Globalidades aquecimentícias  

Tapau no bufê

Rodrigo de Matos

Já aqui falei, numa edição anterior desta crónica, no fenómeno do arrefecimento casinal, com as quedas de receitas dos casinos que vão batendo recordes todos os meses. Momento agora para falar de aquecimento global, porque a seguir aos casinos, não há nada mais importante do que a sobrevivência do planeta… Ou melhor, dos seres vivos que o habitam, porque ao planeta em si, pouca diferença faz se os mares estão cheios de golfinhos ou de sacos de plástico. Como dizia o grande George Carlin, “o planeta está bem e não vai a lado nenhum, nós é que vamos”.

Muito se tem dito acerca do aumento do nível dos oceanos (que não tem nada a ver com qualidade, mas com volume), mas o derretimento dos pólos tem sido apontado como a única explicação para a subida das águas. Mas há outras. A subida das temperaturas em si é uma delas. Como toda a gente sabe, o calor dilata os corpos (mesmo o de bombeiros), pelo que, aumentando a temperatura da água ela vai certamente aumentar de volume. Isto tem sido ao longo dos anos contrabalançado com a actividade ecologicamente consciente (e poucas vezes reconhecida) de países como o Japão ou a Noruega que, ao depredarem baleias sem contemplações, têm retirado muito do volume dos oceanos (não estão bem a ver o espaço que um cetáceo daqueles ocupa). Mesmo assim, as águas continuam a subir e por culpa de quem? Macau.

É verdade. Pode parecer absurdo, mas experimentem fazer uma experiência: peguem num copo de água e vão deitando areia lá para dentro. A dada altura, o copo vai transbordar. Ora, esse é o efeito que Macau está a conseguir criar no mundo com os seus sucessivos aterros para aumentar o território. Isto é uma teoria que tem recolhido crescente apoio da comunidade de cientistas imaginários que estou a inventar para suportar as afirmações deste artigo.

Se os oceanos continuarem a subir a este ritmo, o Kiribati, por exemplo, irá ficar completamente submerso dentro de poucas dezenas de anos. Felizmente para os kiribatianos, por essa altura, o território de Macau já vai estar ali ao lado e eles poderão chegar à nossa costa a remar, como centenas de chineses já fazem há vários anos. Convém é que não se metam mais de 900 pessoas na mesma embarcação, o que não tem dado bons resultados noutras paragens. Uma vez em Macau, os 94 mil habitantes do Kiribati podem ser facilmente absorvidos pela indústria da construção, que por essa altura deverá estar bem necessitada de mão-de-obra escrava… digo, estrangeira.

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Quando se é idiota…  

Água mole em pedra dura

Catarina Mesquita

Chegada a Macau a primeira sensação que tive foi que esta era, sem dúvida, uma terra fértil. Grandes empreendimentos, aquela que já foi a maior torre, o maior casino onde acontece o maior torneio de bacará e uma lista imensa de outros fenómenos em que se estica a corda ao máximo para se ser o maior em qualquer coisa.

Com os bolsos a rebentar pelas costuras, Macau tinha o perfil que dava uma esperança renovada aos projectos que tinham sido obrigados a ficar fechados na gaveta, por falta de verbas, naquele Portugal que se foi afundando.

Porém, é desse mesmo pobre Portugal que saem discursos recheados de palavras como “inovação”, “criatividade”, “empreendedorismo”, “startups” e “incubadoras” e onde os jovens ainda vivem com a vontade de fazer mais mesmo que estejam de mãos e pés atados.

Com o sangue na guelra de quem acabou de chegar a um novo lugar, cada esquina de Macau pareceu um potencial lugar para um novo negócio. E agora? Como tirar as ideias do papel e torná-las realidade?

Abrir uma empresa ou organização na RAEM consegue ser mais fácil que preencher formulários e submetê-los na famosa página electrónica portuguesa “Empresa na Hora”.

Preenchem-se papéis, pagam-se os honorários aos simpáticos funcionários do IPIM e “plim” somos magicamente empresários.

Mas a questão é: Empresários em quê? Termos ideias que ainda não foram vistas em Macau é levar com respostas como “Ah! Desculpe! Mas se isso ainda não existe cá é porque não é fundamental!” ou “Pode tentar submeter a um fundo do Governo, mas como não é residente permanente a probabilidade é que não seja aprovado”.

Pela tendência, uma loja de sopa de fitas ou de bolachas de amêndoa nunca são demais – não que eu tenha alguma coisa contra esse tipo de negócio – mas a resistência à novidade em Macau é esmagadora e desmotivante.

Há pouco tempo, o designer James Chu dizia que Macau é bastante criativa nas pequenas coisas e que foi buscar à sua costela portuguesa o desenrascanço para solucionar criativa e rapidamente os problemas de menor dimensão. Porém, as repostas aos grandes problemas são pouco originais.

Fala-se da diversificação económica, das indústrias criativas, de novas ideias que nos salvem do demónio que são os casinos mas quando um perfeito desconhecido da comunidade tem uma nova ideia é visto como um “idiota”. Não daqueles que têm muitas ideias, mas daqueles que parecem estar a ter um ataque de loucura.

Em que é que ficamos? Devemos ser criativos ou não? Afinal o que é a criatividade?

Não sei se concordo com o outro que diz que o mundo é dos espertos mas defendo que neste pedaço de mundo que é Macau, o mundo é dos pouco inovadores que arrumam a um canto os “idiotas” que têm novas ideias.

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O discurso do costume  

[PODE IR À SUA VIDA]

Sandra Lobo Pimentel

O discurso dos deputados relativamente aos trabalhadores não-residentes tem preocupado muita gente que, aqui ou ali, vai expressando opinião no sentido de repudiar as ideias estapafúrdias de transportes diferenciados e outras que tais que vão sendo veiculadas na Assembleia Legislativa.

Desta feita está em causa o regime do ensino superior e a possibilidade de o Governo vir a garantir o financiamento das instituições contemplando não só os residentes do território.

A Comissão da Assembleia Legislativa que está a discutir o diploma quer que o Governo esclareça. O deputado Chan Chak Mo, que preside à Comissão, entende que é necessário saber se os trabalhadores não-residentes estão incluídos, preocupado que está com o erário público.

Si Ka Lon disse ao Hoje Macau que as despesas feitas pelo Executivo com os residentes devem ser “diferentes” das que são feitas com os restantes, uma opinião que vai no sentido de muitas outras que vamos ouvindo de outros, entre os quais, as deputadas Song Pek Kei ou Ella Lei.

Esta última, também vice-presidente da Associação Geral dos Operários de Macau, traz amiúde nos seus discursos a “problemática” dos não-residentes. Eu chamo-lhe, já, uma espécie de obsessão, dada a frequência com que fala do assunto, e, quase sempre, querendo forçar este diferenciar de tratamento por parte das entidades públicas.

Já muito se falou, como disse. A crítica parte daqueles que têm presente os valores do humanismo e que, com certeza, não reconhecem conformidade nessa diferença de tratamento, tão somente por não ser justo, já que falamos de pessoas que contribuem com o seu trabalho para o crescimento e desenvolvimento da RAEM.

Apesar dos constantes argumentos, onde realmente se discute o futuro das regras que nos vão presidir de amanhã em diante, a Assembleia Legislativa, os argumentos parecem ser recorrentemente outros. Diria até, insistentemente outros.

Leva-me a pensar que, sendo alguns dos deputados os escolhidos da população ou das associações do território, se é, de facto, este o pensamento da maioria dos residentes permanentes de Macau. É assim que pensam?

Claro que há questões por resolver devido ao crescente número de trabalhadores importados. É natural que as garantias que devem ser dadas aos residentes permanentes podem ter uma ponderação relativamente aos que são apelidados de “não-residentes” (ainda que, na prática, muitos não o sejam).

Mas isso decorre da factura que a população está a pagar pelo crescimento da cidade e que não pode ser compensada apenas com um cheque todos os anos. Não decorre do simples facto de se tratarem de “estrangeiros” e por isso o Governo não deve gastar dinheiro com eles.

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Clarificando conceitos: o que é “falar uma língua”?

[Território da Língua]

Quando se fala uma ou mais línguas estrangeiras, é comum ter-se uma proficiência diferente em cada uma delas e até nos vários domínios que as integram. Por exemplo, alguém poderá dizer que fala inglês fluentemente, que tem um conhecimento mediano de francês e conhecimentos básicos de alemão: isto significa que essa pessoa fala as três línguas ou apenas que tem conhecimentos dessas três línguas? Qual é a diferença entre ter conhecimentos de uma língua e falá-la?

O que significam exatamente estas descrições? Esse é o cerne da questão quando se tenta determinar quantas línguas alguém fala. A totalidade da área de conhecimento de uma língua é bastante subjetiva e vagamente definida. Veja-se a palavra “fluente”: significa que o falante é capaz de dizer tudo o que quer e entender tudo o que ouve ou lê?

É provavelmente seguro dizer que os leitores deste texto são fluentes em português, quer pelo facto de ser a sua língua materna, quer por terem um elevado nível de aprendizagem da língua. Isso não significa, no entanto, que um indivíduo fluente conheça todas as palavras em português para cada objeto ou conceito. É difícil definir a dimensão de um vocabulário e as estimativas variam: é comum serem referidas 10.000 a 12.000 palavras para jovens cuja escolaridade se situa ao nível do secundário e 20.000 a 25.000 para adultos detentores de habilitações superiores. Crystal, no entanto, sugere que estes números são subestimados; um estudo efetuado por este linguista aventa que o vocabulário ativo de um licenciado pode conter 60.000 palavras e o vocabulário passivo 75.000 (por vocabulário passivo entende-se o que o falante reconhece, tendo algum grau de compreensão das palavras usadas, principalmente na escrita erudita ou técnica, mas sem as empregar ativamente no seu próprio discurso). Acresce que este método de avaliação abarca apenas palavras-chaves do dicionário; seria possível multiplicá-lo várias vezes para incluir diferentes sentidos, formas flexionadas e compostos.

Pode, portanto, afirmar-se que alguém com um vocabulário de 3.000 a 5.000 palavras é fluente numa língua? Como se define um o grau de conhecimento de uma língua e a capacidade comunicativa dos sujeitos?

Para enfrentar este desafio, o Conselho da Europa criou o Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas (QECR). O QECR é um referencial usado para descrever os níveis de proficiência em quatro áreas, para evitar as descrições aleatórias comummente usadas. A estrutura é dividida em três níveis, cada um com dois subníveis: utilizador básico (A1, A2), utilizador independente (B1, B2) e utilizador proficiente (C1, C2) e para todos estão definidos os desempenhos esperados nas várias subcompetências em que se desdobra a competência comunicativa: Compreender (compreensão do oral e leitura), Falar (interacção oral e produção oral) e Escrever (ver http://europass.cedefop.europa.eu/pt/resources/european-language-levels-cefr).

Uma meta inicial razoável para se aprender uma nova língua, ou atualizar um idioma aprendido anteriormente, será o B1 – o falante independente “É capaz de compreender as questões principais, quando é usada uma linguagem clara e estandardizada e os assuntos lhe são familiares (temas abordados no trabalho, na escola e nos momentos de lazer, etc.) É capaz de lidar com a maioria das situações encontradas na região onde se fala a língua-alvo. É capaz de produzir um discurso simples e coerente sobre assuntos que lhe são familiares ou de interesse pessoal. Pode descrever experiências e eventos, sonhos, esperanças e ambições, bem como expor brevemente razões e justificações para uma opinião ou um projecto.”

A confusão também se instala quando se descreve o número de línguas que uma pessoa fala. Monolingues, bilingues, trilingues, multilingues, poliglotas e hiperpoliglotas… de que se fala quando se usam estes termos?

Na verdade, não existe nenhuma quantificação oficial para eles. Michael Erard, Babel No More: The Search for the World’s Most Extraordinary Language Learners (2012), apresenta o número de seis como a fronteira entre o multilingue e o poliglota, baseando-se no facto de existirem comunidades geográficas onde as pessoas falam cinco línguas na sua vida quotidiana (dá exemplos da Índia e dos Balcãs). É fácil supor que as pessoas dessas sociedades falem essas línguas ao mesmo nível, mas pode não ser o caso; podem funcionar desenvoltamente em várias línguas, mas continuar a depender da sua língua materna na escrita ou no discurso preciso (situação que também não é estranha a Macau e às várias comunidades linguísticas aqui presentes).

Richard Hudson, linguista da University College London, define um hiperpoliglota como alguém que fala fluentemente seis ou mais línguas (e eis de novo o conceito de fluência). Erard, no entanto, modificou essa definição, classificando as pessoas que têm um domínio de seis a onze línguas como poliglotas, e aquelas com doze ou mais como hiperpoliglotas. Erard contorna a questão da fluência usando a expressão “dominar”.

Ao longo da história tem havido grande fascínio pelos poliglotas, embora muitas das alegações sejam difíceis de comprovar. Supostamente Cleópatra falava grego, egípcio, etíope, hebraico, árabe, siríaco, parta e muitas outras línguas. Em qualquer resenha histórica sobre hiperpoliglotas, o nome do Cardeal Giuseppe Caspar Mezzofanti (1774-1849) quase certamente irá surgir. Variam as referências quanto ao número de línguas que falou, incluindo dialetos e línguas mortas, mas giram à volta das 40 a 72 – mas aqui surge novamente o desafio de clarificar os conceitos de “falar uma língua” e “saber uma língua”. No caso das línguas mortas como o latim, o grego clássico, o inglês antigo, etc., o conhecimento pode ser baseado exclusivamente na leitura, a par do desconhecimento da fala ou da escrita.

Por causa da Internet, é fácil deparar atualmente com fenómenos deste tipo, mas há que destacar que falar uma língua funcionalmente é muito diferente de ser fluente ao nível de um intérprete simultâneo, por exemplo. Falar a nível funcional significa que se aprendeu o vocabulário e a gramática básicos necessários para comunicar nas interações mais comuns que podem surgir com falantes de uma língua estrangeira (por exemplo, explicando como e onde se aprendeu a língua, descrevendo estudos académicos, falando sobre a família, etc.), mas isso é muito diferente de se envolver numa discussão sobre problemas da atualidade.

No entanto, e finalmente, esta é a chave para as competências dos poliglotas: aprendem como adquirir o vocabulário essencial e como articulá-lo com as estruturas gramaticais mais comuns num nível funcional, de forma rápida e eficiente. Portanto, a este nível funcional, um estudante de línguas pode dizer que “fala uma língua”.

Ana Paula Dias, Doutoranda na Universidade Aberta

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O que são os talentos?  

[Activo Estratégico]

Patrícia Silva Alves

As políticas de Macau baseiam-se em palavras de ordem (não confundir com política porque essa vem de fora) que sintetizam uma ideia e parecem demonstrar um caminho para o futuro. Dois exemplos: diversificação (repetida 40 vezes no relatório das Linhas de Acção Governativa entregue pelo Chefe do Executivo aos deputados) e talentos (repetida 21 vezes).

No entanto, e apesar de serem palavras, valem sobretudo pelo seu som e não pelo seu significado. São expressões que não comprometem, não revelam e não dizem nada. São como o manto da invisibilidade que se desejaria ter quando se é apanhado em falso e se quer desaparecer no segundo seguinte. São um escudo protector contra terceiros, aqueles que fazem perguntas e aguardam por uma resposta.

Macau, com uma área de pouco mais de 30 quilómetros quadrados, tem quatro grandes universidades. Quando o Governo afirma que é preciso formar talentos está a dizer que é preciso ter mais formações além daquelas já dadas por estas instituições? Está a dizer que o sistema de ensino não está a funcionar?

Na lista online disponibilizada no site da Comissão de Desenvolvimento de Talentos vemos que o Governo identificou 5567 potenciais talentos. Mas de que áreas de formação são estas pessoas? Não sabemos.

Olhar para a legislação publicada a propósito da Comissão de Desenvolvimento de Talentos também não ajuda a esclarecer: até agora, os regulamentos aprovados dizem respeito apenas à delegação de competências no secretário-geral da entidade, à designação dos seus membros e à criação da comissão.

A apresentação das finalidades da entidade também não esclarece mais: sabe-se apenas que a palavra “talentos” é um sinónimo de “quadros qualificados”. Sobre as áreas em que é preciso ter melhores profissionais apenas se fala de “Centro mundial de turismo e lazer” e “plataforma de serviço comercial entre a China e os países de língua portuguesa”, mas atendendo a que Macau já tem várias faculdades a dar a formação nesta área, não se percebe, então, o que falta.

No fundo, o Governo trata esta questão da formação de talentos como um senhorio que quer arrendar uma casa cheia de humidade: pinta as paredes para parecer que resolve um problema de infiltrações, mas a água continuará a escorrer.

É que se as escolas do território estão a falhar na formação de quadros, há-que resolver essa lacuna e não criar uma camada adicional de opacidade e mais uma palavra de ordem que, na verdade, nada diz. Nem sobre o passado, sobre o que se quer do futuro.

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Do café a preço de ouro a uma epidemia de mosquitos, todos pagam pela falta de transparênci

[Res Publica]

A convite de um grupo de alunos, visitei o novo campus da Universidade de Macau (UMAC) na ilha da Montanha para dar apoio à organização de um evento. Por sentir que precisava de uma dose de cafeína para me sentir desperto, desloquei-me à única cafetaria das novas instalações. Pedi um “duplo espresso” e nem a boa vontade de uma aluna, que apresentou o seu cartão de estudante para que me fosse concedido um desconto de 30 por cento, mitigou a minha indignação: mesmo a custar menos 30 por cento, um “duplo espresso” é mais caro no novo campus da UMAC do que no Starbucks da Universidade de Hong Kong. Poucos serão os que associam em termos imediatos o preço do café à falta de transparência no seio de uma universidade que se diz de “gabarito mundial”. Ainda assim, todos temos de reconhecer que, em última instância, cabe-nos a nós suportar o custo das decisões tomadas pelo governo à porta fechada.

A decisão de transferir a Universidade de Macau da Taipa para a Ilha da Montanha foi tomada pouco depois de Zhao Wei ter assumido o cargo de reitor. Na primeira proposta para a relocalização avançada pelos responsáveis pela instituição de ensino superior, a Universidade da Montanha iria pura e simplesmente mudar-se para Zhuhai e operar sob jurisdição da República Popular da China, ainda que mantendo “as características e os níveis de qualidade de Macau”. Na altura, na qualidade de aluno do terceiro ano de uma das licenciaturas ministradas pela Universidade, desafiei numa reunião magna o reitor a garantir que a liberdade académica seria preservada. Os anos que Zhao Wei passou nos Estados Unidos da América capacitaram-no para usar uma linguagem aparentemente democrática, criando a ilusão de que o processo de transferência das instalações seria feito de forma aberta e teria em conta a opinião dos alunos e da população. Zhao garantiu na altura que a mudança para Zhuhai não era mais do que uma “sugestão” , asseverando estar aberto a outras opiniões.

Pouco tempo depois, o Governo Central deu luz verde à criação de um enclave académico na Ilha da Montanha. O que mais me surpreendeu no anúncio foi o facto de ninguém estar até então ao corrente da existência de uma proposta nesse sentido. A única reacção construtiva com que pudemos avançar foi a de dizer, intuitivamente não, a qualquer proposta de mudança para Zhuhai e para a China Continental. Assumiu-se que a população de Macau concordava de boa vontade com um investimento de milhares de milhões de patacas a ser feito em território chinês por uma empresa do Continente. A possibilidade, anteriormente aventada, da Universidade erguer um novo campus em terrenos reclamados ao mar – projecto que presumia a construção de túnel subaquático, com um astronómico custo de dois mil milhões de patacas – foi pura e simplesmente eliminada, sem ter sido sequer submetida a discussão.

Numa fase posterior da iniciativa, os membros da UMAC foram convidados a pronunciar-se sobre as necessidades que deviam ser tidas em conta na concepção do novo campus. Mal o período de consulta pública foi dado por encerrado, a Universidade apresentou uma maquete das novas instalações. Não é necessário ser-se um génio para se associar uma consulta pública sobre a matéria a um plano arquitectónico. Eu fiz a associação e terão sido muitos os que a fizeram.

Cedo se percebeu que os corpos de água seriam uma característica importante do plano de desenvolvimento urbanístico do campus da Ilha da Montanha. Quem vive em Macau sabe que charcos e pequenos lagos constituem o ambiente perfeito para a proliferação de mosquitos. Não tive oportunidade de me pronunciar sobre a matéria quando a transferência das instalações foi unilateralmente anunciada pela UMAC, sem que houvesse lugar à reavaliação da decisão. Agora são os estudantes quem sofre com a mudança: importunados pelos mosquitos, os alunos quase não dormem.

Por fim, e para encerrar a questão arquitectónica, no início de 2013 denunciei o que considerei ser o gravíssimo acto de plágio cometido pelo arquitecto responsável pelo projecto, que tentou recriar na Ilha da Montanha o campus da Universidade de Auditoria de Nanjing.

Com uma estrofe que glorifica “o amor pelo país (a China)”, o hino da Universidade fez com que se tornasse difícil para mim referir-me à Universidade de Macau como a minha alma mater. A exemplo do que sucedeu com a consulta sobre “as necessidades a suprir com o novo campus”, a UMAC organizou um concurso para angariar “elementos” que pudessem ser integrados na letra do hino da instituição. Nenhuma das propostas vencedoras acabaria por ser escolhida para o efeito e a autoria da letra foi consignada a Daniel Tse, presidente do Conselho da Universidade. Que necessidade havia, então, de se organizar um concurso? Os “elementos recolhidos” na competição terão sido incorporados por Tse na letra, sustenta a Universidade. É certo e sabido que a questão do gosto e da estética variam de pessoa para pessoa, mas, no meu entender, a letra do hino suscitou mais reacções negativas do que positivas.

Um dos estabelecimentos de restauração do novo campus tem o pomposo nome de “Food Paradise”. Com designações menos faustosas, este e todos os outros restaurantes das novas instalações da Universidade de Macau são explorados pelo grupo Future Bright, do deputado Chan Chak Mo. Nenhuma das entidades que servem refeições prontas no campus da ilha da Montanha enfrentam verdadeiramente concorrência. Perdoem-me se pareço nostálgico, mas sinto falta das iguarias servidas na cafetaria da biblioteca do antigo campus. O espaço era para mim um refúgio entre aulas quando estudava na Universidade e que fique claro que não fui pago para tecer estas considerações.

Agora, a hedionda lasanha servida nas novas instalações fazem com que perca o apetite. Nem sei o que seria de mim se, enquanto estudante, a refeição fosse a única opção disponível dia após dia. Os resultados da falta de transparência nos processos fazem-se visíveis nos pratos dos alunos da instituição.

Quando as decisões são tomadas à porta fechada, todos pagam a factura. Vai continuar calado enquanto o governo decide nas suas costas?

Jason Chao

Activista politico e líder do grupo Consciência de Macau

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O medo dos clássicos

Bagagem de Mão (Abril 2015)

Sara Figueiredo Costa

Nunca li “Os Três Reinos”. É uma confissão que faço com vergonha, mesmo sabendo que nunca temos tempo para ler tudo o que algum dia se publicou. Deste lado do mundo, a crítica literária vai-se fazendo com o cânone às costas, mas é um cânone onde não há grande espaço para literaturas de outras latitudes que não as ocidentais. Um Homero, um Shakespeare, um Cervantes, tudo leituras sem as quais ninguém deveria escrever sobre livros com a consciência tranquila, mas onde andam os grandes clássicos chineses, indianos, japoneses? Um Lao Tze ou um Sun Tzu para contar a história e brilhar em inquéritos de Verão não chegam, claramente. Foi com esta severidade para comigo mesma que andei pelas livrarias de Macau – que são poucas e não tão bem fornecidas como se esperaria, mas isso dará outra crónica – demandado uma edição de “Os Três Reinos”, atribuído a Luo Guanzhong, em inglês, naturalmente.

Com a demanda fracassada como um Quixote sem moinhos, tentei a sorte em Hong Kong, numa livraria de centro comercial. Nas estantes, nada de “Os Três Reinos”, pelo menos em versão integral. Havia o segundo volume de uma edição de dois tomos e isso, claro está, foi liminarmente recusado. Depois do fogo, como bem disse Umberto Eco, dos bichos do papel e dos senhorios que não consertam infiltrações, as obras truncadas são um dos maiores pesadelos de qualquer bibliófilo.

Uma última tentativa desta longa demanda aconteceu no aeroporto, poucas horas antes do voo de regresso a Portugal. Com uns dólares que ainda restavam no bolso e aquele dinheiro que nos dão à saída do ferry e que nunca percebi bem de onde vem, procurei a Page One que vinha indicada na planta do edifício e lá estava ele. Na verdade, eram eles: quatro volumes dentro de uma caixa devidamente selada com plástico, numa edição que não dava para ver se era boa ou má, mas que naquele momento resolveu o assunto. Com o tijolo nas mãos era preciso resolver a logística do voo. Ia ficar numk lugar à janela, sem hipótese de me levantar muitas vezes, por isso não era dos quatro volumes de um clássico chinês que eu precisava no colo, e sim de umas pastilhas elásticas, uns comprimidos para me esquecer do facto de estar dentro de um avião e mais uma ou outra coisa essencial. Troca cirúrgica: a caixa com os livros migrou para a mochila de cabine e os bens essenciais para o voo passaram para o saquinho da Page One, de modo a não ficarem barricados na bagageira.

Em Frankfurt, numa escala que aconteceu pelas seis da manhã, sou travada no percurso entre portas de segurança e túneis de aeroporto por um alemão que concentrava e si todos os maus clichés que a maldade e o preconceito atribuem aos alemães: era grande como um saxão e bruto como uma chanceler. A minha mochila de cabine estava à sua frente e quando o homem disse qualquer coisa que o meu sono e a minha vontade de chegar a casa identificaram como “take your bag, please”, como quem diz “despacha-te a tirar isto daqui que há mais gente na fila”, não percebi que o que o homem estava realmente a dizer era um sonoro “open your bag”, com um “please” tão forçado que veio acompanhado de uma mão espalmada sobre a mala que eu tentava retirar da bandeja. Pedi desculpa pela incompreensão, porque num sítio destes só se pede o livro de reclamações se houver uma grande injustiça a acontecer-nos diante dos olhos – ou muitas horas de escala e pouco amor ao passaporte -, e abri a mala. O meu cérebro começou imediatamente a tentar descobrir o que poderia ter motivado a suspeita no raio X e pensei que teria sido o pequeno boião de pomada do tigre que transportava comigo, numa tentativa vã de aliviar as dores no pescoço. Nada disso. Assim que a mala se abriu, o enorme saxão apontou para a caixa com os quatro volumes, capa mole, embalagem selada e carregou a fisionomia com suspeição. De luvas postas, vi-o agarrar a medo nos livros e olhar para a capa como quem mira cinco quilos de cocaína, ou duas metralhadoras de fabrico caseiro, ou uma iguana absolutamente à beira da extinção embrulhada em pele de panda bebé. “The Three Kingdoms”, sussurra o homem com ar de quem me apanhou, sibilando o “th”. Depois de olhar para todas as faces da embalagem, chamou um colega e disse-me que eu devia acompanhá-lo, enquanto lhe passava para as mãos os singelos livrinhos, sempre mantendo uma distância de segurança entre o perigoso objecto e o seu corpo. Lá acompanhei o novo carrasco de material impresso, que me pareceu um bocadinho menos saxão e chanceleriano do que o primeiro.

Entrámos numa sala e pensei que estava quase a chegar o momento de dizer que não havia direito de incomodarem uma cidadã por causa de um livro. Em vez disso, perguntei ao meu novo custodiante se havia algum problema com aquele livro, obtendo como resposta um sorriso amarelo e um seco “vamos ver”. Os livrinhos foram entregues a um terceiro homem, provavelmente o rei da salinha misteriosa, que os colocou em cima de uma mesa e se pôs a olhar para eles. Eu não percebia o que se passava, mas ainda percebia menos por que não abriam o raio da embalagem de plástico se estavam tão desconfiados do que podia haver dentro dos livros. Não abriram.

O terceiro homem agarrou num paninho, borrifou-o com um líquido, passou-o pela caixa plastificada e ficou a olhar para o seu serviço como quem admira um quadro. Passados pouco segundos, a caixa foi-me devolvida e o segundo carrasco disse-me que estava tudo bem e que podia ir. Perguntei o que poderia estar mal, mas ele repetiu a resposta e eu percebi que o que queria dizer era “é melhor ires andando se não quiseres passar as próximas 24 horas a descobrir o maravilhoso das pequenas autoridades sem limites enquanto vês passar os aviões”. É também isto que se aprende nos livros, a perceber segundos e terceiros sentidos nas frases que aparentam apenas uma direcção.

Ainda não iniciei a leitura de “Os Três Reinos”. Estou à espera de coragem para abrir o celofane.

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Jornalismo cão de guarda, jornais colaboradores

ULTIMATUM

Isadora Ataíde

A imprensa periódica nas então colónias portuguesas emergiu a partir da década de 1820, a começar pela Gazeta de Goa, em 1821. Os jornais dos territórios coloniais, a acompanhar a imprensa Oitocentista de Portugal, tinham como marca registada o seu perfil político: eram um espaço de contestação dos governos, uma plataforma dos conflitos entre os grupos políticos, uma base para as reivindicações sociais e um meio privilegiado para as denúncias sobre os abusos cometidos pelo sector público e pelos interesses privados.

Ou seja, também nas então províncias ultramarinas portuguesas, a imprensa emergiu e desenvolveu-se a desempenhar o papel que se tornou a essência do jornalismo: actuar como um cão de guarda em defesa dos interesses sociais comuns e a denunciar as irregularidades e abusos dos governos e de privados.

Em Cabo Verde, entre 1880-81, saiu o semanário Imprensa, que denunciou casos de funcionários públicos que desenvolviam actividades privadas e acusou o Governador de abuso de poder.

Em Angola, em 1894, circulava O Imparcial. Em Junho deste ano o jornal relatava que o inspector encarregado da sindicância à câmara municipal de Luanda regressava a Lisboa: “Diz-se que nada foi descoberto, mas Júdice da Costa tem um lustre igual ao da sala de sessões da câmara municipal e móveis feitos de madeiras e por marceneiros compradas pelo Estado”.

Em São Tomé e Príncipe apareceu em 1909 O Africano, Semanário Independente. Em Maio daquele ano o jornal apontava a “falta de competência” do Terreiro do Paço, que “desconhece e não resolve os problemas das ilhas… num regime de favores e de convenções mentirosas, alheio a toda a manifestação da vida progressiva do povo que trabalha, quer na metrópole quer no ultramar, não podemos esperar nada sem uma transformação radical nas camadas dirigentes”.

Na Guiné, onde a imprensa não oficial apenas apareceu na década de 1920, o semanário Ecos da Guiné denunciava que “O Ministério das Colónias tem muitos afilhados que contentar… Para se mascarar um pouco essa padrinhagem mandam-nos prestar serviços nas colónias”.

Em resposta a tais denúncias, as autoridades não hesitavam em censurar e suspender os títulos, para além de perseguir, prender e desterrar os jornalistas.

Em Moçambique, o primeiro jornal independente, O Progresso, em 1868, durou apenas uma edição. Foi suspenso por noticiar um caso judicial que envolvia os interesses do Governador. Este, insatisfeito, instituiu a censura, obrigando os jornais a remeter uma prova para receberem o visto antes da sua impressão.

No entanto, a principal estratégia dos governos das colónias era estimular e financiar jornais que defendessem os seus governos e interesses. Raul Dias, historiador da imprensa portuguesa, relata que o África Oriental (1883), também de Moçambique, “tinha características governamentais, pois dizia bem de todos os governadores da província a propósito de tudo e de nada”.

O Progresso, que saiu em Angola a partir de 1913, foi um forte aliado de Norton de Matos. Quando o Governador deixou a colónia no fim do seu primeiro mandato, em 1914, o jornal sublinhava “o muito que a província lucrou com a acção ponderada, enérgica, criteriosa e sábia do seu ilustre Governador Geral”.

Em contraposição ao exercício jornalístico cão de guarda tem-se o jornalismo colaborador. Este, tem como característica fundamental dar o seu apoio às políticas dos governos e defender os interesses de grupos privados. Tal suporte não é um exercício ideológico, o jornalismo do tipo colaborador escreve com uma mão e recebe com a outra.

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Um passeio pelo campo

[Água mole em pedra dura]

Catarina Mesquita

Na generalidade há no cidadão português sempre uma vontade de nos dias de folga querer ir passear fora do centro da cidade.

Chega ao fim-de-semana, em especial ao domingo e lá vão os carros a circular a baixa velocidade pelas marginais junto aos rios ou ao mar ou lá seguem em filinha – com nada mais do que a terceira velocidade metida – em direcção ao ar puro do campo. O “trânsito de domingo” é uma realidade e só causa enervação aos que, infelizmente, nesses dias têm de ir trabalhar.

Desde que me mudei para Macau e apesar de o espaço ser muito mais limitado há um hábito que ainda não deixei: dar esse belo passeio pelo campo.

Haja raio de sol ou não lá vou eu rumo ao sítio mais longe de casa para um breve encontro com a vegetação e a “calmaria” do campo. A descontracção da folga sai comigo de casa e acompanha-me pelo caminho até chegar à vila de Coloane.

Na primeira voltinha pela vila à procura de estacionamento ainda há uma pequena esperança que seja à primeira que vou encontrar lugar. “Hoje é o meu dia de sorte”, penso sempre, enquanto recorro ao que muitos chamam Lei da Atracção, pois dizem que se pensar que vou arranjar lugar, esse lugar vai surgir num ápice.

Não sei se não estou a exercer força mental suficiente, mas a verdade é que nem à segunda volta, normalmente, consigo arranjar lugar e a descontracção da folga começa a esgotar-se com as voltinhas e voltinhas dentro do carro.

Teorias e leis excêntricas à parte, a realidade é que em Coloane os poucos lugares de estacionamento que existem estão ocupados por carros abandonados. Nos lugares reservados para o efeito existem carros parados há meses a acumular pó, que nem multados são, e parecendo ter lugar cativo. Nos restantes espaços livres há uma linha amarela e um polícia que se passeia de um lado para o outro e nem permite que se abrande junto ao passeio.

A paciência muitas vezes esgota-se e acabo por seguir montanha acima para estacionar e caminhar a pé. E se a opção do passeio não for os trilhos de Coloane andamos num passeio de obstáculos onde mais carros abandonados ladeiam as estradas.

Surpreende-me que se faça tão pouco em relação a isto. Surpreende-me a falta de tolerância por aqueles que, nas barbas do polícia, encheram a barriga do parquímetro até ao máximo, com quatro patacas. Se se demoram cinco minutos mais para lá do limite, não escapam a uma multa 100 vezes maior que as míseras moedas usadas para pagar o estacionamento.

Lamento que os passeios pelos campos do território sejam cada vez mais entre latas velhas do que entre árvores, veja-se o exemplo também nas montanhas da Taipa, lugares de preferência dos monos de quatro rodas.

É claro, que se pode remediar a situação, indo passear de autocarro – e sempre ficamos com a sensação que o território é maior pelo tempo que demoramos a chegar ao destino – mas parece que essa resolução é mesmo aquilo a que o português chama “tapar o sol com a peneira” e que em Macau é uma prática tão comum.

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ELES NÃO VOLTARÃO

Márcia Souto

Sentimento do Mundo

Carlos Drummond de Andrade

Tenho apenas duas mãos

e o sentimento do mundo,

mas estou cheio de escravos,

minhas lembranças escorrem

e o corpo transige

na confluência do amor.

(…)

Eles não devolveram nossas meninas, na verdade, ao que tudo indica, não se comoveram em nada com a campanha recheada de figuras mundialmente importantes. Eles não as devolveram. Eles não as devolverão. Eles não as devolverão por muitos motivos, inclusivamente os impensáveis. Eles não as devolverão, pois já são elas outras, ou tristes esposas precoces, ou escravas-mirim, ou crianças-soldado, ou mortas, simplesmente desaparecidas.

Não conhecerão o desejado eldorado europeu as centenas (ou milhares) de homens, mulheres, crianças, todos esquálidos e sonhadores. Eles não pisarão em Lampedusa, nem de longe será avistada a bela ilha italiana, tão perto da África, mas tão improvavelmente longe da realização da fantasia de viver num lugar sem guerra, sem perseguições religiosas, políticas e tantas outras. Tão longe do que a vida os tem relegado. E este Mediterrâneo reluzente acaba por sepultar tantos homens, mulheres, crianças… tantos sonhos…

Quando os corpos passarem,

eu ficarei sozinho

desfiando a recordação

do sineiro, da viúva e do microscopista

que habitavam a barraca

e não foram encontrados

ao amanhecer

Não voltarão para dormir em casa os etíopes cristãos cuja última imagem foi de um ruidoso mar em qualquer lugar da desmantelada Líbia. Não voltarão para casa os também cristãos egípcios mortos no deserto. Igualmente não retornarão com a féria, que certamente alimentaria a família, trabalhadores afegãos.

Quando me levantar, o céu

estará morto e saqueado,

eu mesmo estarei morto,

morto meu desejo, morto

o pântano sem acordes.

Não voltará alegre e orgulhosa a exibir os diplomas a centena e meia de jovens quenianos. Eles não acordarão do pesadelo que lhes roubou a vida naquela madrugada sangrenta. Eles não poderão, depois de formados e cheios de utopia de paz, explicar ao mundo que é desumano matar em nome de deus.

Não voltarão para o seu país os moçambicanos mortos na África do Sul. Esses não poderão mais, de peito aberto, repudiar a xenofobia. Esses não regressarão ao seu país, como muitos seus compatriotas estão sendo obrigados a fazer neste momento. Eles não poderão responder ao rei zulu, dizendo sobre os motivos pelos quais escolheram a nação vizinha para viver. Quem sabe até o tenham feito pela esperança veiculada por Nelson Mandela.

Sinto-me disperso,

anterior a fronteiras,

humildemente vos peço

que me perdoeis.

Muitos não voltaram, muitos não voltarão. E os que ficam, nós, os sobreviventes, vemo-nos trazer para a cama à noite o medo de multiplicar-se o número dos que não voltam. E, confusos diante de tanta imprecisão, tememos o amanhecer, esse amanhecer / mais noite que a noite.

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