O Amador e a Coisa Amada: considerações acerca da edição do livro “Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: a outra face do Homem”

[Olho Mágico] 

 

Márcia Souto

 

Transforma-se o amador na cousa amada,

Por virtude de muito o imaginar;

Não tenho logo mais que desejar,

Pois em mim tenho a parte desejada.

Luís Vaz de Camões

 

 

Há alguns meses, senti algo estremecer e este estremecimento, compartilhado com meu companheiro de vida e de lida, tornou-se enternecimento.

Confiadas pela historiadora Iva Cabral, tivemos, eu e Filinto Elísio, a grande honra de poder trabalhar, enquanto Editores, as cartas inéditas de Amílcar Cabral à sua primeira esposa, Maria Helena Vilhena Rodrigues. As missivas datam de 1946 a 1960.

Pelo facto, compreende-se o estremecimento e a emoção, bem como a responsabilidade que nos coube em editar tão valiosos textos. Desde o dia da generosa prenda, legada pela primogénita do casal Amílcar Cabral e Maria Helena, dormimos e acordámos envolvidos numa atmosfera de encanto. Já disse Guimarães Rosa que as pessoas não morrem, ficam é encantadas; assim, ressuscitados, senão mesmo transformados pelas cartas escritas por um Amílcar Cabral colega, amigo, namorado e marido de Maria Helena, estas passaram a habitar muito do nosso trabalho, da nossa casa, do nosso corpo, do nosso pensamento.

Do encantamento ao labor. Tratava-se de um livro de 53 missivas de/com amor, em que fomos vendo o desfiar de um belo romance  nascendo, tomando corpo e caminhando firme, não só no tempo, mas no espaço, posto que por terras portuguesas, cabo-verdianas, bissau-guineenses e angolanas.

São cartas em que se vão descortinando aos poucos o Homem por trás do Mito, assim como a Mulher, companheira e camarada, que, por meio do afeto e da confiança, permite-se estar na História. O amor  a mover o mundo… O amor entre duas pessoas a metonimizar o amor pela Humanidade.

Superados os estremecimentos, arraigado o enternecimento, surgiu-nos um pudor estranho (“Mineira é Fogo!”): como tornar públicas letras tão íntimas? Ato contínuo, percebemos que a importância de se compreender Amílcar Cabral, uma das grandes figuras da nossa contemporaneidade e um dos arautos da luta anticolonial e anti-imperialista no século XX, superaria quaisquer sensações de invasão da privacidade. É que muito da intimidade de Amílcar, pelo teor germinal, explica o tanto do “homem do mundo” em que se tornara Cabral. Embora “amilcariano”, como o próprio intitula seu estilo epistolar, não se pode fechar os olhos ao “cabralismo”, já  patente, então, no jovem estudante de engenharia agronómica ou consolidado, mais tarde, no competente engenheiro,  que se compromete, por inteiro e com coerência, à luta pelo direito à autodeterminação e à independência dos povos africanos.

Ao invés dos frios e longínquos anexos, tomámos, na edição do nosso labor, a decisão de destacar os textos fac-similados (razão de ser do livro), acompanhando cada transcrição com o seu respetivo original, de modo a propiciar aos leitores não só o acompanhamento, no calor da leitura, do texto manuscrito (o papel, a letra e os estados de alma, elementos que possam vir a revelar mais acerca do autor no momento da feitura da carta), mas também para facilitar alguma atenção especial que os mesmos possam ter em relação a alguma passagem e facilitar o contato mais próximo com o texto autógrafo.

Nesta edição da Rosa de Porcelana, amadora transformada, consoante a semântica camoniana, creio que operámos a tão barroca e moderna transubstanciação: vivemos, com alegria e consciência, como editores, parceiros, companheiros e amantes, um pouco da vida de Amílcar e Lena, com a certeza de que o mesmo pode acontecer aos muitos leitores que desejamos para esta obra.

 

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