Um destino demasiado distante: A Política da Evasão de Hong Kong para Taiwan

A detenção de 12 pessoas de Hong Kong numa lancha pela guarda costeira da China continental a 26 de Agosto deixou em evidência não só as dificuldades de alguns activistas de Hong Kong em conseguirem a fuga da Região Administrativa Especial de Hong Kong (RAEHK) para Taiwan, mas também a resposta cautelosa do governo de Taiwan.

A polícia marítima chinesa continental revelou que às 9 horas da manhã de 23 de Agosto, um dos seus navios patrulha interceptou uma lancha que transportava 12 pessoas de Hong Kong, incluindo Andy Li e outros onze jovens que tentaram ser levados ilegalmente para longe da RAEHK. Os meios de comunicação de Hong Kong noticiaram que os 12 jovens, incluindo onze homens e uma mulher, eram activistas que tinham sido antes detidos pela polícia pelo seu envolvimento no movimento anti-extradição de 2019. Foram agora detidos pela polícia marítima do continente a 78 quilómetros da ilha de Hong Kong e a 600 quilómetros de Taiwan.

Aparentemente, estes jovens fugiram de Hong Kong para tentarem escapar à implementação da lei de segurança nacional, que foi promulgada pelo Comité Permanente do Congresso Nacional do Povo a 30 de Junho de 2020. Para eles, Taiwan representava um destino “livre” e “democrático”.

Andy Li fora anteriormente acusado de violar a nova lei de segurança nacional e libertado sob fiança. Em Novembro de 2019, de acordo com relatórios de Hong Kong, terá feito lobby junto de alguns políticos estrangeiros para visitarem Hong Kong e observarem a sua evolução política. Dos outros onze jovens detidos, dois eram suspeitos de fabrico de explosivos; quatro eram suspeitos de terem cometido fogo posto; dois ainda eram acusados de motim; e três outros eram acusados de causarem danos corporais. Dos 12 activistas detidos, oito deles não estavam autorizados a sair de Hong Kong. Um deles não compareceu a julgamento em tribunal e sobre si pendia um mandado de captura.

A reacção do Conselho de Assuntos do Interior do governo de Taiwan foi cautelosa. O seu vice-ministro Chiu Chui-cheng observou que, se a população de Hong Kong e Macau quiser a ajuda de Taiwan por motivos políticos, deverá seguir o mecanismo existente ao abrigo da lei que rege as relações com Hong Kong e Macau. Acrescentou que os residentes de Hong Kong deverão seguir os canais legais se desejarem mudar-se para Taiwan.

Numa altura em que o continente tem conduzido frequentemente exercícios militares, e quando o Presidente de Taiwan Tsai Ing-wen disse explicitamente a 27 de Agosto que está preocupado com quaisquer incidentes militares entre Taiwan e Pequim, Taipé não quis antagonizar a liderança chinesa continental apoiando abertamente os dissidentes de Hong Kong que fugiram ou tentaram fugir para Taiwan.

O artigo 18 da Lei que rege as relações com Hong Kong e Macau estabelece que, “se os residentes de Hong Kong ou Macau puderem ter a sua segurança e liberdade ameaçadas urgentemente por razões políticas, poderão receber a ajuda necessária”. Esta estipulação permite algum espaço de manobra ao governo de Taiwan no tratamento dado aos dissidentes políticos de Hong Kong.

A tentativa de fuga falhada dos 12 jovens de Hong Kong deveu-se à intercepção da sua lancha pela polícia marítima do continente, na manhã de 23 de Agosto. Em resultado disso, uma organização de Taiwan que os assistia perdeu o contacto com a mesma lancha às 22 horas na noite de 23 de Agosto.

Segundo consta, havia três rotas marítimas para os activistas de protesto de Hong Kong fugirem para Taiwan. Primeiro, podiam utilizar lanchas rápidas para irem directamente de Sai Kung até Kaohsiung. Em segundo lugar, podiam utilizar lanchas rápidas para se dirigirem a regiões costeiras da China continental, onde mudariam para transporte terrestre a fim de chegarem a Xiamen, em Fujian. De Xiamen, poderiam ser contrabandeados para Kinmen – uma rota que combina rotas marítimas e terrestres, com enormes riscos. Em terceiro lugar, poderiam ir para a ilha de Dongsha em Taiwan, situada a cerca de 300 quilómetros de Hong Kong, e daí ser transferidos para Pingtung, em Taiwan. 

Foi antes noticiado que, em Julho, dois grupos de activistas conseguiram escapar de Hong Kong para Taiwan, um através da rota marítima para Kaohsiung e o outro usando a rota para Pingtung. O primeiro grupo era composto por cerca de uma dezena de activistas, que conseguiram chegar a Kaohsiung. Um outro grupo era composto por cinco activistas, cuja lancha acabou por ficar sem gasolina e foi desviada para Dongsha, onde a administração da guarda costeira de Taiwan os recolheu.

A passagem marítima de Hong Kong para Pingtung foi o caminho escolhido pelo cabeça de cobra (nome dado aos contrabandistas envolvidos em operações de imigração ilegal) que lidava com os 12 manifestantes agora detidos; a sua lancha foi interceptada pela polícia marítima continental, em boa parte devido ao reforço do patrulhamento resultante das relações militares tensas entre a China continental e Taiwan. Talvez os activistas de Hong Kong detidos tenham escolhido um mau momento para fugir de Hong Kong para Taiwan – revelou-se “uma ponte demasiado distante” para eles. Com a promulgação da lei de segurança nacional para Hong Kong, as forças policiais na RAEHK e no continente aumentaram a sua vigilância e as patrulhas navais para evitar que activistas sejam contrabandeados para Taiwan. 

Desde Junho de 2019, pelo menos 200 activistas de Hong Kong refugiaram-se em Taiwan. Alguns deles sentem saudades de Hong Kong. Mas outros estão a adaptar-se gradualmente à vida em Taiwan. E a maioria tem sido assistida por activistas religiosos e de direitos humanos de Taiwan, que são solidários com a sua situação difícil.

Lam Wing-kee, que era proprietário da Livraria Causeway Bay em Hong Kong e que foi “enviado” de Shenzhen para a província de Zhejiang em Outubro de 2015 no âmbito de uma investigação sobre livros politicamente sensíveis publicados pela sua empresa, decidiu migrar para Taiwan em Abril de 2019, antecipando já a introdução da lei de extradição na RAEHK. Reabriu, entretanto, a Livraria Causeway Bay em Taipé. O seu exemplo talvez tenha encorajado alguns jovens dissidentes de Hong Kong a escaparem também para Taiwan.

Advogados envolvidos no caso disseram que os doze jovens agora detidos em Shenzhen serão julgados no continente, onde podem enfrentar penas de prisão por passagem ilegal da fronteira. Se condenados, só serão reenviados para Hong Kong depois de cumprirem as suas penas na China continental. A sua detenção revela os enormes riscos subjacentes à rota marítima de fuga de Hong Kong para Taiwan – uma operação de contrabando ilegal que, de acordo com notícias recentes, pode envolver pagamentos de dezenas de milhares ou mesmo 500 mil ou 1 milhão de dólares de Hong Kong, dados os perigos associados a este tipo de empreendimento.

A resposta cautelosa do governo de Taiwan, liderado pelo Partido Democrático Progressista (DPP), terá porventura ilustrado o seu actual dilema. Recentemente, o ex-Presidente, Ma Ying-jeou, do Kuomintang (KMT) criticou a liderança do DPP não só por não reconhecer o consenso de 1992 entre a República Popular da China (RPC) e a República da China (ROC) sobre Taiwan, mas também por colocar as relações Pequim-Taipé numa atmosfera militarmente tensa. Ma avisou que qualquer ataque militar continental a Taiwan seria provavelmente “o primeiro e o último”. As elites pró-PDPP criticaram as observações de Ma, classificando-as de “antipatrióticas”. 

O súbito ressurgimento de Ma põe em evidências as rivalidades entre facções no seio do KMT, que tem sofrido com o afastamento do antigo presidente da câmara de Kaohsiung, Han Kuo-yu, e com a pesada derrota sofrida pelo seu candidato seguinte, Jane Lee, face ao candidato do DPP, Chen Chi-mai, nas eleições parciais de 15 de Agosto. O mau desempenho eleitoral de Jane Lee é testemunho da fraca liderança do KMT e parece estar a levar a velha guarda a tentar a redenção política do ex-Presidente Ma Ying-jeou.

Hipoteticamente falando, se o KMT estivesse hoje no poder em Taiwan, o seu tratamento dos dissidentes políticos de Hong Kong poderia ter sido bastante diferente das cautelas e da falta de jeito reveladas pelo DPP. O KMT poderia ter feito uso dos dissidentes de Hong Kong como moeda de troca potencialmente valiosa para negociar com o Partido Comunista Chinês (PCC) em quaisquer discussões sobre as futuras relações entre Taipé e Pequim. 

Os decisores políticos da RPC, na sua abordagem dura às questões de Hong Kong, poderão não ter calculado inteiramente que, se o KMT puder um dia voltar ao poder nas eleições presidenciais de Taiwan, provavelmente utilizará a situação dos dissidentes de Hong Kong em Taiwan como moeda de troca para obter algumas concessões do PCC. 

Rejeitando o consenso de 1992 em que tanto o PCC como o KMT reconheceram que existe apenas uma China, embora deixando a definição de uma China para interpretações diferentes de ambos os lados, o DPP é ironicamente prejudicado pela sua oposição tanto ao PCC como à própria RPC. Talvez por isso, a resposta relativamente fraca do DPP à fuga dos activistas de Hong Kong para Taiwan acaba por ser compreensível.

Em suma, desde os protestos de 2019 na RAEHK, a fuga de dissidentes políticos de Hong Kong para Taiwan tornou-se um marco nas relações Hong Kong-Taipé. A resposta do regime do DPP em Taiwan continua aparentemente cautelosa e substancialmente fraca, e a recente fuga falhada dos doze activistas torna claro que Taiwan é hoje um destino demasiado distante para os dissidentes de Hong Kong, ao mesmo tempo que revela as profundas clivagens políticas internas em Taiwan e o crescente antagonismo entre o Partido Comunista chinês e o partido no poder em Taipé. 

 

Sonny Lo Shiu Hing

Autor e Professor de Ciência Política

Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Macau News Agency/MNA.

 

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Mais por contar

Há quem diga, de forma bem filosófica e profunda, que morremos sozinhos. Pois, para os que ainda não se deram conta: é mentira! Nascemos talvez com menos “companhia”. Mas durante toda a nossa vida ficamos cada vez mais longe dessa solidão filosófica. Na maioria das vezes somos até indiferentes aos nossos “companheiros de viagem”, um pouco como o senhorio de um prédio em relação aos seus inquilinos. Esperamos que tudo seja gerido de forma funcional, mas não nos damos ao trabalho de conhecer os ocupantes. Se considerarmos que nós somos o dono do prédio, sendo o prédio o nosso corpo, na verdade os nossos inquilinos são tantos que nem com muito boa vontade os conseguiríamos conhecer a todos. E mais, conhecê-los não nos permitiria nenhum tipo de interação que nos fizesse sentir algum companheirismo.

Para termos uma noção da vida que nos acompanha diariamente, convém percebermos de que tipo de vida estamos realmente a falar – microorganismos. Esses seres de escala reduzida, que também chamamos de micróbios e que normalmente só conseguimos ver com a ajuda de microscópios. A variedade destes nossos vizinhos e inquilinos é tanta que existem nas mais variadas formas (algumas que achamos tão estranhas que nos parecem alienígenas) e tamanhos. E é quando nos começamos a dar conta da enormidade de diferentes formas de vida que nos acompanha, que alguns de nós (nos quais eu me incluo) desenvolvem uma enorme admiração e fascínio por todas essas criaturas que nos acompanham sem que reparemos.

Relativamente a tamanhos, consideramos normalmente que os micróbios não são visíveis a olho nu. No entanto, há excepções. As espécies microbianas Epulopiscium fishelsoni ou Thiomargarita namibiensis são bactérias gigantes, especialmente quando comparadas com todas as outras. Cada célula destas espécies pode ser tão grande quanto o ponto final de uma frase deste jornal.

Mas não se confundam, os microrganismos não são só nossos inquilinos, eles não precisam de nós para existir. Muitos deles são apenas nossos vizinhos, “moram” em locais perto de nós. Outros habitam locais onde nós jamais conseguiríamos viver (temperaturas acima dos 120 °C). Notem que nós não conseguimos sobreviver com temperaturas corporais acima dos 42 °C. Esses, que vivem em condições mais exóticas e extremas (os extremófilos), têm normalmente características que atribuímos aos super-heróis e que achamos que só a Marvel ou a DC tornam reais. Mas, não são só o Hulk ou o Super-Homem que sobrevivem a elevadas fontes de radiação (radiação gama e radiação da kriptonite, respectivamente). A bactéria Deinococcus radiodurans está listada no livro de recordes mundiais do Guiness como sendo a bactéria mais forte e resistente que se conhece; apelidada como bactéria Conan em referência a Conan – o bárbaro, é capaz de sobreviver a elevadas doses de radiação gama (doses mil vezes superiores ao que nós humanos conseguimos suportar e que nem existem naturalmente no nosso planeta) e luz ultravioleta, assim como frio, vácuo e outras condições extremas.

Há sempre bons ocupantes e maus ocupantes, e bons e maus vizinhos. Como qualquer senhorio, às vezes não somos muito atentos e facilitamos a ocupação por maus inquilinos. Outras vezes, azar do destino, eles ocupam os espaços contra a nossa vontade ou sem nos darmos conta disso. A estes, costumamos chamar de patogénicos. São autênticos vilões que provocam doenças ou infeções. Mas não nos afectam só a nós. Eles podem infectar outros animais, plantas, e até outros microorganismos.

Mas dos que nós gostamos mesmos, são dos bons ocupantes. Aqueles simpáticos que contribuem para que tenhamos uma vida mais agradável e alegre. Não pensem que conseguiríamos ter iogurtes, vinho, cerveja, pão ou queijo (entre muitos outros produtos) sem estes seres maravilhosos. Sabiam que alguns até são capazes de produzir electricidade? E, quantos deles são responsáveis por produzir substâncias que nos ajudam a combater doenças? Muitos antibióticos (contra bactérias), antivirais (contra vírus), antimicóticos (contra fungos) e outros, são produzidos por eles.

Mas, quem são estes microorganismos? Eles podem ser simples ou complexos, podem ser apenas uma célula, ou serem formados por várias células. Estes nossos vizinhos e inquilinos podem ser: vírus, bactérias, fungos (bolores e leveduras), protozoários (onde se incluem os causadores da malária ou da doença de chagas), e microalgas (como a spirulina, muito usada como suplemento alimentar). Dentro de cada um destes grupos, existem inúmeras espécies. E estamos só a falar do que já conhecemos, já estudámos e já descrevemos. Porém, estamos longe de conhecer todas as espécies microbianas que existem no nosso planeta. Ainda temos muito por explorar.

E quanto aos nomes… o que não falta são cientistas que se especializam a trabalhar com determinadas espécies de microorganismos mas que depois não os sabem chamar pelos seus nomes científicos. Ou melhor, na maioria das vezes não sabem pronunciar esses nomes da forma mais correcta. Eu mesma, quando conheço novas pessoas aqui em Macau, acontece-me muitas vezes ter dificuldade em pronunciar alguns nomes. Mas, com algum convívio vou melhorando a minha pronúncia (ou assim acho eu). Os nomes dos microorganismos, que são sempre em latim, conseguem ser impronunciáveis. Têm sempre dois nomes, o primeiro refere-se ao género de que fazem parte, equiparável ao nosso nome de família, e o segundo que é relativo à espécie. Os nomes de espécie podem ser escolhidos com base no nome da pessoa que os descobriu, outras vezes na localização de onde foram descobertos. E quanto a esta, tanto pode ser de um pedaço de gelo de uma zona recôndita na Antártida como de uma maçã podre. Por exemplo, a bactéria Bacillus macauensis, foi isolada de amostras de água em Macau, e a bactéria Fangia hongkongensis foi descoberta no mar ao largo de Hong Kong e baptizada em honra do Professor Xinfang Fang (microbiólogo fundador do Instituto de Microbiologia da Academia de Ciência Chinesa). Também podem ter um nome associado à cor que formam quando se agrupam em colónias. Por exemplo: Aspergillus niger, um fungo que forma colónias negras; ou Streptomyces albus, uma bactéria que forma colónias brancas. Estes nomes farão mais sentido para quem souber latim e reconhecer que niger significa negro e albus significa branco. Mas existem regras definidas para “baptizar” os microorganismos e os nomes escolhidos têm que ser aprovados por um comité antes de serem oficialmente usados. Está longe de ser simples como dar nome a um cão ou um gato.

Mas ainda há muito mais por contar.

 

Marta Filipa Simões

Cientista

 

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Marte: Entre o Imaginário e a Realidade

As últimas semanas de Julho trouxeram-nos um frenesim pouco habitual de notícias sobre o espaço, com o sucesso do lançamento de missões de três agências espaciais que vão agora a caminho de Marte. Também alvo de destaque na imprensa local, Macau tem um papel a desempenhar nesta nova corrida espacial, estando investigadores da Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau (MUST) directamente ligados à actual missão chinesa, e esperando-se o seu envolvimento no planeamento de futuras missões e na eventual análise de dados e amostras na busca de sinais de vida.

Convém realçar que o interesse da Humanidade por este planeta não é recente; Marte sempre foi uma fonte de fascínio. Parte deste fenómeno poderá ser atribuído à sua invulgar cor avermelhada. Esta sua característica levou, na era clássica, a que o planeta fosse baptizado com o nome do deus da Guerra da mitologia Greco-Romana. A consolidação de Marte como terreno fértil para a nossa imaginação ocorreu bastante mais tarde. No final do século XIX, o italiano Giovanni Schiaparelli observou e desenhou a superfície de Marte, identificando várias linhas na sua superfície, que designou de canali. No seguimento deste investigador, o americano Percival Lowell publicou várias obras e gravuras sobre Marte em que, provavelmente inspirado pelas grandes obras de engenharia da altura como os canais do Suez e do Panamá, defendia que estas estruturas na superfície do planeta eram artificiais. Segundo a sua convicção, os canais teriam funções de irrigação e seriam essenciais para uma civilização marciana.

A expectativa de encontrar uma civilização tecnologicamente avançada em Marte teve um impacto marcante e duradouro no nosso imaginário colectivo, e foi responsável por inspirar várias obras de referência da cultura popular. Entre vários clássicos da ficção científica e da literatura encontramos obras de HG Wells (A guerra dos mundos, 1897), Edgar Rice Burroughs (Série Barsoom- John Carter de Marte, 1912), Ray Bradbury (Crónicas marcianas, 1950), Robert Heinlein (Um estranho numa terra estranha, 1961), ou Andy Weir (O Marciano, 2011), entre muitíssimas outras. Várias destas obras foram adaptadas por Hollywood, que retorna a este tema com alguma regularidade. Quem não se lembra de sucessos como “Total Recall-Desafio Total”, com Arnold Schwarznegger, ou de “Marte ataca” de Tim Burton? Ainda dentro das artes, nem mesmo o mundo da música escapa a esta febre marciana. Sem dúvida que o caso de maior sucesso continuado será o fantástico “Life on Mars” do inesquecível David Bowie.

No entanto, as primeiras missões trouxeram-nos imagens bem diferentes daquilo que esperávamos: nem “homenzinhos verdes”, nem canais. Marte era um planeta aparentemente árido e sem sinais de vida aparentes… Apesar do sucesso científico das missões Mariner e Viking da NASA (entre os anos 60 e 70), o aparente defraudar de expectativas resultou num afastamento do interesse do público e num arrefecimento da euforia e do ímpeto de exploração espacial que se vivia então. O eventual colapso da União Soviética em 1991 traduziu-se numa redução clara da relevância política e geoestratégica do sector e resultou num desinvestimento adicional.

Mas Marte nunca esteve ausente dos nossos radares por muito tempo. A análise microscópica de um meteorito marciano em 1996, e a descoberta de aparentes micro-fósseis que poderiam ser um vestígio de possíveis micróbios marcianos, reanimou a discussão sobre a procura de vida fora da Terra. Estes resultados não são a prova definitiva da presença de micróbios em Marte mas, apesar da controvérsia que a sua análise gerou, centraram a discussão na busca de vestígios microbiológicos e na necessidade de explorar Marte.

A presente vaga de renovado interesse por Marte deve-se em muito à possível existência de vida (passada ou presente) neste planeta. Sabemos agora que o planeta vermelho teve uma grande quantidade de água líquida no seu passado, e teria condições bem mais hospitaleiras para a vida do que agora. Mesmo actualmente, as condições em Marte parecem não ser tão inóspitas quanto se pensava originalmente. Há indícios da existência de água líquida no subsolo e alguns locais em que poderá chegar à superfície de modo sazonal. Esta água será bastante salgada, o que contribuirá para que se mantenha no estado líquido mesmo quando exposta a temperaturas negativas. A existência de água líquida é vital para a existência de Vida como a conhecemos, renovando assim a esperança de que Marte possa suportar vida. 

Outro contributo essencial nesta discussão, foi a evolução da nossa visão sobre os limites da vida e sobre a resiliência dos seres vivos, que ocorreu nas últimas décadas. Avanços na área da microbiologia e o uso de novas ferramentas de biologia molecular demostraram que várias espécies de micróbios têm uma capacidade excepcional para sobreviver e prosperar em diferentes tipos de condições extremas. Vários desses ambientes no nosso planeta têm condições que se aproximam às que encontramos em Marte e têm apesar disso uma enorme biodiversidade microbiológica. Se a vida é possível neste tipo de locais na Terra, por que não em Marte? 

A história do nosso fascínio por Marte entra agora num novo capítulo e está longe de terminar.
André Antunes – Cientista

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Garantir a Segurança Alimentar na China

Se a segurança nacional inclui o fornecimento adequado de alimentos à população, a China recentemente tem feito grandes esforços para garantir a segurança alimentar.

Em 23 de Julho, a agência de notícias Xinhua publicou as principais declarações do presidente Xi relacionadas com o tema. 

Em primeiro lugar, Xi disse que a China deve controlar o seu próprio abastecimento de alimentos, estabilizar a agricultura e garantir a segurança da produção de cereais e de bens alimentares não tão essenciais. 

Em segundo lugar, o presidente Xi sublinhou que a segurança alimentar “é uma base importante da segurança nacional” e que “precisamos inovar na produção de alimentos, optimizar a tecnologia de produção, implementar políticas de apoio, estimular a dedicação dos agricultores ao seu trabalho e melhorar os rendimentos resultantes da actividade agrícola.

Em terceiro lugar, as regiões do nordeste da China desempenham um papel estratégico na salvaguarda não apenas da segurança alimentar, mas também da defesa nacional, ecologia, energia e indústria. Consequentemente, a garantia da segurança alimentar é a base de todas as outras esferas da segurança nacional. 

Em quarto lugar, o presidente Xi defende que a produção de cereais pode ser apoiada por um melhor sistema de conservação de água e pela melhoria contínua da ciência e da tecnologia, daí resultando a necessidade da China controlar as inundações de forma mais eficaz e eficiente. 

Em quinto lugar, Xi sublinhou que a segurança alimentar é de grande importância por influenciar o desenvolvimento nacional da China e o bem-estar das pessoas. Como tal, é “imperativo estudar e melhorar as políticas de segurança alimentar, assumir o desenvolvimento da produção como uma tarefa fundamental e aproveitar o potencial da produção de cereais combinando a terra e a tecnologia”.

Os comentários do presidente Xi desencadearam respostas e acções imediatas das autoridades agrícolas a vários níveis do aparelho governativo. Em 31 de Julho, Han Changfu, ministro da Agricultura e ex-governador da província de Jilin, reuniu-se com outros responsáveis agrícolas e membros afectos ao Partido Comunista Chinês para estudar os comentários do presidente Xi. Han disse aos quadros do Partido que os três vectores do mundo rural  –agricultura, aldeias e agricultores – teriam que trabalhar juntos no controlo das inundações para salovaguardar as colheitas do Outono. Han apelou aos seus colegas para realizarem um trabalho de prevenção contra o surto de peste suína e para garantir o fornecimento estável de carne de porco.

Em 7 de Agosto, Han reuniu-se com responsáveis agrícolas de dez províncias ao longo do rio Yangtze através de uma videoconferência, sublinhando a necessidade de prender, proibir e ajudar os pescadores que pescavam ilegalmente no rio Yangtze. Muitos pescadores pareciam enfrentar dificuldades depois do surto de Covid-19 e as enchentes do rio Yangtze, correndo grandes riscos para pescar ilegalmente. Han revelou que 110.000 barcos pesqueiros e 230.000 pescadores estão envolvidos na pesca ilegal, mas todos os governos provinciais envolvidos devem fornecer subsídios e pacotes de assistência a esses pescadores, incentivando-os a constituir cooperativas e a adoptarem uma nova forma de criação piscícola através da aquicultura.

Han escreveu um comentário importante no Diário do Povo em 7 de Agosto, referindo-se novamente aos comentários do presidente Xi Jinping na sua visita a Jilin, em 23 de Julho, de que o Partido atribuía grande importância à segurança alimentar. Durante sua terceira visita a Jilin – a primeira em Julho de 2015 e a segunda em Setembro de 2018 – Xi inspecionou uma zona de demonstração da produção de alimentos verdes no condado de Lishu e ficou a conhecer as medidas tomadas para proteger o solo negro, a melhoria da qualidade do solo chernozem, e o crescimento do milho. A prática Lishu de utilizar a palha do milho em terras agrícolas para fins de protecção pode aumentar a matéria orgânica do solo e prevenir a erosão do solo pelo vento e pela água. O presidente Xi elogiou esse modelo e defendeu a sua promoção.

De acordo com Han, todos os quadros do Partido nos departamentos de agricultura aos mais diversos níveis do governo devem estudar o “espírito” das declarações do presidente Xi e implementar as medidas estabelecidas pelo Partido e pelo Conselho de Estado, especialmente os objetivos de garantir a realização da sociedade “xiaokang” (afluente), “manter e aumentar a capacidade de protecção do abastecimento de alimentos” e “tomar nas próprias mãos o poder de pugnar pela segurança alimentar”. As frases-chave usadas por Han mostram que a China deseja alcançar a auto-suficiência no abastecimento de alimentos, embora também se tenha referido ao comentário do presidente Xi de que “as importações devem ser feitas a um nível apropriado”.

Han acrescentou que o presidente Xi dá grande importância ao conceito “as nossas mãos sustentam as tigelas de arroz do povo chinês e as nossas tigelas devem ser enchidas com alimentos chineses”, para que “a estratégia de segurança alimentar do país possa permanecer firme, internamente, garantir capacidade produtiva, importar adequadamente, e utilizar a tecnologia como suporte. ” 

Claramente, os comentários do presidente Xi em Jilin deram um novo ímpeto à mobilização dos departamentos agrícolas e de funcionários em todos os níveis para se atingir o objectivo último da segurança alimentar na China.

Han revelou que a produção de alimentos da China alcançou 132,7 milhões de cestos com todo o tipo de cereais. Mesmo depois do início da Covid-19, a China consegue ainda garantir 28,5 milhões de catties de alimentos durante as colheitas do Verão de 2020. Esses rendimentos saídos da terra tornam-se um elemento “estabilizador”, agindo como “uma pedra que é depositada num armazém”.

Ainda assim, no início de Agosto surgiram notícias de que, segundo o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, a China aumentou as suas aquisições de milho ao fechar um negócio de 1,9 milhões de toneladas. Embora alguns jornais tivessem especulado que a China estaria já a enfrentar uma “crise alimentar”, talvez tenham negligenciado um movimento calculado das autoridades chinesas para importar mais cereais dos Estados Unidos por anteciparem uma guerra comercial e tecnológica mais séria entre os dois países.

Outras notícias revelam que agricultores chineses vêm acumulando reservas de cereais de 20% a 30% da produção, um fenómeno que mostra que, embora a crise alimentar não esteja iminente no Continente chinês, os riscos no sector do abastecimento alimentar estão em crescendo. No entanto, dada a tendência e a tradição da maioria dos chineses de armazenarem alimentos como forma de prevenção para tempos de crise, incluindo a Covid-19 ainda em curso e as inundações em muitas áreas ao longo do rio Yangtze, esse armazenamento de mais cereais do que no passado acaba por ser normal. Na verdade, muitos agricultores e comerciantes chineses não têm certeza se a crise do Covid-19 não continuará a prolongar-se ao longo de toda a segunda metade de 2020.

No seu comentário, Han admitiu que enchentes e pragas de gafanhotos minaram a produção agrícola da China. Apelou, por isso, para a necessidade de todos os funcionários agrícolas atingirem a meta declarada do Presidente Xi, ou seja, garantir bons resultados na colheita do Outono de modo a que o total da produção chegue aos 130 mil milhões de cestos. Ainda não se sabe se essa meta será atingida, mas a determinação das autoridades agrícolas chinesas é manifesta.

Han também reconheceu que os gafanhotos migratórios minaram os campos de milho e as terras agrícolas da China. Enquanto os Spodoptera frugiperda constituem uma ameaça para o milho, as cigarrinhas e os rolos de folha do arroz minaram os campos de arroz. Como tal, fortalecer as barreiras para prevenir e controlar os ataques desses gafanhotos é e continuará a ser necessário.

Além disso, o preço do milho na China atingiu o seu valor máximo nos últimos cinco anos, fazendo com que muitos agricultores optassem pelo trigo como opção para alimentar os animais. Essa flexibilidade dos agricultores chineses mostra que estão sintonizados com o Estado chinês, tentando garantir a estabilidade das rações animais.

Em suma, garantir a segurança alimentar tornou-se, sem dúvida, uma das principais prioridades e uma pedra angular dos esforços da China para alcançar várias dimensões da segurança nacional. Os comentários do presidente Xi em Jilin e as acções de acompanhamento dos responsáveis agrícolas estão claramente a estabelecer as bases para o 14º Plano Quinquenal da China, a aprovar já em Outubro. Apesar das inundações em muitas regiões da China, o estado chinês permanece relativamente forte na sua determinação e nas ações para manter a estabilidade e a adequação do abastecimento de alimentos em todo o país, durante o difícil ano de 2020.

 

Sonny Lo Shiu Hing

Autor e Professor de Ciência Política

Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Macau News Agency/MNA.

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Respostas estratégicas da China aos desafios internos e externos

As respostas estratégicas da China aos actuais desafios internos e externos são caracterizadas pela busca persistente de soluções socioeconómicas e uma política externa assertiva, juntamente com uma maior preparação militar.

A 30 de Julho, o Comité Permanente do Politburo (PSC) reuniu-se e decidiu que o quinto plenário da 19.ª reunião do Comité Central se iria realizar em Outubro. O quinto plenário terá a importante tarefa de formular o 14.º plano quinquenal para o desenvolvimento económico e social da China e as metas até 2035. Presidido pelo Presidente Xi, o PSC estabeleceu a meta de alcançar o objectivo de uma sociedade ‘xiaokang’ (uma sociedade moderadamente rica) no caminho da China para “estabelecer uma nação moderna e socialista em direcção aos 100 anos de governação”.

O PSC avaliou que a China está no estágio das “oportunidades estratégicas”, pois encontra enormes desafios internos e externos. Devido às circunstâncias externas incertas, a China persiste no seu caminho de “paz e desenvolvimento”. Internamente, de acordo com o PSC, a China alcançou um “estágio de desenvolvimento de alta qualidade” que, no entanto, é marcado pelo “desequilíbrio e insuficiência no desenvolvimento”. Assim, o socialismo chinês teria de ser libertado, aumentando a “consciência das oportunidades” e a “consciência de riscos”. Durante crises, a China tem de “transformá-las em oportunidades e continuar a progredir com ousadia”. As palavras-chave do desenvolvimento da China incluem a “confiança nas pessoas”, “eficiência”, “justiça”, “sustentabilidade” e “segurança”. Todos esses elementos-chave, provavelmente, serão referidos no 14.º plano quinquenal do quinto plenário.

O PSC destacou que, em face dos desafios da Covid-19, a segurança das pessoas e a saúde pública tornaram-se a principal prioridade da governação. O centro do Partido tem de demonstrar “liderança firme” e “tenacidade económica”. O PSC admitiu que as circunstâncias económicas da China ainda são “complexas, sérias, instáveis e incertas”. Portanto, internamente, a China precisa de criar a sua própria “grande circulação”, gerando procura interna suficiente enquanto interage com a “circulação” internacional. O desenvolvimento socioeconómico da China precisará de adoptar um mecanismo de coordenação a longo prazo, confiar mais em novas tecnologias e inovações e implementar projectos e regulamentos a nível macro para evitar riscos e alcançar um crescimento equitativo a longo-prazo. A palavra-chave, nomeadamente a “grande circulação”, denota que a China está a estimular o consumo interno num período difícil de encontrar os impactos combinados do Covid-19, inundações em diferentes locais e um ambiente externo hostil.

Na segunda metade de 2020, de acordo com o PSC, a China vai estabilizar seis áreas principais: manutenção de novas ideias para o desenvolvimento; coordenação do trabalho preventivo da Covid-19; reforma da cadeia de abastecimento; persistência no processo de aprofundamento de reformas e abertura; aumento da procura e consumo interno; e proteção e estímulo à vitalidade dos mercados. Em relação à macroeconomia, a China está a assegurar a “adequação e flexibilização” da sua política monetária, ajustando a sua direcção, mantendo “um crescimento razoável entre a oferta de moeda e a acumulação de capital social”. Devido ao considerável declínio do capital social, o Governo precisa de garantir que o capital recém-acumulado seja canalizado para a indústria de transformação e para as pequenas e médias empresas. Usando a vantagem macroeconómica, Pequim está a tentar alcançar os efeitos combinados da promoção da política fiscal, a estabilização do emprego, a promoção do desenvolvimento industrial e a retenção do crescimento regional contínuo.

Finalmente, o PSC decidiu que a China deve avançar com a urbanização, usando as novas cidades como ‘clusters’ para estimular o desenvolvimento das suas cadeias de abastecimento e aumentar a sua competitividade geral. O desenvolvimento agrícola deve ser mantido, enquanto as empresas estatais continuam a ser reformadas. O mercado imobiliário tem de ser regulamentado e as actividades especulativas devem ser controladas para garantir a “protecção dos meios de subsistência das pessoas”. O mercado de terras deve ser desenvolvido de maneira estável; o emprego dos jovens deve ser garantido; trabalhadores e camponeses devem ser encorajados a encontrar empregos perto das suas cidades; vilas e regiões pobres têm de ser protegidas contra o Covid-19. Por último, mas não menos importante, o controlo de inundações deve ser fortalecido e melhor gerido.

Claramente, o objectivo geral da reunião do PSC é manter um Estado chinês forte em face dos desafios socioeconómicos, de saúde pública e ambientais que existem actualmente.

A 28 de Julho, o Presidente Xi Jinping encontrou-se com um grupo de partidos democráticos fora do Partido Comunista Chinês (PCC) e enfatizou que eles tinham de enfrentar os desafios e as dificuldades internas de uma maneira “abrangente, dialética e de desenvolvimento”. Mais importante, observou que “nenhum outro país, nem ninguém pode parar o processo de grande renascimento da China”.

Implicitamente, apontou para países estrangeiros que recentemente tomaram como alvo as estratégias de desenvolvimento do PCC e da China, especialmente os EUA e o seu Secretário de Estado, Mike Pompeo. Xi estava acompanhado pelo primeiro-ministro, Li Keqiang, e outros membros do PSC, como Wang Yang, Wang Huining e Han Zheng.

A 30 de Julho, o Presidente Xi participou numa reunião de estudo sobre a consolidação da defesa e modernização militar. Um investigador militar, Chen Rongdi, foi convidado a falar. Na resposta, o Presidente Xi destacou a importância do “treino e preparação militar abrangente”, pois “a China enfrenta um aumento de incertezas e instabilidade nas suas circunstâncias de segurança”. Além disso, “a nova revolução militar mundial está a ocorrer rapidamente, proporcionando-nos raras oportunidades e sérios desafios”. Como tal, o exército da China tem de “melhorar o seu sentimento de missão de emergência, trabalhando arduamente para realizar a modernização através de um caminho de desenvolvimento”. Isto significa que a reforma militar tem de continuar; técnicas de base necessitam de novos avanços; e de tecnologia de defesa, capacidade, gestão, talentos e recursos devem ser melhorados.

Xi pediu que todo o partido e todo o país “permanecessem juntos no jogo de xadrez, impulsionando o processo de defesa e modernização militar”. O Presidente Xi também acrescentou que os familiares dos militares têm de ser bem cuidados nos seus empregos e casas, enquanto os apoios aos militares aposentados devem ser protegidos. Finalmente, sublinhou que um forte exército chinês “deve ouvir a liderança do partido”, “vencer batalhas e guerras” e “administrar-se estritamente de acordo com a lei e a disciplina”.

A 31 de Julho, o Presidente Xi presidiu à cerimónia de abertura do Sistema de Navegação de Satélite Beidou, em Pequim. Os satélites do sistema são usados para fins civis e militares. De 1983 a 2020, os 55 satélites Beidou da China fizeram enormes contribuições para o avanço social, económico, científico e militar do país. A partir de 2020, passaram a existir 30 satélites chineses avançados em três tipos de órbitas: 24 na órbita de média altitude, três na órbita de satélite geosincronizada inclinada e três na órbita geoestacionária.

A julgar pelas notícias da China e pelos comentários feitos pelo Presidente Xi, as respostas estratégicas da China para os desafios internos e externos são caracterizadas por dois traços:

Primeiro, internamente, as alavancas macroeconómicas devem ser totalmente utilizadas para alcançar o crescimento económico, desenvolvimento regional, emprego das pessoas e recuperação e reprodução de vários sectores. A procura interna e o consumo são cada vez mais enfatizados para que a China possa confiar nos seus próprios mercados domésticos, em vez de depender fortemente do comércio internacional, que foi profundamente afectado pelas consequências da Covid-19 e pelas sanções de países estrangeiros, e ainda pela dependência do Continente nas suas cadeias de abastecimento. Isso não significa que a China volte à auto-suficiência da era maoísta, mas os líderes chineses sabem que levará algum tempo para que o comércio internacional e a cadeia de abastecimento recuperem gradualmente.

De facto, o Presidente Xi, a 28 de Julho, proferiu um discurso na quinta reunião multilateral anual do Asian Infrastructure Investment Bank (AIIB), dizendo que os membros devem continuar a promover o desenvolvimento da comunidade com “um futuro compartilhado para a humanidade”. O AIIB, que foi proposto por Xi no final de 2013, foi lançado em Janeiro de 2016 e agora tem 102 membros. No entanto, isso tem sido visto como um desafio chinês ao domínio dos EUA na economia global. Durante as contínuas tensões sino-americanas, a insistência da China no multilateralismo espera enviar uma mensagem aos países do mundo de que, nas palavras da reunião do PSC de 30 de Julho, ainda está a atribuir grande importância à “paz e desenvolvimento”.

Externamente, a China mantém relações cada vez mais tensas com vários países, incluindo EUA e países europeus sobre os desenvolvimentos de Hong Kong; Índia sobre a disputa de fronteira; e EUA, Austrália e Filipinas sobre as instalações militares chinesas nos recifes e ilhas no Mar do Sul. Nessas circunstâncias, o Presidente Xi mantém a política do nacionalismo chinês assertivo de desenvolvimento pacífico, o que significa que tem poucas escolhas, como presidente da Comissão Central Militar, a não ser fazer pressão pela modernização e preparação militar.

O caso de como a China lida com a disputa de fronteira com a Índia é um bom exemplo. Talvez abstendo-se de provocar ainda mais a Índia ao não anunciar o número exacto de mortes dos soldados chineses em Ladakh, onde pelo menos 20 soldados indianos foram mortos em meados de Junho, a China vem adoptando uma estratégia em duas frentes, sendo mais discreta na disputa de fronteira e negociando em silêncio com os militares indianos uma retirada simultânea de tropas de ambos os lados das áreas disputadas.

Nas últimas semanas, os diplomatas chineses pareceram atenuar levemente a sua retórica beligerante, diluindo o seu estilo de “guerreiro lobo”, enquanto o ministro das Relações Exteriores Wang Yi vem elogiando os pensamentos do presidente Xi Jinping como princípio norteador da política externa chinesa.

No meio de desafios internos e de hostilidade externa, a liderança chinesa demonstrou não apenas a sua resiliência em lidar com dificuldades internas através de uma busca constante de soluções socioeconómicas e de saúde pública, mas também a sua determinação em melhorar a preparação militar, mantendo o multilateralismo e ajustando o tom da sua diplomacia assertivamente nacionalista. O quinto plenário que aí vem fornecerá um indicador-chave de como a liderança chinesa avança os seus planos abrangentes e abordagens resistentes para lidar com as dificuldades internas e os desafios externos.

 

Sonny Lo Shiu Hing 

Autor e Professor de Ciência Política

Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Macau News Agency/MNA.

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ALGUMAS IDEIAS, ALINHADAS NA PRIMEIRA PESSOA, SOBRE FOTOGRAFIA 

 

  1. Há muitas formas de olhar a realidade que nos rodeia. E cada uma delas corresponde a uma determinada percepção do que nessa realidade pode ser isolado e valorado. Na fotografia o modo de olhar e de detalhar o real é o que pode fazer a diferença, até de forma mais significativa do que a sofisticação dos meios técnicos usados. 

Num mundo vocacionado para a valorização do “eu” e do “eu com qualquer coisa à volta”, tudo serve para registar a presença de cada um nos quotidianos de todos os dias.

Os telemóveis tornaram-se instrumentos competentes e muito qualificados para fazer esses registos, democratizando o acesso à autoria e promovendo o reconhecimento. Por outro lado, a automatização dos procedimentos técnicos permitiu que essa democratização fosse ainda mais severa, permitindo a banalização autoral. Todos somos agora artistas, no sentido de que todos passamos a ser qualificados para expor algum trabalho com capacidade de suscitar atenção. 

Por seu lado, as redes sociais fizeram o pleno tornando todas e cada uma das esquinas do bairro no centro do mundo e permitindo que a fama passasse a estar ao alcance de um clique.

Tudo, agora, passou a ser mais fácil. Muito mais fácil! Passamos a ter apenas portas e janelas abertas. Tudo passou a ser caminho simples para a potencial devassa.

 

  1. Vão longe, muito longe já, os tempos em que uma máquina fotográfica era um objecto exclusivo e exigente. 

Nesses tempos, a máquina fotográfica era um instrumento único que permitia, através do empenho de uns poucos, que muitos tivessem uma maior proximidade ao que se passava no mundo distante. Perdem-se na memória da história trabalhos únicos de grandes nomes da fotografia, como (nomeando indiscriminadamente) Cartier Bresson, Sebastião Salgado, Robert Capa, Josef Koudelka, Marc Riboud, Eugene Smith, Robert Adams, Anddré Kertész e um número ainda significativo de uns quantos outros.

 

  1. Há várias maneiras de reflectir sobre a prática fotográfica. Uma delas, que me ocupa e interessa, é pensar na fotografia como uma forma de intervenção artística.

Um parêntesis para dizer que fora desse âmbito está o fotojornalismo, que é uma categoria à parte e, como tal, se deverá manter.

Os jornalistas, por dever de ofício e compromisso ético para com a cidadania e a sociedade, estão obrigados a respeitar o que vêm e o que a realidade lhes transmite, o que exclui desde logo qualquer forma de adulteração ou reinvenção dos factos que testemunham. Não há verdades únicas, porque todas estão sujeitas à avaliação e análise de quem enfrenta um determinado acontecimento; e os jornalistas não são autómatos geridos por um algoritmo de neutralidade. Até porque não há neutralidade ou imparcialidade em nada nesta vida; tudo é resultado e está condicionado pela nossa formação, pela nossa cultura e educação, pela nossa sensibilidade e emotividade. 

Os fotojornalistas, agindo nessa qualidade, estão obviamente nesse patamar rígido, estando-lhes vedado qualquer forma de manipulação das imagens que captam. Ou seja, se o céu é azul é-lhes proibido torná-lo vermelho. Se junto ao personagem principal e central da imagem está um objecto fora do sítio, assim terá de continuar no registo final. E por aí adiante.

No jornalismo a fotografia, tal como a escrita, é a projecção verdadeira do que está perante o olhar. E o (foto)jornalista está obrigado, ao editar a imagem obtida, a não a manipular ou adulterar. 

 

  1. Todos os outros que usam a fotografia como expressão pessoal, mais ou menos profissionais, mais ou menos amadores, têm a possibilidade de usar a máquina fotográfica com a mesma liberdade e criatividade que um pintor tem ao enfrentar uma tela. 

O (foto)artista começa por enquadrar o que tem pela frente através de uma primeira e mais elementar opção: o tipo de lente que escolhe para colocar na máquina, mais aberta ou mais focada num determinado ponto. A partir daí há um mundo de possibilidades, em especial no momento em que começa a editar as imagens feitas. 

Ao (foto)artista todas as manipulações são possíveis, começando logo pela opção decisiva de usar cores ou preto e branco, mas continuando pelo enquadramento da imagem, pela saturação da paleta cromática, pela luz ou ausência dela. Enfim, pelo detalhe. A esse, sim, é permitido mentir sobre a realidade.

 

  1. Por outro lado, a prática fotográfica tem de ser um exercício permanente de persistência e resiliência. 

É preciso saber sofrer com os falhanços, com os resultados diferentes daqueles que se projectam mas que ficam longe dos objectivos, com a falta de reconhecimento. É preciso que a fotografia, ainda que não seja assumida como uma profissão (no sentido de ela ser a fonte principal de subsistência para a vida), seja querida como uma actividade regular para se cultivar o gosto e partilhar as emoções. 

Os artistas vivem nesse limbo entre o quererem produzir objectos semanticamente significativos, e não conseguirem muitas vezes ter o reconhecimento desse seu esforço e objectivos. Mas, mais uma vez, é preciso resistir, resistir sempre, e perceber que o erro é uma forma de aprendizagem, e que o não reconhecimento imediato não é significado de falta de qualidade. Muitas vezes é, tão só, consequência da falta de sintonia entre o momento e a oportunidade. 

 

  1. Quando olho para a minha prática como fotógrafo (talvez devesse dizer, para a minha prática artística) tenho sempre muito presente o que genericamente acabo de referir.

Não sou de selfies, nem apologista da partilha através das redes sociais de imagens referentes à intimidade ou a circunstâncias pessoais. Há uma significativa diferença entre tentar ser-se conhecido e querer ser-se reconhecido. Tenho para mim que só investe em querer ser conhecido quem não tem trabalho de qualidade ou argumentos que lhe permitam ser reconhecido.

Não sou fotojornalista, se bem que entenda que há um caminho necessário e a fazer, que é o de construir a capacidade de contar histórias. Não sou fotógrafo profissional porque não é a fotografia que me sustenta na vida, antes tenho uma profissão que me ocupa uma parte significativa do tempo útil. A fotografia é, para mim, um exercício de libertação em relação a uma certa servidão profissional e uma forma de afirmação de independência em relação a um sistema que nem sempre prima pela justiça ou equidade. A intermediação de uma máquina fotográfica (como, noutros casos, de um pincel, de uma caneta, o que quer que seja….) entre o “eu” e a “realidade” é um acto purificador e libertador. 

É por isso que já não tenho retorno em relação ao propósito que assumi há uns anos, poucos, e cada vez mais persistente, de tentar registar em fotografia os detalhes de um gigantesco carrocel que gira à minha volta, com movimentos e percursos sempre diferentes e carregando personagens que se reinventam na vida. É uma história em permanente renovação, cujos detalhes não se repetem. E cada instante que passa pode significar uma oportunidade perdida. Uma grande imagem desperdiçada. 

Eu estou “lá”. Quero estar “lá”. Ambiciono a que esse “lá” seja, até, o mais longe possível, na distância, nas intimidades das pessoas que encontro, nas emoções que elas possam revelar. Quero fazer parte desse “lá”, mas sem me mostrar e sem contrapartidas, apenas contribuindo para revelar as pessoas, as emoções e os locais a que tenho acesso.

A fotografia é, para mim, pois, um exercício de liberdade. Tão livre como o olhar que, quando vê, não tem outro limite que não seja o da natureza ou o da condição humana. Um caminhar, normalmente difícil e árduo mas não menos mágico, onde todos os feitiços são possíveis e todos os aprendizes são bem-vindos.

 

João Miguel Barros

http://www.jmb.photo

 

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