Olhar ao Redor

[FELIZES SEREIS…]

Luís Sequeira

Neste próximo Domingo, o primeiro de Novembro, celebra-se na Liturgia a Festividade de Todos os Santos. O Evangelho é, no entanto, um daqueles que mais desafia a inteligência e a sensibilidade humanas, particularmente, se permanecemos ligados apenas à realidade mais imediata – física e terrena – do nosso ser, do nosso existir e sentir. O tão conhecido Evangelho das Bem-aventuranças, torna-se, de facto, num primero momento, paradoxal e, quase diria, incompreensível, quando proclama: «Felizes os que têm fome, os que choram, os que são perseguidos». Pode levar-nos mesmo a exclamar da mesma maneira de São Paulo, perante as reacções dos primeiros cristãos ao anúncio da « sabedoria da Cruz, a sabedoria de Cristo Crucificado». Ele reconhecia que tudo mais parecia transformar-se em «escândalo para os judeus e loucura para os gentios».

O contraste é abismal. O texto evangélico, por um lado, apresenta-nos situações de fragilidade extrema e radical, direi, como que as misérias humanas. Por outro, promete a experiência sublime de Deus. « Felizes sereis…»

Tem isto algum sentido!?

É exactamente aí, na aparente contradição das duas realidades que se encontra a chave de leitura das palavras de Jesus Cristo. Ele, o Senhor, num primeiro grande momento, assume não só, pela Sua Incarnação, no seu próprio corpo, a nossa natureza humana, mas também, pela Sua Paixão e Morte, carrega todas as nossas dores, fraquezas e faltas, consequência do Mal que entrou na história da humanidade. Ele, o Senhor, num segundo e extraordinário momento, pela Sua Ressurreição, vence total e implacavelmente a Morte e o Mal, restaurando a humanidade à sua beleza primitiva, comunidade de seres criados «à imagem e semelhança de Deus,» de verdadeiros «filhos de Deus.»

Ele experimentou, assim , na sua própria carne, a angústia daqueles que são «os pobres, os que choram, os que têm fome e sede de justiça, os que sofrem perseguição, os que são insultados, perseguidos, caluniados» e a todos promete a libertação. Nenhuma situação, por mais terrível que seja, é capaz de escapar ao poder da Sua graça libertadora ou de impedir quem quer que seja de chegar à felicidade ou, finalmente de impossibilitar qualquer ser humano de entrar, de novo, na intimidade da vida divina.

Continuando a meditação do texto das Bem-aventuranças, com São Mateus, deparamo-nos também com a descrição de uma série de atitudes íntimas que nos levam a tocar as camadas mais profundas do nosso ser e a experimentar aí, consequentemente, a aspiração a novos horizontes de liberdade e perfeição. O Espírito das Bem-aventuranças, portanto, não nos leva apenas a ultrapassar as situações humanas e sociais de carência, de violência, de perseguição. Ele convida-nos também e acima de tudo a prestar atenção às atitudes íntimas, no segredo do nosso coração, onde ninguém consegue ver, apenas Deus. Pede-nos para sermos mais refinados, espiritualmente falando, com maior sentindo de transcendência. Ser como « os pobres em espírito» desprendidos, livres de apegos desordenados e obsessivos. Ser como « os humildes» sem andar à busca de fama e glória, nem querer obstinadamente ser o primeiro, ser o maior. Ser como «os misericordiosos» e não ter sede do poder e desejar compulsivamente dominar os outros. Ser como « os puros de coração» de coração livre, transparente, sem esquemas, maquinações ou chantagens e, por fim, ser como «os pacíficos, que promovem a paz,» e não andar, continuamente, a aproveitar-se das situações e dos outros, sempre quesilento e a criar a divisão.

O Senhor Jesus que se apresenta como Caminho, Verdade e Vida, ao proclamar « As Bem-aventuranças», promete frutos, já neste mundo e afirma ainda que nos espera um outro cuja existência está «para além da nossa imaginação»,«que nem ouvidos ouviram, nem olhos viram». É a Felicidade Eterna!

Deste modo se expressa o Mestre, quanto à realidade da nossa existência neste mundo que é o nosso: «Os humildes possuirão a terra. Os que choram, serão consolados. Os que têm fome e sede de justiça, serão saciados. Os que são misericordiosos, alcançarão misericórdia. Os puros de coração, verão a Deus. Os pacíficos, os que promovem a paz, serão chamados filhos de Deus».

Quanto ao mundo futuro, à eternidade que nos espera, Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, revela-nos que: « Os pobres em espírito, deles é o Reino dos Céus. Os que sofrem perseguição por amor da justiça, deles é o Reino dos Céus. Quando vos insultarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós. Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos Céus a vossa recompensa.»

Não é facil de compreender este crirério de vida: ser feliz pela via da fragilidade, do desprendimento e do serviço humilde aos outros. Ele desafia, ouso dizer, tudo quanto temos aprendido ou fomos educados. O próprio sistema de valores da nossa sociedade actual que – tão agressiva e constantemente nos é transmido pelos meios de comunicação – apregoa exactamente o contrário, como a riqueza, o poder, o prazer, a força e o meramente imediato e terreno, sem visão transcendental, espiritual. Em suma, sem abertura ao divino.

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Swing

[Poeira das Estrelas]

Filinto Elísio

I Enquanto, aqui e agora, música

  1. Nada justifica colocar em relatividade o feito hediondo de Adolf Hitler. Fazê-lo é de si um ato nazista. Para além de lesa Humanidade.
  1. Outra coisa deplorável tem sido a reedição da áurea estalinista. A absoluta barbárie comunista tem um saldo negativo que não fica a dever ao fascismo.
  1. Aprende-se que o terror não é exclusivo da esquerda ou da direita, do religioso ou do secular, do Norte ou do Sul, do Leste ou do Oeste. Tem a ver com o processo histórico inquinado e capturado por atitudes e comportamentos de baixa estirpe humana.
  1. Será que todo o sistema político gera sempre, por algum determinismo, a estabilidade e a governabilidade? Ou será tudo biodegradável e finito? Qual o ranço e o residual de risco nos aparatos desmontáveis e remontáveis?
  1. Haverá uma hora – chamemo-la vigésima quinta -, tempestade anunciada e companhia desfeita, em que não se pode retocar a construção by the book. Em verdade, todos aguardam Godot. Uns na estação, outros nas encruzilhadas. A tal panaceia que não será para todos os males, nem algo que se pareça.

II Canção para o Meu Pai

  1. Falávamos sobre o ‘primeiro homem’ a pisar a lua. E que a música tocada no Apolo 11, logo alunado, fora “Georgia On My Mind”, na voz de Ray Charles. Nha Gina, que trabalhava connosco como doméstica, recusava, olhando para o luar, que os americanos haviam finalmente lá chegado. Era discussão pegada em casa da Dona Mindoca e eu, entre imaginativo e polémico, vaticinava que, se calhar para o Apolo 12, seria com a música “Song for My Father”, de Horace Silver. Hoje, muitas águas sob a ponte da minha vida, longe da infância e das caudalosas conversas com o meu pai, olho para a lua (e em banho de luar), canção e escanção que, existencialmente, me amanham. In the groove
  1. Não se poderá negar que uma criança morta, de borco, na areia da praia nos permita dormir o sono dos justos. Nem recusar que está tudo bem pelo Reino da Dinamarca se os fanáticos religiosos decapitam pessoas, os polícias racistas atiram pelas costas contra jovens negros nos guetos, as autoridades não escutam os apelos sobre os Direitos Humanos e os raids aéreos na Síria que arrasam tudo o que mexe. Tão pouco pode-se ficar indiferente ao capitalismo de casino que, globalizando, deixa mais de metade do mundo na mais franciscana miséria. Que não normalizemos a sinecura e a barbárie. Haja esperança, venha o futuro. Inch Allah

III As metáforas 

  1. Revejo do Professor e Amigo Manuel Maria Carrilho os dois volumes do “Pensar o Mundo”, obra de referência sobre a mathesis, a nossa essência e existência. Em verdade, releio nas entrelinhas a coesão sequencial da filosofia contemporânea.
  1. A princípio, pensei fosse notícia enganosa. Afinal, é o que mais há. Robert Mugabe, Presidente do Zimbabwe, acaba de ganhar o Prémio Confúcio, diz o texto, à espécie de bula de calmante, por ter injetado uma “energia renovada” na harmonia global.
  1. Todavia, não falo dos térmitas e dos cupins que, no cogito do copo meio cheio ou meio vazio, coroem as liberdades e os Direitos Humanos. De repente, no telejornal, vejo um comentador monomaníaco e um apresentador neófito. Rio-me de quem sai e bate a porta, murmurando coisas estapafúrdias. Segundo Johann Goethe, “Todas as coisas são metáforas”…
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QUE EU VEJA…

[Olhar ao Redor]

Luís Sequeira

É dramática a situação de Bartimeu, o cego apresentado no Evangelho do próximo Domingo, dia 25 de Outubro, o Trigésimo do Ano Litúrgico. Na sua grande aflição, grita, com insistência, a pedir ajuda: « Jesus,tem piedade de mim.» Mas, muitos dos que estavam ao lado repreendiam-no para que se calasse. Ao perceber que Jesus estava disposto a encontrá-lo, ele atirou com a capa da vergonha, deu um salto e foi ter com o Senhor e, cheio de confiança, pediu-lhe : « Mestre, que eu veja.»

Sentir o incómodo daquele que grita, daquele que chora, daquele que nos toca de mãos sujas e que vem atrás de nós, sucede vezes sem conta. De igual modo, experimentar o desconforto ou mesmo a repugnância pela presença do pobre, do necessitado, do que não tem nada, do ferido ou do moribundo … é uma situação bastante bem mais comum entre nós do que aquilo que queremos admitir. Não é por acaso que até o Mestre, numa outra circunstância, chama a atenção para o facto. Aquela parábola do Bom Samaritano que nos dão a conhecer o escriba e o sacerdote que se afastam do homem assaltado pelos ladrões, escondidos entre os trilhos da montanha e que o deixaram meio morto, na berma da estrada, é um exemplo elucidadativo dessa atitude. Como é frequente, na nossa sociedade actual, encontrar esse cruel «fazer que não vê».

«Mestre, que eu veja» é a resposta, vigorosa e decidida, do cego de Jericó. Mas esta deverá ser, muito certamente, também a nossa própria súplica. Enquanto membros da comunidade humana universal e chamados a ser responsáveis pela gerência correcta da natureza e do cosmos precisamos, primeiramente, de saber «ver» com objectividade o que se passa ao redor de cada um de nós como pessoas, comunidades, países ou nações. Na verdade, há que «ver», provavelmente, com outros olhos o que se passa à nossa volta.

É salutar constatar que cresce a consciência, entre mulheres e homens do nosso tempo, de que nos estamos a tornar cada vez mais egocêntricos, para não dizer, egoístas nas atitudes mais básicas da nossa existência. A necessidade compulsiva do consumo é flagrante: comer, beber, vestir à moda, gozar, comprar um novo telemóvel ou uma aparelhagem electrónica. A liberdade interior – acompanhada de simplicidade de vida e frugalidade tornam-se – cada vez mais, uma exigência prioritária do nosso existir neste mundo

Não esquecer: o clamor do ventre da Mãe Terra continua a ser dilacerante. A nossa sociedade actual prossegue, farisaicamente, nesse seu cruel «fazer que não vê»!

Num segundo momento, o texto do Evangelho dominical parece querer levar-nos para mais além do simples ser capaz de «ver». Temos necessidade, agora, de mulheres e homens de «visão». Mulheres e homens «de olhar penetrante» à maneira dos profetas do Antigo Testamento. Pessoas como aqueles que, na história da humanidade, foram instrumentos de transformação. Aqueles que com suas vidas e pensamento conseguiram abrir a humanidade a novos horizontes de entendimento do que é ‘ser homem, ser mulher’ e ‘ser homem, ser mulher neste mundo’, criado por Deus.

Aqui podemos incluir todos aqueles grandes pensadores e filósofos, políticos, mestres e santos que encontramos em todas as civilizações, culturas e religiões. Estando nós na China não poderemos nós mencionar Confúcio e Lao Tze ? Num contexto mais ocidental, não podemos esquecer a pleiade de pensadores e filósofos greco-latinos, no princípio da formação da Europa: São Bento, São Bernardo e Santa Catarina de Sena na construção da unidade e da consciência da Europa. Santo Inácio de Loiola, S.Francisco Xavier e Teresa de Ávila trazem uma espiritualidade e uma dinâmica de acção próprias para os Descobrimentos. No século XIX, Dom Bosco e Teresa de Lisieux enfrentam a modernidade e dão resposta tanto a questões sociais como espirituais. Martin Luther King e Thomas Merton desafiam radicalmente a América. Gandhi, o homem da Liberdade, da Paz e da Mística abre a India ao mundo. Finalmente, João XXIII e João Paulo II fazem chegar à Igreja uma nova ‘Primavera.’

Mas o texto de São Marcos pode fazer-nos chegar ainda mais longe, a propósito do «ver», especialmente quando combinado com uma das « Bem-aventuranças » do Evangelho de S. Mateus, quando Jesus Cristo proclama: «Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus.»

O homem tem a capacidade de «ver» as coisas, as pessoas e os acontecimentos da vida «em Deus» ou «como Deus». O homem, a criatura humana, está aberta ao divino como o divino inunda e pode transformar substancialmente, o humano.

Mas, a transparência ou a pureza interior é absolutamente fundamental e necessária. Direi mesmo: é a única via capaz de nos dispor a «ver a Deus.»

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Uma moral desmoralizada

[Visto do Tibre]

Aurelio Porfiri

O Sínodo continuou, durante a última semana, a discutir temas que a todos dizem respeito, de uma ou de outra forma. Importa dizer que o frenesim mediático (dinamizado por revelações e escândalos imprevistos) deu uma valiosa ajuda no que toca à amplificação do impacto do Sínodo junto dos jornais e de plataformas mediáticas de natureza variada. O povo – mesmo aquele que se diz fiel e praticante – vive e movimenta-se muitas vezes num panorama moral que é muito diferente daquele que a moral católica professa. Muitas sondagens e inquéritos de rua deixaram bem claro que o posicionamento face à moral sexual e também a determinados aspectos da vida familiar no âmbito da percepção comum não estão certamente em sintonia com os ensinamentos do magistério católico.

Seria bom que o magistério e a doutrina da Igreja adoptassem princípios que abrissem as portas da realização pessoal a todos quantos não têm capacidade de se concretizarem na perfeição cristã. Seria também, e por outro lado, justo que o mesmo magistério da doutrina cristã predispusesse de instrumentos pastorais para ir ao encontro dos muitíssimos que caem ou que estão expostos às tentações que se alimentam da fraqueza humana. Seria bom se o magistério católico não tivesse , ele próprio, a tentação de as justificar.

Creio que o Papa Francisco não tenciona relaxar os costumes e as posições da Igreja, mas procura – pura e simplesmente – encarar de frente a realidade e governar os destinos da Igreja num contexto no qual o cristianismo não é já sinónimo de uma maioria, quer a nível social, quer a nível cultural.

O próprio Pontífice enfrenta os seus próprios problemas no que toca à forma como lidera a Igreja e aos esforços para moralizar o clero. Não bastasse o escândalo do Monsenhor que se revelou homossexual, nos últimos dias também veio à baila a questão dos encontros proibidos nas instalações dos padres carmelitas, em Roma. Em suma, não é fácil apregoar a moral quando os exemplos que nos chegam das forças moralizadoras não são assim tão límpidos e cristalinos. E o problema não é só o sexo. É também o estilo de vida.

É difícil reivindicar um estilo de vida modesto a famílias que se confrontam já, quotidianamente, com problemas de sobrevivência, numa Europa martirizada por impostos e por problemas sérios e concretos. Para quem vive em apartamentos minúsculos, com contas para pagar, que efeitos tem a mensagem de prelados que vivem sozinhos, confortavelmente, em apartamentos que poucas famílias podem custear? A reforma interna da Igreja – parece-me – tem um pendor tão ou mais urgente que a necessidade de dar resposta às preocupações decorrentes da moral sexual das famílias ou de debater o que deve ser feito com os divorciados que se voltaram a casar.

Não me parece que o Papa Francisco ignore todas estas questões, mas não estou, ainda assim bem certo que delas tenha perfeita consciência. Se o poder de atracção que o Papa tem sobre os que estão longe da Igreja é evidente, uma palavra certa para os que se sentem próximos de Cristo seria, eventualmente, suficiente para que voltassem ao bom caminho.

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A ciência da homossexualidade

[Visto do Tibre]

Aurelio Porfiri, Maestro e Condutor Coral. Viveu em Macau entre 2008 e Setembro último.

Ao me debruçar sobre a pequena revelação protagonizada recentemente pelo Monsenhor Charamsa, que se declarou homossexual e anunciou que vivia com outro homem, coloquei a mim mesmo algumas questões que gostaria , por sua vez, de colocar ao Monsehor em questão: se é verdade que a homossexualidade é inata, Monsenhor Krzystof Charamsa sabia desde sempre que era homossexual.

Se sabia desde sempre que era homossexual e decidiu, ainda assim, enveredar pela carreira do sacerdócio, o caro Monsenhor teria certamente consciência de que a Igreja Católica não era exactamente o destino de viagem mais aconselhado para um homossexual declarado? Pode-se certamente ser católico e homossexual, mas, à luz da doutrina e da disciplina da Igreja, será que se pode ser sacerdote e ter um parceiro, seja ele heterossexual ou não?

Devolvo estas interrogações a Monsenhor Charamsa não em tom crítico, mas com respeito. Defendo que o tema da homossexualidade deve ser olhado de forma aprofundada e ir além da condenação simples e fácil. Como o próprio Papa Francisco afirmou numa das suas intervenções sobre a matéria, é um tema que pela sua difusão e relevância social, tem sido exaustivamente estudado. O que diz a ciência sobre a homossexualidade? Sem querer cair no cientificismo, não se podem ignorar, pura e simplesmente, milhares de estudos sobre o tema que revelam de que forma o Homem e a Natureza funcionam. Não sou dos que pensam que a ciência tem todas as respostas, mas defende que podemos, pelo menos, esperar que forneça algumas interrogações necessárias. Conheci ao longo da vida muitos homossexuais. Alguns, provavelmente, encontraram na homossexualidade uma forma de afirmação cultural. Outros confessaram-me que sempre – e desde sempre – se sentiram atraídos por pessoas do mesmo sexo. Sem qualquer motivo para duvidar da sua palavra ou para julgar que me poderiam estar a mentir, continuei e continuo a interrogar-me sobre a natureza da orientação e da atracção sexual que tem por destinatários pessoas do mesmo sexo. Creio que – e sem desprimor nem para a Igreja, nem para as comunidades homossexuais – é o que está a fazer também o Papa. Francisco tem bem presente a noção de que a homossexualidade não é um problema exterior à Igreja, mas algo que lhe diz respeito muito de perto, como a revelação do Monsenhor Krzystof Charamsa acabou por demonstrar.

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A lanterna vermelha de Corto Maltese

[O Ouvidor Ocidental]

Fernando Sobral

Corto Maltese sempre teve a sua pátria no mundo e no mar. A lanterna que o guiou ao longo das suas viagens fez com que nunca se perdesse no nevoeiro de aventuras sem sentido. Não sendo um herói, nunca procurou injustiças nas sete partidas do mundo para as combater. Também nunca foi um anti-herói. Corto é um observador arguto e que muitas vezes enfrenta os inimigos com frases cortantes. Hugo Pratt criou esta Banda Desenhada carregada de simbolismos e o seu desaparecimento, há duas décadas, deixou muitos de nós, fãs das suas aventuras, sem uma bússola que guiasse os sonhos neste mundo globalizado, demasiado igual, onde quase tudo já foi colocado num mapa com GPS. Hoje existem demasiados passaportes e fronteiras e cada um é cada vez menos senhor da sua sorte. Os sonhos diluíram-se no meio dos apelos materiais. Corto é despojado, vive de emoções fortes e de amores perenes. Transporta-nos para um mundo místico que nos chama para lá de um horizonte sem fim. De onde só chegam notícias escritas dentro de garrafas que navegam ao sabor das marés. Corto simboliza o passado livre que já é impossível viver. A sua ressurreição, duas décadas depois de “Mu”, com “Sous le Soleil de Minuit” (com autoria de Juan Díaz Canales e Rubén Pellejero), faz-nos recuperar esse mundo das grandes revoluções. Ou seja, as primeiras décadas do século XX.

Corto Maltese é o marinheiro errante de um mundo sem fronteiras (diz ele: “talvez apátrida. As fronteiras deslocam-se sem cessar. É cada vez mais difícil saber a que país cada um pertence”), cheio de ideais e de busca de identidades. Renasce quando hoje assistimos de novo ao regresso das fronteiras, dos nacionalismos que excluem tudo o resto, da falsa liberdade de movimentos. Corto vive noutro tempo, que nunca poderia ser este, mas lança luz sobre o presente. Continua a ser um nómada sem amarras, que busca um porto perdido mas repleto de horizontes. Hugo Pratt dizia que: “A minha vida está cada vez mais desligada do presente (…) encontra-se em mim e em Borges o mesmo esquema: uma mistura inextricável de verdades e de mistificações, de personagens reais e de personagens fictícias”. Tudo esse espírito livre está espelhado em “Sous le Soleil de Minuit”. Corto partilha connosco: “comandar nunca foi a minha especialidade. Contento-me em saber navegar”. E nós navegamos com ele.

Navegou mesmo para as fronteiras da China em “Corto Maltese na Sibéria”, uma das suas grandes aventuras. Onde se cruza, em busca de um comboio cheio de ouro, com uma das suas belas heroínas, a chinesa Shanghai Li, membro das Lanternas vermelhas, tríade eternamente feminina. Não deixa de ser curioso que, em “Corto Maltese na Sibéria”, são claras as notórias referências literárias que sempre marcaram o herói: ele lê “Utopia” de Thomas More. O seu passaporte é a utopia sem fronteiras. Dali a Hong Kong é um salto. Entre os personagens misteriosos que o seguem, estão as jovens das Lanternas Vermelhas, que lhe propõem um negócio: protegê-lo-ão se ele as ajudar a recuperar o tesouro imperial russo, frente a todos os que o desejam, incluindo os senhores da guerra chineses como Tchang Tso-Lin. Este e Corto têm em comum a amizade com a filha de um milionário de Xangai, Song. Aliados, tudo os separa. O tesouro é encontrado, mas Corto e Shanghai Li acabam por ter de se separar. Outras paixões os chamam. A lanterna que os guia leva-os para destinos diferentes. E, aí, Corto parece lembrar Sun Tzu: “Não é preciso ter olhos abertos para ver o sol, nem é preciso ter ouvidos afiados para ouvir o trovão. Para ser vitorioso precisamos ver o que não está visível”.
Com o regresso de Corto Maltese, prova-se que ele é como os gatos: tem sete ou mesmo nove vidas. Talvez sete, porque o marinheiro sem barco, sempre em busca de um destino que se recusa a conhecer e escondendo um segredo que nunca desvenda e do qual parece fugir, é um nómada cabalístico. “Sous le Soleil de Minuit” comporta-se como um poderoso sucessor de “Mu”, a última aventura criada por Hugo Pratt, onde Corto procura o continente perdido onde nasceu a humanidade. E onde, no final, o marinheiro olha para o infinito do oceano. Que o leva a cruzar as portas que dão para o Oriente eterno, atrás de uma simbólica lanterna vermelha.

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Portugueses em Macau: Uma nota de enquadramento

[Dinâmicas e contextos da pós-transição]

Carlos Piteira *

Falar dos Portugueses em Macau não é tarefa fácil, isto se admitirmos que existem múltiplas “franjas” e múltiplas perspectivas de enquadramento, o que logo à partida nos coloca num espaço de pluralidade e porque não, também de ambiguidade.

Ao longo do ano corrente a RTP tem vindo a divulgar a nova diáspora portuguesa através de uma rubrica intitulada «Os Portugueses no Mundo», programa que enaltece os “novos empreendedores” da diáspora lusófona, onde Macau está também incluído. Programa que merece todos os meus elogios dentro do quadro a que se propõe.

No entanto, quando nos situamos na realidade que é Macau e vamos conhecendo e reconhecendo a comunidade portuguesa residente em Macau, esta, parece-me estar muito além dessa categoria das comunidades emigrantes que o programa aborda através da presença “salpicada” de empreendedores que vão dando testemunhos do que fazem para situar os Portugueses no Mundo.

A contextualização da comunidade portuguesa em Macau alicerça-se na própria fundação de Macau e mistura-se na história do seu passado longínquo assim como nas vivências de um presente recente que incorpora a nova RAEM (Região Administrativa Especial de Macau).

A presença dos portugueses residentes em Macau transparece a alma lusófona que legitima o próprio lugar, são eles que dão corpo, no dia-a-dia e no quotidiano que se vive, à singularidade que caracteriza o lugar, com eles vivemos as emoções e a pertença a um lugar que também é parte da sua vida.

Nesta conjuntura os Portugueses em Macau são, por si só, uma extensão da vivência multissecular e multicultural que se enraizou na tipificação do próprio lugar que é Macau, as suas histórias são historias de uma vida comungada e partilhada com a essência da própria terra, são mais do que estrangeiros em território estranho, mesmo após a sua integração na tutela da República Popular da China, para muitos a RAEM será sempre Macau e apenas Macau terra que os acolhe como sendo deles também.

Neste sentido e a propósito de um recente documentário sobre os «Macaenses em Lisboa» realizado por Carlos Fraga e produzido pela LivreMeio, foi-nos sugerida a hipótese de tentar mostrar uma outra versão dessa história da presença secular dos portugueses em Macau, vivificada pelos seus actuais residentes.

Não resisti a empenhar-me em mais esta colaboração, que na linha do documentário sobre os macaenses, volta a dar o rosto e a voz a quem aí está, tentando obter testemunhos (vivenciais) que possam clarificar a imagem de uma comunidade, que apesar de diminuta, marca um traço específico da singularidade dessa terra que é Macau.

A equipa parte já em Outubro para Macau a fim de articular com a Casa de Portugal em Macau, que também é parceira deste projecto, no sentido de fazer os “alinhamentos” necessários para captar as imagens e os sons. Sem este contributo (por parte dessa instituição) não seria possível estabelecer as “pontes” necessárias para abordar este tema.

Queremos, ao fim e ao cabo e com alguma modéstia, apenas registar uma outra versão da história, a versão dos portugueses que sentem e vivem o lugar (de Macau) como local de pertença numa terra que mesmo situando-se no Extremo Oriente, lhes é muito próxima na alma e nos sentidos.

(*) – Investigador do Instituto do Oriente e docente do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas / Universidade de Lisboa

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Vamos de mãos dadas

Márcia Souto *

Jovens americanos, armados até aos dentes, continuam a querer ser Rambo: forte, firme, vaidoso e violento.

Jovens americanos, europeus, africanos, orientais, enfim, jovens…

As armas, que teoricamente deveriam existir para nos dar a sensação de segurança, seduzem crianças e jovens, que vêem nelas uma maneira de serem, finalmente, notados.

Os tímidos monstrinhos que habitam jovens almas de tímidos rapazes que crescem entre armas revelam-se em histórias que nos entram ecrã a dentro e respingam sangue no sofá, no tapete, na parede da sala.

Infelizmente, a velha nova história de mais um novo tiroteio em escola nos EUA não é mais um filme de ação ou aventura, um blockbuster de final de verão. E o “perfil” do assassino também não parece algo inédito: um estudante e mais de uma dezena de armas adquirida legalmente.

O constrangimento que um presidente, também pai de jovens, estampa é de arrepiar: mais uma vez o filme de terror passa em horário nobre e não há tempo de retirar as crianças da sala…

Meu menino, já oficialmente adolescente, olha aquilo com cara de “déjà vu” e balança lentamente a cabeça. E ficamos, incomodados, a pensar o que se passa naquela cabeça cheia de planos, sonhos e desejos absolutamente legítimos. E mais tarde, já na cama, continuamos a nos indagar o que ele pensa, o que ele vive na escola, o que ele vive com os amigos.

Certamente, como nós, inúmeros pais neste momento devem estar mais uma vez se perguntando se os esforços que fazemos para a promoção de uma educação para a paz, a tolerância e a compaixão têm surtido efeito. Como proteger nossos filhos dos “monstros” que há muito deixaram de viver no armário do quarto quando as luzes se apagam?

A cultura da violência, que gera “heróis” altamente bélicos, jogos “divertidos” em que se explodem cabeças (uma evolução do Tom e Jerry?) ou que se conferem mais pontos a quem atropelar mais velhinhas, só pode gerar uma parcela de lunáticos que querem ser EI, Boko Haram, Skinhead ou coisas do género? Ou não é nada disso…?

Continuo a me sentir despreparada e angustiada com tudo isso e, tal qual o Presidente, sinto-me constrangida diante da notícia do tiroteio em Oregon. Como ele, sinto-me desanimada diante desta loucura que tem vindo a se tornar rotineira.

E mais uma vez olho para o Presidente e vejo no seu rosto, no seu corpo, no seu discurso o que vejo aqui em casa, nos nossos sobrolhos, nos nossos ombros, nas nossas preocupações, então só me ocorre um poema de Carlos Drummond de Andrade (sempre Drummond):

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

(*) – Escritora e cronista

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