[Território da Língua]
Quando se fala uma ou mais línguas estrangeiras, é comum ter-se uma proficiência diferente em cada uma delas e até nos vários domínios que as integram. Por exemplo, alguém poderá dizer que fala inglês fluentemente, que tem um conhecimento mediano de francês e conhecimentos básicos de alemão: isto significa que essa pessoa fala as três línguas ou apenas que tem conhecimentos dessas três línguas? Qual é a diferença entre ter conhecimentos de uma língua e falá-la?
O que significam exatamente estas descrições? Esse é o cerne da questão quando se tenta determinar quantas línguas alguém fala. A totalidade da área de conhecimento de uma língua é bastante subjetiva e vagamente definida. Veja-se a palavra “fluente”: significa que o falante é capaz de dizer tudo o que quer e entender tudo o que ouve ou lê?
É provavelmente seguro dizer que os leitores deste texto são fluentes em português, quer pelo facto de ser a sua língua materna, quer por terem um elevado nível de aprendizagem da língua. Isso não significa, no entanto, que um indivíduo fluente conheça todas as palavras em português para cada objeto ou conceito. É difícil definir a dimensão de um vocabulário e as estimativas variam: é comum serem referidas 10.000 a 12.000 palavras para jovens cuja escolaridade se situa ao nível do secundário e 20.000 a 25.000 para adultos detentores de habilitações superiores. Crystal, no entanto, sugere que estes números são subestimados; um estudo efetuado por este linguista aventa que o vocabulário ativo de um licenciado pode conter 60.000 palavras e o vocabulário passivo 75.000 (por vocabulário passivo entende-se o que o falante reconhece, tendo algum grau de compreensão das palavras usadas, principalmente na escrita erudita ou técnica, mas sem as empregar ativamente no seu próprio discurso). Acresce que este método de avaliação abarca apenas palavras-chaves do dicionário; seria possível multiplicá-lo várias vezes para incluir diferentes sentidos, formas flexionadas e compostos.
Pode, portanto, afirmar-se que alguém com um vocabulário de 3.000 a 5.000 palavras é fluente numa língua? Como se define um o grau de conhecimento de uma língua e a capacidade comunicativa dos sujeitos?
Para enfrentar este desafio, o Conselho da Europa criou o Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas (QECR). O QECR é um referencial usado para descrever os níveis de proficiência em quatro áreas, para evitar as descrições aleatórias comummente usadas. A estrutura é dividida em três níveis, cada um com dois subníveis: utilizador básico (A1, A2), utilizador independente (B1, B2) e utilizador proficiente (C1, C2) e para todos estão definidos os desempenhos esperados nas várias subcompetências em que se desdobra a competência comunicativa: Compreender (compreensão do oral e leitura), Falar (interacção oral e produção oral) e Escrever (ver http://europass.cedefop.europa.eu/pt/resources/european-language-levels-cefr).
Uma meta inicial razoável para se aprender uma nova língua, ou atualizar um idioma aprendido anteriormente, será o B1 – o falante independente “É capaz de compreender as questões principais, quando é usada uma linguagem clara e estandardizada e os assuntos lhe são familiares (temas abordados no trabalho, na escola e nos momentos de lazer, etc.) É capaz de lidar com a maioria das situações encontradas na região onde se fala a língua-alvo. É capaz de produzir um discurso simples e coerente sobre assuntos que lhe são familiares ou de interesse pessoal. Pode descrever experiências e eventos, sonhos, esperanças e ambições, bem como expor brevemente razões e justificações para uma opinião ou um projecto.”
A confusão também se instala quando se descreve o número de línguas que uma pessoa fala. Monolingues, bilingues, trilingues, multilingues, poliglotas e hiperpoliglotas… de que se fala quando se usam estes termos?
Na verdade, não existe nenhuma quantificação oficial para eles. Michael Erard, Babel No More: The Search for the World’s Most Extraordinary Language Learners (2012), apresenta o número de seis como a fronteira entre o multilingue e o poliglota, baseando-se no facto de existirem comunidades geográficas onde as pessoas falam cinco línguas na sua vida quotidiana (dá exemplos da Índia e dos Balcãs). É fácil supor que as pessoas dessas sociedades falem essas línguas ao mesmo nível, mas pode não ser o caso; podem funcionar desenvoltamente em várias línguas, mas continuar a depender da sua língua materna na escrita ou no discurso preciso (situação que também não é estranha a Macau e às várias comunidades linguísticas aqui presentes).
Richard Hudson, linguista da University College London, define um hiperpoliglota como alguém que fala fluentemente seis ou mais línguas (e eis de novo o conceito de fluência). Erard, no entanto, modificou essa definição, classificando as pessoas que têm um domínio de seis a onze línguas como poliglotas, e aquelas com doze ou mais como hiperpoliglotas. Erard contorna a questão da fluência usando a expressão “dominar”.
Ao longo da história tem havido grande fascínio pelos poliglotas, embora muitas das alegações sejam difíceis de comprovar. Supostamente Cleópatra falava grego, egípcio, etíope, hebraico, árabe, siríaco, parta e muitas outras línguas. Em qualquer resenha histórica sobre hiperpoliglotas, o nome do Cardeal Giuseppe Caspar Mezzofanti (1774-1849) quase certamente irá surgir. Variam as referências quanto ao número de línguas que falou, incluindo dialetos e línguas mortas, mas giram à volta das 40 a 72 – mas aqui surge novamente o desafio de clarificar os conceitos de “falar uma língua” e “saber uma língua”. No caso das línguas mortas como o latim, o grego clássico, o inglês antigo, etc., o conhecimento pode ser baseado exclusivamente na leitura, a par do desconhecimento da fala ou da escrita.
Por causa da Internet, é fácil deparar atualmente com fenómenos deste tipo, mas há que destacar que falar uma língua funcionalmente é muito diferente de ser fluente ao nível de um intérprete simultâneo, por exemplo. Falar a nível funcional significa que se aprendeu o vocabulário e a gramática básicos necessários para comunicar nas interações mais comuns que podem surgir com falantes de uma língua estrangeira (por exemplo, explicando como e onde se aprendeu a língua, descrevendo estudos académicos, falando sobre a família, etc.), mas isso é muito diferente de se envolver numa discussão sobre problemas da atualidade.
No entanto, e finalmente, esta é a chave para as competências dos poliglotas: aprendem como adquirir o vocabulário essencial e como articulá-lo com as estruturas gramaticais mais comuns num nível funcional, de forma rápida e eficiente. Portanto, a este nível funcional, um estudante de línguas pode dizer que “fala uma língua”.
Ana Paula Dias, Doutoranda na Universidade Aberta