Sara Figueiredo Costa
Jornalista e crítica literária
Um festival literário pode ser muitas coisas, do desfile de egos à sucessão de debates. O Rota das Letras tem sabido ser outra coisa, criando espaços de encontro numa cidade que, sendo pequena, parece imensa, e onde as pessoas se encontram pouco, dizem-me, apesar das oportunidades e da vizinhança plural. Se há local onde os discursos institucionais sobre o encontro de culturas poderiam tornar-se realidade, esse local é Macau. Aqui vivem chineses, macaenses, portugueses, filipinos e gente de tantos outros sítios e por aqui passam diariamente milhares de turistas da China continental, uma massa humana que entope as ruas mais centrais vinda do lado de lá de uma fronteira que não tem nada de simbólico. A ideia com que fico à medida que conheço melhor a cidade, onde estou pela segunda vez, é a de que estas pessoas têm menos pontos de contacto do que se esperaria num território tão pequeno, e ainda menos com o mundo aqui ao lado, logo depois das Portas do Cerco, o país dos dois sistemas onde convivem o capitalismo mais selvagem com o regime de partido único. É neste espaço múltiplo e compartimentado que o Rota das Letras surge como um autêntico buldozzer cultural, capaz de derrubar as fronteiras que podem ser derrubadas, criar pontes sobre as que não podem e colocar em diálogo gente de origens várias fala sobre tudo como quem fala sobre livros.
Não há muitas coisas a que valha tanto a pena dedicar o curto tempo que nos cabe do que a conhecer quem desconhecemos. O facto de a maioria dos não-chineses de Macau não falar o cantonês, ou mesmo o mandarim, faz com que o contacto entre vizinhos da mesma cidade seja escasso e reduzido à comunicação essencial. Por outro lado, o fechamento do regime chinês a quase tudo o que vem de fora faz com que alguns escritores da China continental não tenham grande ideia do que se faz noutras latitudes. Colocar pessoas destes muitos lados de um espaço comum e de outros espaços um pouco mais longínquos no mesmo festival permite encontros impossíveis noutros contextos e permite, sobretudo, que o público de diferentes expressões de Macau não fique reduzido à literatura da sua língua materna, seja ela qual for. Se isto não é um modo de derrubar fronteiras, não sei o que possa ser.
Atravessando a Rua dos Mercadores, entre os becos, os altares e as lojas de tudo o que foi afastado das ruas centrais com a ajuda do ‘desenvolvimento turístico’ e da especulação imobiliária, duvido que os ecos do festival alcancem as varandas gradeadas ou as conversas à porta dos estabelecimentos de comida. A barreira não é apenas linguística, será também social e cultural, arrisco dizer sem querer concluir nada definitivo sobre um lugar que ainda vou conhecendo. A maioria das pessoas que vejo diariamente nestas ruelas trabalha de manhã à noite, vendendo fruta, consertando electrodomésticos, recomendando remédios nas farmácias chinesas. Para que um festival literário as afastasse da sua rotina seria preciso mais do que a dedicação da equipa organizativa e um programa com as qualidades que este tem, e isto será verdade em Macau ou em qualquer parte do mundo. O que o Rota das letras constrói é um caminho que passa pela Rua dos Mercadores como por muitos outros pontos de Macau, do Brasil, de Portugal, da China continental ou dos Estados Unidos da América. E o caminho não é de sentido único, e muito menos policiado. Ouvir os escritores chineses falando do seu quotidiano, do modo como escrevem, do massacre de Tiananmen, saber que esses escritores estão a ser ouvidos por outros e pelo público, é um modo de atravessar parte desse caminho. O mesmo acontece quando um escritor português recusa dissertar sobre uma suposta ideia de portugalidade, preferindo assumir que são as histórias que compõem o nosso adn. Ou quando uma cantora norte-americana se deixa encantar pelo público, mostrando a alma sem pudores de estrelato e dispondo-se a cantar muito para lá das horas combinadas. Foi assim que Sheng Keyi, Afonso Cruz e Cat Power, três dos convidados do Rota das Letras, descobriram o caminho que passa na Rua dos Mercadores e se espalha em artérias sem fim, muito para além de regiões administrativas especiais, países de portas fechadas, continentes separados pelos riscos do planisfério que nunca serviram para mais do que entreter os crédulos na possibilidade de arrumar o mundo. Caminhar com eles entre bancas de sopa de fitas e tipografias chinesas é a melhor maneira de ignorar que o festival literário de Macau só volta para o ano.