitos pormenores ligados ao terreno de Coloane, próximo da casamata portuguesa).

Com o ponta-de-lança Ricky Wolfswinkel termino a apreciação, que não podia deixar de lado Florinda Chan. É que o holandês já devia ter mais sentido de oportunidade e experiência para ficar bem na fotografia. Se não conseguir inverter as coisas, ficará conhecido no mundo do futebol como a secretária para a Administração e Justiça nos corredores do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra. Não é preciso dizer porquê, pois não?

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Diz-me onde moras, dir-te-ei quem és

Inês Santinhos Gonçalves

 

Maus ventos chegam-nos da Assembleia Legislativa. As últimas evoluções da lei de salvaguarda do património confirmam-nos os piores receios: que Macau está à venda. Não há valor mais alto que o dinheiro e o chamado “interesse público” é apenas um conceito bonito para ser citado nos jornais. Não trago aqui novidade, bem sei, mas é sempre de lamentar quando o discurso empresarial salta do privado para a boca do público.

Nas últimas semanas assistimos a um recuo do Governo, que acedeu aos pedidos dos deputados – esses deputados eleitos (alguns) para defender o dito interesse público, ao mesmo tempo que exercem funções no privado, com alguma predominância no sector do imobiliário. A proposta de lei previa que os edifícios em torno dos imóveis classificados estivessem também eles sujeitos a uma protecção acrescida, com obrigatoriedade de obras de cinco em cinco anos de acordo com recomendações do Instituto Cultural.

Não é preciso ser-se especialista em urbanismo para entender que tal regra é obrigatória numa lei de salvaguarda do património. Ou estamos efectivamente a querer dizer que património são só as Ruínas de São Paulo? Proteger o património é proteger a cidade, é proteger a identidade de Macau, não só salvaguardar as memórias como assegurar o futuro. Choca-me que os deputados tenham o desplante de discordar com tão óbvia norma. Porque a verdade é que não estão só preocupados com o custo das obras, que iria cair nos ombros dos pobres proprietários. Estão preocupados com os “imóveis a preservar integralmente e [que] só podem ser objecto de obras de conservação” e com os “imóveis que não podem ser demolidos, excepto em circunstâncias excepcionais”, duas alíneas que fizeram cair e que asseguravam a protecção destes edifícios, situados na chamada zona de protecção. Onde é que já se viu não se poder demolir o que se quer e construir por cima, sem regras e com preço acrescido?

O choque duplica e vira indignação, quando se ouve a resposta do Governo. Afinal, os deputados tinham razão. Afinal, depois de se olhar bem para a coisa, o que é que o mamarracho do lado tem que ver com o edifício tão cuidadosamente classificado? Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Ou nas palavras do Instituto Cultural (IC): “Sobre as regulares obras de reparação e de manutenção de imóveis não-classificados situados na zona de protecção, [consideramos que] a sua influência nos imóveis classificados é relativamente baixa”.

Afinal, lembra o IC, todos os edifícios de Macau já têm de cumprir o Regulamento Geral da Construção Urbana, que responsabiliza os proprietários por realizarem obras de manutenção regulares. Este é um regulamento, como se sabe, cumprido à risca, e é por isso que não há edifícios devolutos em Macau.

Usar este regulamento como resposta é atirar poeira para os olhos da população. Por algum motivo a proposta de lei atribuía uma protecção especial a estes edifícios. Porque o Regulamento Geral da Construção Urbana pretende assegurar o bom estado físico dos edifícios, mas não olha ao valor histórico ou arquitectónico, não protege fachadas, alturas – enfim, não existe para garantir que Macau reflecte um pouco da sua alma no que ergueu em cimento e madeira.

Mas ao que parece, nem Governo nem deputados estão preocupados com isso. Alma é alma, mas dinheiro é dinheiro.

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Humanos e desumanos

Maria Caetano

 

Não há razões que assistam um casal de pais que procura ter junto de si uma filha menor, dois anos e meio apenas, no sítio onde vive e trabalha. A situação de facto é esta, ponto de vista humano, e num mundo ideal ponto final na discussão. Para além de tudo isto começam as circunstâncias –inatendíveis segundo a nossa Administração. Primeiro, as nacionalidades, depois, o estatuto legal de permanência no território, e em seguida os procedimentos administrativos e os fundamentos legais. Por fim, o poder discricionário de manifestar ou não empatia por uma certa condição humana – o amor dos outros pelos seus filhos.

O caso, traços gerais, é este: dois trabalhadores não residentes, empregados no Venetian, pediram a reunião familiar com a filha, muito menor, no território em Dezembro último, e uma novela administrativa das antigas conduziu-os em trâmites obtusos e frios por uma mão cheia de funcionários públicos, do Gabinete de Recursos Humanos aos Serviços de Migração, passando pelo Tribunal de Segunda Instância e até ao gabinete do secretário para a Segurança, Cheong Kuok Va.

O caso vinha descrito na edição do Jornal Tribuna de Macau de ontem e só vem provar mais uma vez que a máquina burocrática não tem rosto nem coração, e usa como última razão fazer caso do seu poder de arbítrio, ou do livre arbítrio do seu poder. Que é como quem diz, manda quem manda, e em última teima manda porque sim.

A primeira razão invocada para negar a reunião familiar, dada pelo Gabinete de Recursos Humanos, foi a de não haver “razões eventualmente atendíveis de um ponto de vista humanitário” (sic, muito sick). E, recurso atrás de recurso, até à partida da criança, lá Cheong Kuok Va chegou à conclusão de que existe uma “norma geral que atribui à Administração um poder discricionário, de elevado grau, no que respeita à matéria de autorização especial de permanência para fins de reagrupamento familiar de todos os trabalhadores residentes no geral”. Temos então que a norma, afinal e regra geral, serve apenas para acolher o juízo casuístico. E isso já não é novidade.

Não sei de que relações são estes pais, mas certamente não devem ser das melhores – daquelas que, muito discricionariamente, às vezes até dão um jeitinho. São ucranianos, parece, e trabalhadores não residentes – uma classe de gente à parte no ordenamento jurídico de Macau. São gente que tem direito a trabalhar aqui a vida inteira, conquanto para ela haja trabalho, sem nunca poder residir e, ao fim ao cabo, sem nunca ter razões atendíveis de “um ponto de vista humanitário”. São indivíduos sem célula, sem direito a família. É gente que, mais que sem cheque, não tem qualquer tipo de apoio social. E ainda assim é gente que paga mais na saúde, nas escolas, em alguns transportes…

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