[O Ouvidor Ocidental]
O padre António Vieira tinha o dom de saber ler o futuro no horizonte. E de perceber o presente quando olhava à sua volta. Percebeu, talvez antes do tempo, que os portugueses eram uma nau que viajava pelo mundo, deixando para trás uma faixa de terra pequenina e com poucos recursos. Não era uma maldição: era o destino de quem tem de se adaptar para sobreviver. Em Roma, no século XVII, disse: “Para nascer, Portugal; para morrer, o mundo”. Talvez o destino dos portugueses seja sempre este: navegar à boleia do vento, das marés e da sorte. Encontrar um porto franco onde cruzam a língua, o passado e o sangue. E sobreviver. Ao longo de séculos os portugueses deixaram pegadas nas areias de todo o mundo. Algumas foram apagadas pelo tempo e pela memória. Outras, contudo, ficaram a pairar, guardadas com uma fé quase religiosa. Descobrimo-las aqui e ali: em Goa ou Macau, em Trinidad e Tobago ou no Japão. Ou, por vezes, na escrita. Basta recuperar os livros de Alfred Mendes ou de Rex Shelley. Este descobri-o, há poucos anos, quando por um acaso qualquer do destino, me caiu nas mãos “The Shrimp People”. Li-o como se tivesse defronte um mapa do tesouro. Shelley, cruzamento de ADN português, inglês e malaio, era um profundo conhecedor da cultura japonesa. Mas quis, aos 61 anos, quando escreveu aquele livro deixar uma impressão digital para a posteridade: a da comunidade euroasiática de Singapura de que fazia parte com orgulho.
Os nomes de origem portuguesa navegam pelas páginas. No prólogo de “The Shrimp People”, Shelley evoca o nascimento do primeiro euroasiático, fruto da relação de um marinheiro português com uma mulher malaia nas praias de Malaca. Dali deslocamo-nos para mais perto de presente, cercados por um grupo de euroasiáticos que emigraram de Singapura para Perth, na Austrália. Falam do futuro, mas sentem que numa Austrália onde buscam uma vida melhor se dissolverão sem nada que os distinga. Algo que os leva a recordar quando eram uma comunidade forte em Singapura e na Malásia britânica. Os nomes que respiram o ar do passado sucedem-se: Pinto, Perera, Machado ou Kraal, Cornelius ou Consigliere. Um caldeirão de culturas que sobrevivem a uma série de eventos fulcrais que se iniciam com a ocupação japonesa durante a II Guerra Mundial.
É a família Rodrigues e o carácter forte e rebelde da filha Bertha que guiam a narrativa. Este mundo de “melting pot”, que sustenta e distingue a comunidade euroasiática, acaba por estar depois presente nos seguintes livros da saga, que depois fui descobrindo: “People of the Pear Tree”, onde o padre católico Furtado, diz a Augustine Perera que podem chamar, quer à Malásia ou a Portugal, a sua “casa”. E onde Joe Perera se defronta com o dilema dos desenraizados como eles: “We have no country. We are only a few and we have no place to call our own”. Ou “Island in the Centre” e “River of Roses”, onde a grandeza épica do passado se cruza com a ambiguidade étnica e um sentimento de contribuição para o país onde estão, no caso Singapura. Em “Island in the Centre”, deparamo-nos com este povo flutuante: “But although I was told when I enquired that it was a Portuguese church, all the prayers were in Latin. At first I tried hard to catch a familiar Portuguese phrase but I couldn’t recognize any sound. They do not say their prayers in Portuguese. Only the padre has a Portuguese accent. After church I met a strange man. He is neither Asian nor European, but has a Portuguese name. He gave me a light and spoke to me”. Lendo Rex Shelley fico defronte de um mundo que não conheço e que, um dia, gostaria de ver com os meus próprios olhos. Antes de desaparecer como uma memória a que não demos atenção enquanto era tempo.
Fernando Sobral é jornalista e escritor. É autor de “O Segredo do Hidroavião” e lançou em 2015 “As jóias de Goa”.