Macau: Ou Mun (A boa porta)

Literalmente podemos assumir a tradução do nome de Macau em cantonês (Ou Mun) como sendo a Boa (Ou) Porta (Mun) também conhecido como A Porta da Baía pelas características geográficas de estar no Delta do Rio das Pérolas.

Em rigor, e recuperando o seu sentido etimológico, várias são as explicações que vamos encontrando na literatura existente para esta expressão, de entre elas citamos a que está divulgada pela Direcção dos Serviços de Turismo de Macau:

Etimologia: Significado de Ou Mun  

…Antes da colonização portuguesa ocorrida no início do século XVI, Macau era conhecida como Hou Keng (“Ostra Espelho”) ou Keng Hoi (“Mar de Espelho”). O seu nome chinês (Ou Mun), que, à letra, significa “Porta da Baía”, parece ter origem no facto de a península de Macau ser habitada, antes da chegada dos portugueses, por várias povoações de pescadores e alguns camponeses chineses vindos das províncias de Fujian e Cantão…

(In: Síntese histórica de Macau na Direcção dos Serviços de Turismo de Macau)

Em síntese, Macau foi sempre uma Boa Porta quer no acolhimento de quem chega, quer para fins comerciais, quer para ligações multiculturais e porque não também para afirmar as estratégias que a Republica Popular da China vai consolidando.

É precisamente no contexto desta óptica de reflexão sobre as dinâmicas que Macau vai tecendo no período da pós-transição, que me surgiu a seguinte observação: Em menos de 20 anos Macau passa de porta de entrada de Portugal, Europa e Ocidente para a China para ser a Porta de Saída da ligação da China ao mundo Ocidental e não só.

Ora, tendo em conta as linhas gerais agora divulgadas por Pequim do plano para a Grande Baía (Cantão-Macau-Hong Kong) decorre daí que cabe a Macau o papel de ser o elo de ligação da China ao Mundo, promovendo o diálogo entre culturas entre outras referências.

Não faz muito tempo, pelo menos até 1999, Portugal fazia questão de incorporar no seu discurso oficial a relevância de Macau como porta de entrada para a Asia e em particular para a China, ou seja, assumia a particularidade de Macau ser o ponto estratégico da entrada para o mercado chinês, elevando a sua importância para o Ocidente na generalidade.

Passados estes anos do período da pós-transição assistimos à inversão do conceito (ou melhor dizendo da metáfora) onde Macau/RAEM passa então a ser uma Porta de Saída de uma estratégia que a vai aglutinando e absorvendo como elemento preponderante da ligação da China ao resto do mundo envolvendo-a nos grandes projectos e planos da Grande Baía, Pan-Delta e mais recentemente na Faixa e Rota que se vai desenhando.

Provavelmente, após algum período de desinteresse aparente no domínio do Fórum Macau, por vezes até apontada com referências negativas sobre o seu papel apenas decorativo de discursos sem efeito prático, iremos porventura assistir nos próximos tempos à sua revitalização.

Só que, também aqui, em termos já diferenciados da sua ideia original, onde o conceito de plataforma das relações da China com os países de língua portuguesa assumem um deslocamento para integrar a ampliação da rota marítima das cidades e países a integrar na Faixa e Rota deslocando-se para o sul do Oceano Indico, com Timor e Moçambique como referências e, rasgando para o Oceano Atlântico com os pontos de conexão (Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné Equatorial, Guiné Bissau, Cabo Verde e o vasto Brasil) que o Fórum Macau poderá proporcionar.

Se tal acontecer, o Fórum Macau deixará de assumir lentamente o seu desígnio inicial de ser apenas uma plataforma das relações entre a China e os Países lusófonos para passar a incorporar também o papel de ser uma Porta de Saída da ligação da China com o resto do mundo, consolidada por via dos países de expressão lusófona. Será este o destino de Macau? Quem sabe, o futuro nos dirá, com a certeza porém de que em qualquer das situações Macau será sempre uma Boa (Ou) Porta (Mun).

   

Carlos Piteira

Investigador do Instituto do Oriente

Docente do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas / Universidade de Lisboa

 

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QUE DIFERENÇA…!

O contraste entre a realidade em que vivemos neste mundo que nos circunda e as palavras de Jesus Cristo é tão vívido que até ficamos a duvidar do seu sentido para a Humanidade actual, os homens e mulheres contemporâneos. É constante ouvir falar-se em ‘guerra comercial’, ‘guerra económica’, ‘guerra política’, ‘guerra militar’ ‘guerra religiosa’ entre povos e nações. Cristo, em contra-partida, apresenta-se de forma radical, proclamando, exactamente, o contrário: «Amai os vossos inimigos».

Os conselhos que podemos ler no Evangelho deste Sétimo Domingo do Ano Litúrgico gozam das características próprias daquele conhecimento sapiencial dos Mestres das Grandes Religiões e dos Sábios e Filósofos que influenciaram a História das Civilizações.

Todos eles procuraram levar as pessoas a experimentarem maior ‘liberdade interior’, num primeiro momento. Na verdade, acompanhados sempre por um ‘Caminho’ ou por uma ‘Pedagogia’ próprios esforçaram-se por formar homens e mulheres, capazes de serem livres, antes de tudo o mais, perante as Coisas e as Pessoas. Depois e em consequência, abrir igualmente os seus Corações a algo superior, mais espiritual, e permitindo que uns até se abrissem à questão do transcendente e muitos outros se  deixássem tocar pelo surpreendente mundo do ‘mistério do divino’.

No seu ensinamento, são propostos comportamentos que vão não só muito para além das primeiras inclinações,  instintivas e estruturais, do ser humano mas também contra maneiras de sentir e critérios de vida da Sociedade onde estamos inseridos e fortemente dependentes. Os ‘Grandes Mestres’ desafiam infalivelmente o Sistema. O Senhor Jesus não é excepção à regra.

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É inegável que constitui uma constante do discurso ou da pregação de Cristo a chamada inequívoca à necessidade da ‘liberdade interior’ e esta conseguida pela ‘conversão’ do Coração. No entanto, tal, como aconselham os ‘Mestres’, Ele, que é o Mestre Divino, desafia os seus e todos nós à mudança radical de certas atitudes e comportamentos naquilo que diz respeito às nossas relações com os Outros. As sentenças de Jesus, procurando trazer-nos a um nível de maior perfeição,  convidam-nos, em primeiro lugar, a examinar a profundidade da nossa vivência do Primeiro Mandamento do Amor, e concretamente, do Amor aos Outros: «Amai os vossos inimigos,  fazei bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos injuriam… a quem te bater numa face, apresenta-lhe também a  outra».

Em segundo lugar, questiona também a nossa relação  com ss Coisas, os bens materiais, o dinheiro. Quem se afirma Discípulo de Cristo tem de ser homem ou mulher de coracão, ao mesmo tempo, desapegado e generoso. Eis o que diz o Mestre: «Quem te levar a capa, deixa-lhe também a túnica. Dá a todo aquele que te pedir,  e ao que levar o que é teu não o reclames…».

A crítica também é fina e perspiscaz. Que valor  e que mérito têm as nossas obras quando estamos à espera de recompensa, elogio ou carinho? Onde está o dom gratuito, sinal de amor verdadeiro? Assim exclama o Senhor Jesus na sua exigência: «Se amais aqueles que vos amam… Se emprestais aqueles de quem esperais receber, que agradecimento mereceis?».

Todo este caminho de ‘liberdade interior’ é para nos levar, por fim, ao abandono profundo de nós mesmos e da nossa vida nas mãos de Deus, Criador e Pai, que continuamente vela por nós como seus filhos bem amados. E, de novo, no texto evangélico o Senhor Jesus o confirma: «Sereis filhos do Altíssimo… Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso… Não julgueis…Não condeneis… Perdoai… Dai generosamente…».                                   

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Que diferença… !

Ver o que se passa por esse mundo fora. Tanta violência, terrorismo e guerra. O Senhor Jesus suplica «Amai-vos uns aos outros».  Mas este Domingo vai mais longe, declarando com verdade, amor e firmeza: «Amai os vossos inimigos,  fazei bem e emprestai sem nada esperar em troca».

Ele que, por todos nós, morreu, numa Cruz, por Amor…

Luís Sequeira

Sacerdote e antigo Superior da Companhia de Jesus em Macau

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Europa: erguer-se contra o anti-semitismo

É um facto extraordinário que tenha sido necessário esperar por Jacques Chirac para que fosse reconhecida a responsabilidade do Estado francês na deportação de judeus. Simone Veil, L’Observateur, 27 de Outubro de 2007

 

Terça-Feira em Paris, na Praça da República, juntaram-se 20 000 pessoas numa concentração para repudiar a subida do clima anti-judaico em França. A concentração foi repetida em outras cidades francesas. Presentes estiveram dois antigos presidentes da República, Nicolas Sarkozy e François Hollande, o primeiro-ministro Édouard Philippe e vários dos seus ministros, o presidente do Les Republicans (LR), Laurent Wauquiez, membros dos 22 partidos que subscreveram a convocatória. Compareceram representantes dos cultos, da sociedade civil, de organizações fraternais, o Grande Rabi Haïm Korsia, líder da comunidade judaica, Thibault Verny, bispo auxiliar de Paris e Olivier Dumas, secretário-geral da conferência episcopal francesa.   

Tratou-se de um facto político de enorme significado. Entre os discursos e apelos à luta contra o ódio anti-judaico, registo as palavras de Olivier Faure, líder do Partido Socialista, destacando o carácter nacional da manifestação, “uma concentração organizada por representantes da nação e não apenas pelas organizações judaicas”. Também as de Sammy Ghozlan, presidente do Comité Nacional de Vigilância contra o Anti-semitismo, alertando para a intervenção de partidos de esquerda no apoio às organizações palestinianas, designadamente as que incitam um ódio visceral contra Israel. A França unir-se-ia uma vez mais para repudiar o extremismo fundado já não em razões pseudo-religiosas mas rácicas.

Esta mobilização nacional resultaria do incidente de alguns dias antes com  o filósofo francês Alain Finkielkraut, que tinha sido insultado num ajuntamento de Coletes Amarelos, por um manifestante, em termos virulentos: “tu és um  porco miserável, tu vais morrer. Vais para o inferno. Deus vai-te punir, o povo vai-te castigar”. O incidente ficaria gravado em vídeo, rapidamente disseminado no YouTube.

O caso que envolveu Alain Finkielkraut, um conhecido intelectual de origem judaica, junta-se a outros actos do mesmo timbre: a profanação de oitenta sepulturas no cemitério judaico de Quatzenheim na Alsácia, marcadas com suásticas azuis e amarelas; o assassinato em Março de 2018 de Mireille Knoll, uma senhora idosa, sobrevivente do Holocausto, às mãos de dois assaltantes de Yacine Mihoub e Alex Carrimbacus, um deles de conhecida origem árabe. Houve quem tentasse desvalorizar o incidente considerando-o um facto isolado. Mas essa é uma mentira bondosa para disfarçar culpas próprias, designadamente à esquerda e à direita.

O problema não é, ainda por cima, exclusivamente francês. O governo alemão revelou em relatório, no início de 2019, que 1646 crimes, associados ao ódio racista, Judenhass, tiveram lugar durante o ano de 2018, o que corresponde a um crescimento de 10% em relação a 2017. Revelando uma tendência semelhante, o governo britânico revelaria a ocorrência de 1652 crimes anti-semitas, correspondendo a mais 16% em relação no ano anterior. Jeremy Corbyn, o contestado líder dos trabalhistas ingleses, não desdenharia alinhar com a toada racista, comparando o governo israelita aos nazis. Corbyn tem uma história de associação a movimentos radicais de extrema-esquerda que muitas vezes expressam uma mensagem política cheia de referências anti-semitas.      

O crescendo deste ódio anti-judaico tem ainda razões históricas. Desde logo na tradicional colagem da extrema-direita francesa à postura anti-semita do regime de Vichy e ao seu colaboracionismo na prisão e deportação de milhares de judeus franceses, e enviados pela polícia para campos de concentração na Alemanha e na Polónia. Dos 340 000 judeus que viviam em França em 1940, mais de 75 000 seriam deportados para tais campos. Desses, 72 500 morreram ali. A líder do Rassemblement National (RN), que tem procurado levar a extrema-direita francesa mais para o centro, não participou na concentração em Paris mas enviou uma mensagem de simpatia a Alain Finkielkraut, na forma de carta aberta, onde denunciava o “islamo-fascismo” por detrás do atentado.  

Uma segunda explicação pode ser apontada ao ódio da extrema-esquerda aos judeus pelo seu sucesso e importância social, não só em França mas também no plano internacional. Uma esquerda que considera que a luta política, a luta de classes, se deverá focar na eliminação das classes possidentes, designadamente os judeus pelo papel que têm no mundo bancário e nas sociedades financeiras. Esta mensagem surge habitualmente ligada à denúncia do capitalismo americano como uma invenção judaica corrompida pela nebulosa dos interesses judaicos e o complexo industrial-militar como uma corporação maligna guiada pelo lobby judaico nos Estados Unidos.

Naturalmente, à medida que a crise e os fluxos migratórios retiram contextualização às populações do interior e põem em causa a estabilidade das classes trabalhadoras é fácil desviar as atenções para campanhas destinadas a descortinar bodes expiatórios e designá-los como culpados de todos os males. A ligação deste ambiente de ódio e repulsa rácica aos polgroms nazis, às políticas soviéticas anti-judaicas sob Estaline, à expulsão de populações judaicas de países árabes e muçulmanos surge intuitiva e o receio que estas anomalias se repitam, sob formas ajustadas, cresce.

Frei Bento Domingues num artigo recente, na sua coluna de domingo no jornal Público, chamava a atenção para o sentimento de que “os outros estão a mais” e lembrava a narrativa bíblica e a simbólica morte de Abel pela inveja do irmão Caim. Daí resultaria a fixação na existência de duas humanidades, a nossa e a dos outros, em que uns são de Deus e outros são do Diabo. A propósito, lembrava que o conto fratricida do Génesis não perdeu actualidade e que as desigualdades entre os ricos e os pobres continuam a acentuar-se exacerbando este sentimento de competição, de rivalidade, (e ódio, acrescento eu) perante o outro que se desconhece porque é diferente ou ora de forma diferente.

Naturalmente a questão não se pode colocar exclusivamente do ponto de vista da difusão da mensagem cristã mas sobretudo das políticas do Estado. Cabendo ao Estado assegurar o “consenso social de sobreposição” entre as várias concepções de Bem e de Vida existentes numa sociedade aberta não pode deixar de extrair consequências quando crimes de ódio se multiplicam. Não pode olhar para o lado, enfiar a cabeça na areia, porque é neutro. Tem de criar leis que penalizem e criminalizem actuações racistas, anti-semitas e xenófobas pois elas põem em causa a nossa harmonia colectiva e o nosso modelo europeu e humanista. Aí o Estado tem de ser implacável e conferir ao sistema de justiça os instrumentos necessários para punir estes crimes e os seus autores.      

 

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Macau e os desafios do séc. XXI

Créditos: Chan In Hio

 

Ancorada na sua posição geográfica, a Região Administrativa e Especial de Macau tem desenvolvido desde sempre uma vocação insular muito ligada ao intercâmbio entre povos. Sabemos que essa vocação se acentuou com a chegada dos portugueses no séc. XVI, tendo evoluído ao longo do tempo até se sedimentar como uma característica da sua existência e parte do seu quotidiano.

Macau tornou-se um lugar de partida e de chegada espartilhado entre dois portos: de um lado o Porto Interior e a ligação à China Continental, do outro lado o Porto Exterior e a ligação ao mundo. Com essas baias a cidade desenvolveu-se ao longo do tempo integrando no seu vocabulário arquitectónico e urbano a mescla cultural e social que a caraterizam. Sempre foi assim, dir-se-á, e assim vai continuar como bem sabemos hoje e como o vivenciamos todos os dias.

A composição social não se estratificou com a chegada dos Portugueses, que com eles trouxeram uma amálgama de gente de outras terras e proveniências: veio gente de África, da Índia, de Cabo Verde, do Brasil, Malásia e tantos outros países e continentes, num contexto cultural que se exteriorizou na vivência urbana e citadina. Numa sã convivência, em conjunto com os locais, a cidade foi-se construindo com estas influências multiculturais que a foram enriquecendo ao longo do tempo.

Mais tarde, já depois da transferência de soberania para a RPC, a abertura do jogo ao investimento internacional trouxe novas gentes e novos paradigmas. A cidade reduzida foi-se “alargando” à custa de novos aterros para receber e alojar os novos desafios. Construções estereotipadas a lembrar sociedades de consumo começaram a preencher e a ocupar o horizonte entre ilhas, até se tornarem uma presença dominadora. Novos habitantes acorreram, vindos de outras paragens, com costumes diferenciados que do alojamento ao mercado corrente rapidamente se evidenciaram e tomaram conta da pacatez até então existente.

A cidade cresceu, internacionalizou-se mais ainda, e continuou a acolher quem chegava. Da China continental passaram a vir grupos, hordas de turistas de passagem a animar ruas, casinos e centros comerciais, e gente que veio para ficar. O ritmo de crescimento populacional tornou-se impressionante e os novos aterros procuram dar respostas a este crescendo, porque o progresso assim o dita e o sinal tem de ser sempre ascendente!

Entretanto a cidade vai sofrendo porque o ritmo de chegada é superior à capacidade que a urbe vai revelando em acolher quem cá chega, tudo isto em acumulação com os desenvolvimentos que se perspectivam no curto e no médio prazo.

No curto prazo cabe destacar a elaboração do Plano Director para a cidade, entregue à equipa de Hong Kong Ove Arup em Março de 2018 e que, segundo os termos contratuais, terá de ser completado até Março de 2019. Obrigatoriamente esse plano deverá incluir o Plano de Salvaguarda e Gestão do Centro Histórico que, por esta altura, se encontra em apreciação na sede da UNESCO, aguardando-se a todo o momento a sua divulgação.

Ainda no curto prazo é relevante abordar as questões que, ao nível regional, se prendem com a criação da Grande Baia do Delta do Rio das Pérolas, que engloba 11 cidades, entre as quais se incluem as duas regiões administrativas especiais – Macau e Hong Kong – em conjunto com 9 cidades chinesas. Em breve será publicado o plano da Grande Baía cujo impacto será decisivo na vivência citadina.

Finalmente, ao nível internacional e a médio prazo, lembro a proposta de integração de Macau nas Cidades da Rota da Seda Marítima, parte integrante do projecto OBOR – One Belt One Road – que irá reunir as cidades que no passado fizeram parte desta importante rota comercial e cultural, onde Macau deve figurar pela histórica importância estratégica que revela.

Muito trabalho de estudo e integração está a ser feito neste momento, sem que a população esteja a par do que vai acontecer.

Estes são os grandes desafios que a cidade enfrenta no início do século XXI. E a questão que se coloca é: saberá Macau reagir?

 

 

Maria José de Freitas

Arquitecta | ICOMOS-SBHSG

Doutoranda DPIP3-UC.PT

mjf@aetecnet.com

 

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Ser banana em Macau

Se os porcos se alimentassem exclusivamente de bananas, esta seria a melhor ocasião para engordar um porquinho de ouro e oferecê-lo à população de Macau, desejando-lhe os mais auspiciosos dias no Ano Novo que começa amanhã.

Sendo “Boi Cabeça, Cavalo Cara” um título que necessita de descodificação para o leitor de língua portuguesa, este Ser banana em Macau também requer explicações.

Os chineses aculturados ou PunDongFan (半唐番) são referidos, no Ocidente, como bananas porque são amarelos por fora e brancos por dentro. Eu seria uma banana muito podre, de cor acastanhada, por ter nascido em África. Mas o facto de estar em Macau e beber das águas chinesas, meu ser tem sido aclarado. Além disso, esta terra situada na foz do Rio das Pérolas deu-me uma riqueza de valor incalculável – uma família constituída por mulher e dois filhos – e oportunidades únicas nos últimos anos.

Tudo começou com “Um V vale mais que dois Vs?”, um debate na Fundação Rui Cunha, a comemorar o Bicentário do Nascimento de Verdi e Wagner, dois compositores de obras tão diversas cuja contemporaneidade se duvida. O interesse suscitado, no público presente, levou à produção de “Conversas Ilustradas com Música” que tomaram, nos anos seguintes, nos Ciclos denominados  “Literatura na Ópera”, “O Oriente na Ópera”, “Os sete pecados mortais na Ópera”, “As cidades e a Ópera”. Este ano de 2019, a Fundação Rui Cunha fará comigo e os meus amigos melómanos, um novo ciclo chamado “A voz na Ópera”. Convido todos os interessados neste género musical a participarem e,  os curiosos ou ávidos de saber a estarem presentes. Aprende-se, divertindo. Confúcio, sem se divertir – pois é inimaginável pensar que este velho de fisionomia séria, filósofo e político chinês, alguma vez tivesse brincado na sua vida errante e difícil – dizia que “Estudar é perseguir o inantingível, com medo de o deixar fugir”. Para que as Conversas, principalmente as palavras que são como as cerejas não esquivassem e caíssem no esquecimento, debrucei-me sobre as produções líricas do Festival Internacional de Música de Macau e nasceram os três tomos do guia romanceado destinado àqueles que queiram conhecer as óperas do FIMM, alguns locais e gentes de Macau e a importância do Festival no panorama cultural do sudeste asiático.

Daqui, a reflectir sobre a sociedade de Macau e da China, foi um passo. Frutos dessa introspecção surgiram à luz do dia, livros como “Uma ponte para a China”, “Espíritos” e “Boi Cabeça, Cavalo Cara” que pretendem divulgar a cultura chinesa ao mundo lusófono e quiçá anglo-saxónico – haja quem os traduza. Oxalá!

Perguntam-me: Como tem tempo para isso tudo? Não é médico? Sorrio: A Criatividade anda de braço dado com a Medicina. Quando crio algo de novo por via de um saber antigo ponho o conhecimento ao serviço do leitor, quando trato um doente ponho o meu saber científico ao seu serviço. É o caminho que percorro com o estudo. Não há, portanto, desvio de rumo.

Na minha actividade profissional que exige dedicação e sacrifícios, a canseira é tonificada pelo prazer da criação, a escrita e a música são escapes. Há um provérbio chinês que diz: 三歲定八十Aos três anos define-se os oitenta. Sendo banana e consequentemente algo retratadário, esta máxima só começou a fazer sentido em mim quando o meu professor de Geografia advogava: No dia a dia, muda de actividade quando estiveres cansado – uma teoria que se tem revelado útil no meu viver. E,  na vivência médica, a fadiga resultante do exercício clínico diário é suplantado pelo enriquecimento no diálogo científico com os colegas da associação médica a que pertenço e na colaboração com as outras associações locais do género. Levámos a cabo foruns médicos de discussão científica e troca de experiências com especialistas de Hong Kong, Taiwan e China Continental que foram de grande utilidade pessoal e pública: A toxicodependência, Os medicamentos e os seus benefícios e malefícios, o flagelo da alimentação farta com o consequente fígado gordo, entre outros. Não é fácil ser-se médico estrangeiro em Macau. Além do enorme volume de doentes que não está habituado a atender, ele precisa de não esquecer a qualidade dos serviços que presta. Aqui reside um ponto de clivagem entre o Ocidente e o Oriente que é imperativo ponderar: A medicina tradicional chinesa é dirigida aos sintomas e a ocidental é etiológica. Termos e conceitos desiguais determinam diferentes abordagens. Não se estranhe pois, que a atitude médica perante o doente seja distinta entre os profissionais de saúde com diversa formação académica, nem se admire que a expectativa de quem procura auxílio seja estranha ao médico ocidental.

A diversidade constituiu a riqueza de uma sociedade, do mesmo modo a banana, a laranja, o kiwi, a maça, o pêssego, a melancia e outros frutos enriquecem, em cor e sabor, uma salada de frutas. Isto para não mencionar no rubro fruto-dragão, a pitaia de polpa branca ou vermelha salpicada de sementes pretas, tão querida da população chinesa ou ainda o familiar amarelo, de menor porte que faz corar ainda mais os seus congéneres pelo valor alimentar – nutritivo, vitamínico-mineral e comercial. Macau é esta salada em gente, de carne e osso e alma, autóctona e imigrante que reflecte bem o exotismo do Oriente. Cada pessoa à sua maneira, contribui para o enriquecer económico deste minúsculo território. Uma faceta muito chinesa que tem na prosperidade, um objectivo primordial da vida, não fosse o Kong Hei Fat Choi as primeiras palavras a serem pronunciadas no primeiro desejo do primeiro dia de cada ano.

Macau cresceu na exponencial proporção da mãe pátria. Contrariamente ao que eu imaginava pois pensava que os macaenses – 澳門土生 estivessem tristes por terem perdido a sua terra, a sua história e as suas raízes com o retorno à China em 1999, um deles,  surpreendeu-me quando  disse: “Macau evoluíu como nunca aconteceu nos perto de 500 anos de domínio português. Nunca passou por minha cabeça que pudesse ter um futuro tão risonho e visse a minha terra tão desenvolvida. Graças a Deus, a China tomou conta de nós”. Como sou banana!

Eis a prova comprovada de que a China como País habituado à diversidade, soube enriquecer e engrandecer de forma não egoísta favorecendo os seus filhos menores. A China é uma grande potência mundial, um orgulho para os seus cidadãos, um exemplo a seguir por muitos países e fonte de inveja para outros tantos. Dera a Europa ter conseguido unir-se para ser um único País, nem que fosse monetariamente …

Saibamos viver em Harmonia e alargar os nossos horizontes. O futuro está a leste.

Gong Xi Fa Cai, população de Macau.

Votos de Prosperidade e Saúde para todos. Que todos os vossos desejos se satisfaçam.

Shee Va

Médico gastrenterologista, escritor

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