Checkpoint Macau

Sara Figueiredo Costa

Jornalista e crítica literária

 

Um festival literário pode ser muitas coisas, do desfile de egos à sucessão de debates. O Rota das Letras tem sabido ser outra coisa, criando espaços de encontro numa cidade que, sendo pequena, parece imensa, e onde as pessoas se encontram pouco, dizem-me, apesar das oportunidades e da vizinhança plural. Se há local onde os discursos institucionais sobre o encontro de culturas poderiam tornar-se realidade, esse local é Macau. Aqui vivem chineses, macaenses, portugueses, filipinos e gente de tantos outros sítios e por aqui passam diariamente milhares de turistas da China continental, uma massa humana que entope as ruas mais centrais vinda do lado de lá de uma fronteira que não tem nada de simbólico. A ideia com que fico à medida que conheço melhor a cidade, onde estou pela segunda vez, é a de que estas pessoas têm menos pontos de contacto do que se esperaria num território tão pequeno, e ainda menos com o mundo aqui ao lado, logo depois das Portas do Cerco, o país dos dois sistemas onde convivem o capitalismo mais selvagem com o regime de partido único. É neste espaço múltiplo e compartimentado que o Rota das Letras surge como um autêntico buldozzer cultural, capaz de derrubar as fronteiras que podem ser derrubadas, criar pontes sobre as que não podem e colocar em diálogo gente de origens várias fala sobre tudo como quem fala sobre livros.

Não há muitas coisas a que valha tanto a pena dedicar o curto tempo que nos cabe do que a conhecer quem desconhecemos. O facto de a maioria dos não-chineses de Macau não falar o cantonês, ou mesmo o mandarim, faz com que o contacto entre vizinhos da mesma cidade seja escasso e reduzido à comunicação essencial. Por outro lado, o fechamento do regime chinês a quase tudo o que vem de fora faz com que alguns escritores da China continental não tenham grande ideia do que se faz noutras latitudes. Colocar pessoas destes muitos lados de um espaço comum e de outros espaços um pouco mais longínquos no mesmo festival permite encontros impossíveis noutros contextos e permite, sobretudo, que o público de diferentes expressões de Macau não fique reduzido à literatura da sua língua materna, seja ela qual for. Se isto não é um modo de derrubar fronteiras, não sei o que possa ser.

Atravessando a Rua dos Mercadores, entre os becos, os altares e as lojas de tudo o que foi afastado das ruas centrais com a ajuda do ‘desenvolvimento turístico’ e da especulação imobiliária, duvido que os ecos do festival alcancem as varandas gradeadas ou as conversas à porta dos estabelecimentos de comida. A barreira não é apenas linguística, será também social e cultural, arrisco dizer sem querer concluir nada definitivo sobre um lugar que ainda vou conhecendo. A maioria das pessoas que vejo diariamente nestas ruelas trabalha de manhã à noite, vendendo fruta, consertando electrodomésticos, recomendando remédios nas farmácias chinesas. Para que um festival literário as afastasse da sua rotina seria preciso mais do que a dedicação da equipa organizativa e um programa com as qualidades que este tem, e isto será verdade em Macau ou em qualquer parte do mundo. O que o Rota das letras constrói é um caminho que passa pela Rua dos Mercadores como por muitos outros pontos de Macau, do Brasil, de Portugal, da China continental ou dos Estados Unidos da América. E o caminho não é de sentido único, e muito menos policiado. Ouvir os escritores chineses falando do seu quotidiano, do modo como escrevem, do massacre de Tiananmen, saber que esses escritores estão a ser ouvidos por outros e pelo público, é um modo de atravessar parte desse caminho. O mesmo acontece quando um escritor português recusa dissertar sobre uma suposta ideia de portugalidade, preferindo assumir que são as histórias que compõem o nosso adn. Ou quando uma cantora norte-americana se deixa encantar pelo público, mostrando a alma sem pudores de estrelato e dispondo-se a cantar muito para lá das horas combinadas. Foi assim que Sheng Keyi, Afonso Cruz e Cat Power, três dos convidados do Rota das Letras, descobriram o caminho que passa na Rua dos Mercadores e se espalha em artérias sem fim, muito para além de regiões administrativas especiais, países de portas fechadas, continentes separados pelos riscos do planisfério que nunca serviram para mais do que entreter os crédulos na possibilidade de arrumar o mundo. Caminhar com eles entre bancas de sopa de fitas e tipografias chinesas é a melhor maneira de ignorar que o festival literário de Macau só volta para o ano.

 

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Pesadelo depois das aulas

 

Iris Lei

 

“Se há professores no paraíso, prefiro não ir para lá”, escreve a estudante de 13 anos, Zhu Xiani. A jovem publicou recentemente alguns dos seus poemas, dizendo ao mundo que os estudantes precisam de mais do que incessantes trabalhos de casa, explicações depois das aulas, actividades extra-curriculares e sessões de preparação para as olimpíadas internacionais da matemática, ou qualquer outro tipo de competição.

A escola não foi sempre sinónimo de stress. A escola primária de Zhu era agradável, garantia-lhe nove horas de sono e poucos trabalhos de casa. Tudo se alterou quando a sua família se mudou de Xinjiang, uma região autónoma no noroeste do país, para Cantão. Até a sua mãe, editora de uma revista sobre educação, deixou o trabalho para se concentrar nos estudos da sua única filha. A mãe de Zhu proibiu-a de escrever poemas, já que a poesia não é alvo de avaliação na escola e não a vai ajudar a entrar num liceu de topo.

A vida escolar de Zhu Xiani faz lembrar uma fita de Mobius, por mais voltas que se dê só tem um lado, como descreve um recente artigo do Southern Weekly: “Estudo – resultados medíocres – mãe nervosa, pressão da escola – filha zangada, escreve poemas sobre querer suicidar-se – pais confortam-na – estudo”. Tudo se repete.

As suas opções são entre oito páginas de testes de física, química e matemática, 18 páginas de testes de inglês e uma dose de cópia de todo o vocabulário ensinado no segundo semestre. Isso, ou desistir.

Zhu Xiani é apenas uma entre os 47 milhões de estudantes do secundário que mais cedo ou mais tarde vão enfrentar o Zhongkao, o teste no final do liceu, antes do Gaokao, o exame nacional de acesso à universidade.

Com o crescente ênfase na excelência académica, as crianças têm de conseguir o máximo de certificados que possam, aprender o máximo de línguas estrangeiras, frequentar o máximo de aulas e, mais importante que tudo, ser as melhores na sua turma. É sobre isto que os pais falam quando se encontram com os filhos.

Tenho a sorte de ter crescido numa época e numa família que não me pressionou para frequentar actividades extra-curriculares ou explicações. A minha prima termina habitualmente as explicações às 20h e faz ainda uma revisão com os pais depois do jantar. Já dei aulas de inglês a crianças de três anos aos sábados à tarde que chegavam a chorar porque ainda tinham aulas de cálculo a seguir.

Tenham calma, pais! A competição no território não é tão intensa como na China Continental, onde há 7.2 milhões de novos licenciados todos os anos. Não vale a pena sacrificar tempo de brincadeira por mais certificados ou competitividade. Os vossos filhos vão certamente ser contratados desde que sejam residentes de Macau. Não é um certificado de inglês, boa gramática e capacidade de cálculo que os vai fazer destacar-se.

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É a economia?

Maria Caetano

 

Já nos habituámos, contra vontade, a que a gestão da coisa pública seja decidida entre uns quantos particulares. O que é relativa novidade, na fase actual, é que os poderes públicos queiram entregar-se aos negócios do sector privado.

Por força de umas quantas concessões públicas entregues a particulares que correram bastante mal – por inépcia pública e incumprimento da lei pela própria Administração, segundo foi feito saber por órgãos independentes do sector judiciário –, temos agora que o Governo, quiçá movido por um certo discurso sobre talentos e empreendedorismo, quer dedicar-se à gestão empresarial. Num caso, tomando o comando da falida Reolian nos transportes públicos, e noutro lançando uma companhia para distribuição de sinais televisivos.

Estão aqui dois grandes novelos de negócios, a cuja falência ou fracasso assistimos sem perceber completamente porquê. E, enquanto se perde o fio à meada e à responsabilidade, fica difícil questionar a legitimidade ou competência para o Governo se imiscuir nos negócios. Paradoxalmente, achámos que estaria fora deles como o diabo da cruz, em resultado dos tão bem aceites princípios de não-intervenção no mercado e porque, alto lá…, não se estava aqui a levar a cabo a liberalização dos monopólios?

Desconstruir estes dois problemas e ver as suas partes e a lógica em que engrenam não parece nada fácil. Por um lado, há as chamadas questões “históricas” herdadas, que toldam tudo a nascente e desresponsabilizam o suficiente todos os intervenientes. Depois, há a baralhação administrativa dos “vícios” e das “ilegalidades”, os processos judiciais, e a discricionariedade de decisões que nunca foram muito bem explicadas. Há ainda a força de alguma “opinião pública” que impele os dirigentes a fazerem promessas e cedências a uns e a outros, e a pôr a oferta dos serviços à frente da lei. Por fim, há ainda a alegada incapacidade de sobrevivência autónoma destes negócios, que reivindicam apoios a todo o instante, e a má vontade de um utente pagante perante a afluência dos cofres públicos.

Estão reunidas as condições para muitos descalabros. Mas por que carga de água há-de a Administração meter-se onde não é chamada em questões que, sendo importantes, não são tão urgentes ou essenciais, quando ao mesmo tempo alega questões de princípio para não mexer no mercado de habitação e do arrendamento? Ou trata-se aqui, como no discurso empresarial, de uma questão de incentivo e de perspectiva de ganhos?

A verdade é que se o Governo foi incompetente na gestão administrativa dos processos de concessão não é de esperar que seja mais capaz na gestão de negócios. Caso contrário, recomenda-se que os decisores políticos abandonem a coisa pública e se entreguem apenas ao privado.

Pior que tudo, ao entrar nesta lógica de privado, o Governo acha que pode agir como um, sem prestar contas a ninguém – acha que tem segredos de negócio. E, eventualmente ainda pior, estas soluções provisórias em que a Administração se assume como socorrista das empresas que feriu de morte por incompetência arriscam ser definitivas, numa mistura de laxismo e conveniência de costume.

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O que faremos quando Taiwan arder?

Inês Santinhos Gonçalves

É só com o devido distanciamento que muitas vezes entendemos quando se fez história e quem soube ficar do lado certo. Com a imensidão de coisas que não sei e que não compreendo na totalidade, olho para o que se passa em Taiwan hoje e penso se estarei a recordar estes momentos quando, daqui a alguns anos, houver realmente uma só China, sem fronteiras nem diferenças ou réstia de autonomia.

Quando, na semana passada, procurei estudantes de Macau a viver na ilha, buscava alguém que me pudesse contar o que se estava a passar, que me fizesse um relato dos protestos com os olhos de quem vem de uma terra onde a harmonia é lei. Não esperava que tantos alunos de Macau se tivessem juntado aos protestos, soubessem tão bem o que se estava a passar, e muito menos que viessem afirmar, sem margem para rodeios, que não queriam ver Taiwan tornar-se Macau.

Os protestos em Taiwan têm um alvo muito concreto e uma reivindicação clara: a suspensão ou revisão (dependendo das facções) do pacto comercial com a China. Muito provavelmente, este acordo terá um impacto brutal na ilha. Este tem sido o inteligente método de Pequim, a conquista pela via económica. Ninguém será hoje ingénuo ao ponto de acreditar que se trata apenas de abrir a ilha ao investimento chinês – Taiwan é demasiado frágil para impedir que dos bolsos fundos dos magnatas não saiam também ditames sobre o modo de vida dos taiwaneses. Que livros poderão ser traduzidos quando as empresas de tradução estiverem nas mãos de investidores do Continente? Aceitam-se passagens sobre a independência do território? Que filmes serão feitos? O dinheiro, e com ele a quantidade de pessoas que vão chegar à ilha, pode sobrepor-se à força da lei. Citando o jornalista Michael Cole, “Pequim espera ver este pacto adoptado o mais rapidamente possível para que o Governo possa seguir para assuntos mais relevantes como as conversações sobre o ‘acordo de paz’”.

O que é que os jovens de Macau têm a dizer? Que Taiwan é um espaço de diferença e liberdade que querem proteger. “Realmente não quero que Taiwan se torne Macau. Talvez a China Continental esteja a desenvolver a nossa economia, mas ao mesmo tempo está a diminuir a nossa qualidade de vida. As pessoas têm de dar voz à luta de Taiwan”, disse uma estudante que se juntou aos protestos.

O debate sobre a integração e a aproximação de Macau à China Continental é complexo e delicado e não tentarei reduzi-lo a chavões. Mas uma coisa é certa: a juventude de Macau não é tão amorfa e desinteressada como constantemente nos fazem crer. Com salários consideravelmente mais baixos que os de Macau, Taiwan continua a atrair milhares de estudantes de cá e a abrir-lhes os horizontes. Não será coincidência que a maioria dos jovens locais que se destacam tenha estudado em Taiwan. Devíamos agradecer ao Governo de Taipé por estar a dar-lhes a educação cívica que por cá não recebem.

Afinal, não conta apenas o dinheiro. Afinal, os jovens de Macau também procuram um lugar onde se possam expressar, crescer e manifestar as suas opiniões – e mostram-se dispostos a lutar pela preservação desse espaço, mesmo pondo em risco a sua integridade física. Serão, possivelmente, uma minoria. Mas não é por isso que nos devem deixar menos orgulhosos.

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Estratégias Sin Fong

Iris Lei

A insurreição do Sin Fong Garden é matéria para reflexão, desde o “não saímos daqui enquanto o Chefe do Executivo não parecer” até à retirada do local – ocupado pelos proprietários durante mais de 30 horas – pouco depois da visita do porta-voz do Governo.

Admiro-lhes a coragem, depois de terem estado um ano e meio longe de casa, de mostrarem à cidade que estão determinados em pedir ao Executivo para resolver uma questão complexa e de recusarem o convite para um encontro na sede do Governo. Infelizmente, o protesto (raro) terminou e os manifestantes aperceberam-se de que o Chefe do Executivo nunca iria deslocar-se ao Sin Fong, por motivos de segurança e para evitar impacto no trânsito.

Recorde-se que o Chefe do Executivo foi até Coloane e Taipa no mês passado, antes de anunciar a intenção de avançar para um segundo mandato e deslocar-se a Pequim, e descreveu as visitas como “parte do trabalho”. Claro que o edifício, que não tem condições de habitabilidade, é um sítio bastante arriscado para visitar, comparando com as lojas de marisco fresco em Coloane e uma papelaria na Taipa – já para não falar na recusa em ter um encontro com dezenas de manifestantes agitados.

Mas não interessa, o Governo vai ter de resolver o problema de qualquer maneira, seja através de medidas “duras” ou “suaves”: organizando uma conferência de imprensa, anunciando a publicação das actas dos encontros, marcando uma data para apresentar o relatório que vai apurar quem é o responsável pelo estado do edifício, e oferecendo 80 habitações públicas. Não só. O pessoal do Instituto de Acção Social foi “ajudar e consultar” os manifestantes antes da chegada do porta-voz. O destacado e eloquente dirigente apertou a mão a cada um dos manifestantes e assumiu o risco de estar perto de um edifício em risco de colapsar, por alguns minutos.

A terminar a manifestação, uma representante dos proprietários explicou que a intenção não era causar inconveniência à população e que as pessoas estavam a já a queixar-se das alterações nos trajectos dos autocarros. Outra razão, os manifestantes foram informados de que a polícia iria obrigá-los a abandonar o local ao final da noite. Por cinco vezes, a capacidade de dissuasão da polícia não demoveu os manifestantes, mas um rumor sim.

O Sin Fong Garden não revela apenas os problemas do sector de construção no território, mas mostra também as técnicas de relações públicas do Governo, que poderia fazer um intercâmbio com o governo taiwanês.

 

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Michelle Obama na China e Xi Jinping na Europa

[Um quê de quoi]

 

Cláudia Aranda

Michelle Obama andou a lançar pedras no charco e a fazer franzir sobrolhos em Pequim, no mesmo dia em que o presidente chinês Xi Jinping chegava à Europa para uma visita oficial de 10 dias. Quase que apetece dizer “patrão fora dia santo na loja”.

Xi Jinping está em missão de consolidação de negócios com o principal parceiro económico da China Continental, a União Europeia. Já jantou com a monarquia holandesa, vai a Bruxelas apertar a mão a Durão Barroso, vai a Haia encontrar-se com o presidente norte-americano Barack Obama e outros líderes para a cimeira sobre segurança nuclear, e deverá visitar as economias fortes da Europa: a Alemanha, o país da Porsche e do Grupo Daimler, que detém a Mercedes-Benz, e a França, berço da marca de luxo Chanel e do vinho Château Lafite. Tudo empresas que dependem bastante do sucesso da China para sobreviverem.

Na Europa, como no resto do mundo, prega-se o discurso desesperado do crescimento contínuo que, para acontecer, necessita da China e da garantia de uma segurança global.

O mundo quer a China, mas a verdadeira abertura da China ao mundo ainda está para acontecer.

A organização Repórteres Sem Fronteiras classifica a China como “Inimiga da Internet”. O país tem um dos sistemas de censura e de vigilância online mais sofisticados do mundo, nomeadamente, para impedir riscos de contágio de movimentos de protesto como a Primavera Árabe ou o Occupy Wall Street. Há blogues encerrados, palavras–chave banidas e sabe-se de prisões de jornalistas, blogueiros e internautas.

O discurso de Michelle Obama sobre a liberdade de expressão e a importância da Internet no acesso à informação que aconteceu sábado no Centro Stanford da Universidade de Pequim durou apenas 15 minutos, mas foi o suficiente para dar pertinência a uma viagem oficial inicialmente descrita como “não-política”.

Os comentários da primeira dama dos Estados Unidos da América não terão tido eco na imprensa oficial nem no Facebook nem no Twitter, que estão banidos e bloqueados na China Continental. As observações da mulher de Barack Obama terão, no entanto, circulado nas redes sociais chinesas como o Weibo e o Weixin.

Michelle Obama pode agora continuar linda e vaporosa a desfilar modelos Carolina Herrera e a promover as últimas tendências da moda americana para esta Primavera-Verão. Pode dedicar-se a cumprir com a agenda oficial e ir com a mãe e as filhas visitar os pandas, ver os guerreiros de terracota de Xian, subir à muralha da China e regressar tranquila à Casa Branca. Michelle Obama já cumpriu a sua missão.

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Balas e poemas

Sónia Nunes

Nada além de uma curiosidade pouco saudável me fez ficar no teatro D. Pedro V para assistir a uma conferência do Rota das Letras sobre “escrever no feminino”. Entrou para os episódios em que o meu vício pelo desnecessário foi a minha virtude: a conversa sobre a mulher e a literatura ficou rapidamente arrumada. As duas escritoras convidadas, Sheng Keyi e Cham Im Va, declararam com uma elegância que não sou capaz de reproduzir que faz tanto sentido perguntar se o livro é o que é por ter sido escrito por uma mulher como tentar saber se a cor do cabelo tem influência a escrita. Apesar das tentativas da moderadora, Agnes Lam, de manter as intervenções na ideia de textos dominados por paixões, maridos, filhos e o papel do sexo na hierarquia familiar, as duas escritoras falaram do que queriam falar: homossexualidade e Tiananmen.

Cham Im Va resumiu um conto sobre uma cidade onde a heterossexualidade é ilegal e o preceito está em casar a filha com uma boa mulher; Sheng Keyi serviu-se do plural majestático para dizer que estamos a lutar pela liberdade desde 4 de Junho de 1989. As insistências da moderadora em distrair a assistência destes temas fez com que os conceitos de repressão da mulher e de sociedade masculina fossem expostos como a mistura entre poder, dinheiro e um sistema (político, social e económico) que não é justo.

Estava dada a dica para um debate sobre a mudança de um modelo socialista para o chamado capitalismo de características chinesas. Mas as estudantes que assistiam à conferência, menos generosas que as duas escritoras, mostraram mais interesse em saber se era bom ou mau aceitar beber cafés com rapazes na Europa ou se a Educação não podia ser a via para a emancipação e igualdade, na repetição de um dos grandes chavões das associações pró-Pequim quando se querem furtar a uma análise aos desequilíbrios do sistema.

Não sei em que pensaram quando Sheng Keyi fez saber que, se estivesse lá, teria ido para a Praça. Não sei se viram o massacre, os estudantes, o homem do tanque, os poemas-documentário, a grandeza de uma pessoa que é capaz de dizer a liberdade ou a morte. Escolheram por enquanto não saber mais sobre o que aconteceu no 4 de Junho; não saber mais sobre a ‘verdade’ que Sheng Keyi procura quando diz que só podia ter um poeta a olhar para Tiananmen porque um poeta é sempre idealista.

Também não sei foram ler poemas quando saíram do teatro D. Pedro V ou se começaram a acreditar que um indivíduo que não expressa as suas opiniões é um homem morto – “silêncio mortal”, foi a expressão usada por Sheng Keyi, que também disse que a poesia, ainda que poderosa, não é tão rápida quanto uma bala. Sei que escolheram estar numa conferência sobre livros num sábado à tarde e que vão continuar a ler Sheng Keyi e Cham Im Va. Talvez agora de outra maneira porque há vezes em que os encontros com escritores podem ter o efeito de um pequeno poema em prosa. 

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Remédio para a astenia primaveril

Maria Caetano

 

O ciclo escolar da infância de muitos dos nossos leitores não será alheio à rotina das estações: férias de Verão, Natal, Primavera marcavam o compasso da entrada em novos trimestres e nas folhas pautadas da composição. Neste dia, a bengala da composição infantil apoiava-se na arribação das andorinhas e no regresso aos ninhos, no florido dos jardins e no transporte do pólen pelas laboriosas abelhas, que dão o mel. O recreio era de florestação e o fim de dia marcado com a leitura de poesia. Nos cabelos, por trás das orelhas, ficavam as azedas chupadas e presas pelas bandoletes. Os collants de lã das raparigas já picavam ao sol, desconfortáveis, e os kispos eram deixados às bolas de naftalina nos armários.

A composição pueril que celebra a árvore, a Primavera, a poesia, em Março, é um dos rituais mais entusiasmantes e voltamos a ele, como prelúdio, por acharmos que isto, no fundo, anda tudo ligado. O espaço e as letras, o sol e o ânimo, a sombra de uma árvore e o recolhimento de um livro, a chegada dos pássaros e os cânticos que a celebram, os olhos das flores abertos pela primeira vez e a vontade de os saudar de alguma maneira – os lugares e o que são condicionam as nossas palavras.

No primeiro dia de Primavera, hoje, andamos, talvez, tolhidos como nos outros nos passeios, amassados como nos outros no elevador, aflitos como nos outros a picar o ponto das agendas, surdos como nos outros entre os arranques motorizados e as brocas no reboco, com os olhos encavalitados nas coisas que já não vemos, distantes de tão próximos, exauridos dos ecrãs, com os brônquios afogados nas pequenas partículas e na humidade.

Com sorte, há um banho salvador de chuva que nos separa pelas pingas e nos desperta, molhados, para o que temos ao redor. E uma palavra, escrita ou falada, que nos intrigue ou nos sossegue, que nos suspenda desta imersão excessiva na neblina, escorrendo o torpor pelo ralo, a malvada da astenia.

O festival literário de Macau, organizado por este jornal, é uma dessas condições ambientais propiciadoras de mais beleza ou reflexão – coisas que não são entre si indiferentes. Não dá para aqui falarmos sem evidente compromisso de interesses com o que este momento representa para esta casa, mas a abertura deste espaço – que é o tempo de uma semana, vários locais da cidade e vozes fora do costume disponíveis para se encontrarem connosco – é aquilo a que gostamos por aqui de chamar de um belo desopilanço, que é muito de aproveitar. Faça o favor de vir connosco ao festival.

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Saudades de Goa

Inês Santinhos Gonçalves

Há mais de um mês que cheguei de Goa. Não sendo fácil esquecer a intensidade das cores, da luz, dos sabores e das pessoas, fiz por me concentrar na realidade – Macau continuava aqui, o orçamento do metro já derrapava e o La Scala estava perto do fim. De nada me valiam os suspiros nostálgicos.

Mas ontem fraquejei. Talvez tenha sido do sol que tende a despertar os sentidos. Pareceu-me ver tudo claramente: o desenvolvimento desenfreado estava em todo o lado. Agressivo, ruidoso, intrusivo. Brocas e martelos, escavadoras, tinta, cola, cimento.

O que estão a fazer ao centro da cidade? Não há canto de onde não se oiça o barulho de obras. Onde ontem estava um prédio, hoje há um buraco; onde havia uma livraria, abrirá, certamente, uma ourivesaria – em breve, parece-me, substituiremos a alimentação do corpo e do espírito por peças de adorno caras.

Entrei na Rua Camilo Pessanha, casa deste jornal, e quis mandar embora todos os empreiteiros que por aqui circulam – não porque não ache que são necessárias reparações, mas porque receio o seu resultado. Quis fechar a rua, torná-la um protectorado, uma região especial administrativa com alto grau de autonomia. Um terceiro sistema dentro do segundo que pertence ao primeiro.

Tive saudades de Goa. Da tranquilidade que é saber que a história permanece. Do bonito que é olhar para uma cidade e estudar-lhe as rugas. A antiguidade é um posto e Goa envelhece bem. Macau está cheia de cirurgias plásticas – será que ninguém lhe disse que já era bonita?

Há dias em que admiro este dinamismo chinês. A energia de quem vê apenas o futuro e não se deixa arrastar por passadismos. Mas eu sou portuguesa, talvez a nostalgia me esteja no sangue. Talvez seja defeito de fabrico, sentimentalismo barato, querer olhar para um edifício, para uma rua, para uma loja, e imaginar gente que ali esteve antes de mim, muito antes de mim, gente que sabia coisas que eu não sei. Se estivermos constantemente a apagar o que foi escrito, como vamos aprender alguma coisa? Como vamos saber quem somos? Como pode Macau manter a sua identidade, raspando a tinta das paredes e demolindo o que tem pó?

Sou grande adepta na Lei de Lavoisier: nada se perde, tudo se transforma. Penso em Goa, olho para Macau, e temo bem que nesta transformação tudo se perca.

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O ritmo do desenvolvimento

Iris Lei

É um cliché começar uma discussão sobre o aumento incessante das rendas em Macau porque toda a gente se identifica com isto: na habitação, lojas, parques de estacionamento, e estou certa de que podemos ir mais longe. O aumento súbito das rendas ajuda-nos a “compreender” com maior facilidade as mudanças frequentes nas lojas. Mas, ainda assim, fico surpreendida com o facto de, no meu bairro, uma ter fechado, outra estar prestes a fechar e uma terceira ter mudado de negócio. Apercebi-me de tudo isto depois de ter regressado a Macau após uma viagem de 13 dias.

É um espaço grande. Nunca sei o quão grande é porque está sempre cheio com todo o tipo de coisas. É o supermercado que vende os produtos mais baratos na zona, disse o Conselho dos Consumidores. É o supermercado onde os trabalhadores nos cumprimentam ainda que só passemos à porta. É o meu supermercado, no sentido que estou familiarizada com todo o tipo de produtos, o que tem e os outros não têm. Os trabalhadores dizem-me que o fecho não está directamente relacionado com a renda, é porque vender a loja é mais lucrativo do que vender “produtos baratos”. Seja porque razão for, o supermercado deixou de funcionar desde 1 de Março.

Lembro-me que, das vezes em que precisei de comprar decorações festivas ou máscaras à última hora, aquela loja foi a minha primeira escolha. Lembro-me também, claro, de uma tarde de ócio que passei lá, deslumbrada com aqueles produtos únicos, a mobília e adereços que dificilmente podem ser encontrados na cidade – já para não falar daquela agradável essência aromática espalhada pela loja. Os trabalhadores dizem que o aumento da renda é uma das razões para o fecho, terminando este mês uma relação de 12 anos com Macau.

A terceira loja é o caso mais recente, vende snacks e bolas de peixe desde o final do ano passado. Já não reconheço nenhuma cara. Começaram por vender marisco de luxo, num espaço visível tão grande quanto um cubículo de uma casa-de-banho decente num casino.

Sou uma residente antiga da Taipa que gosta muito dos tempos anteriores ao seu “desenvolvimento”. Naqueles dias, quando havia apenas lojas de Macau, conhecíamos quase todos os donos e eles também conheciam os nossos pais. Hoje, estas lojas estão a ser substituídas por cadeias de grande escala, que é possível encontrar em qualquer outro lado do mundo. Começo a adaptar-me à forma como os negócios mudam um bairro, mas mudanças que acontecem em duas semanas estão fora do meu alcance. A última coisa que quero é que duas cadeias de restaurantes ocupem os poucos espaços grandes disponíveis nesta área.

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