ESSE MUNDO… TÃO IGNORADO DOS AFECTOS

 

O Evangelho deste Décimo Terceiro Domingo do Ano Litúrgico descreve-nos duas situações de pessoas em grande aflição, onde, mais uma vez, Jesus se apresenta como ‘Caminho’ de Liberdade,  Esperança e Vida.

A primeira narra-nos o caso duma «filha». Escutamos o clamor dum pai devastado pela iminência de perder a filha querida: «A minha filha está a morrer».

A segunda apresenta-nos, de maneira discreta, fina e delicada, a narração de «certa mulher que sofria de uma perda de sangue havia doze anos, que sofrera muito nas mãos de vários médicos e gastara todos os seus bens, sem ter obtido qualquer resultado, antes piorava cada vez mais».

Completaria o quadro do meu pensamento acrescentando uma outra situação com que, por diversas vezes, Jesus se deparou e se viu confrontado. Refiro-me àqueles momentos em que uma  «mãe» lhe aparece e, insistentemente, lhe pede um favor. É o caso daquela cananeia com a sua argumentação contundente… Até mereceu um rasgado elogio do próprio Jesus, tal o vigor da sua lógica e da sua fé!

Tudo isto para dizer que as experiências evangélicas de «filha», de  «mulher» e de «mãe» me transportam a uma experiência humana, no meu entender, de importância fundamental para a compreensão do caminho de  maturidade afectiva que todo e qualquer ser humano é chamado a percorrer. Ao mesmo tempo, quando assim me expresso, incluo, sem dúvida nenhuma, a dimensão paralela e complementar do ser masculino, isto é, a experiência de ser  «filho»,  «homem»,  «pai».

No entanto, por mais incrível que pareça, há que reconhecer que essa  realidade, «esse mundo dos afectos», continua a ser muito pouco conhecido e falado. Pior ainda, muito pouco entendido na prática. A dinâmica afectiva íntima tem um percurso próprio a ser imprescindivelmente feito. Ninguém lhe pode escapar. Caso contrário, as insuficiências, tarde ou cedo, aparecem e as consequências desastrosas serão mais que muitas. Umas revelando-se no foro interno da pessoa. Outras acabam por ser, dramaticamente, expostas em público.

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O coração humano, seja de homem ou de mulher, terá de enfrentar sempre, enquanto viver neste mundo, um caminho de amadurecimento a ser percorrido. Há fases a serem ultrapassadas. Passos a serem dados. Estados a serem experimentados. Enfim, uma Verdade sobre o Amor a ser compreendida no mais profundo do seu ser.

Ser «filha», ser «filho, na estrutura intrínseca da natureza humana, implica que esse ser humano aspira e deseja sentir-se reconhecido, amado e seguro e protegido como «filho», aquele que na sua situação necessita naturalmente de  ‘receber Amor’. No entanto, num caminho de evolução e amadurecimento no Amor, aquele que é «homem» ou «mulher» cresce e entra num outro nível, e adquire no Amor a capacidade ‘não só de receber, mas também de dar Amor’. Para, finalmente, como «mãe» ou «pai» adquirir a inclinação e o gosto na via do Amor de ‘Amar, dar Amor, sem estar à espera de receber Amor’.

‘Receber Amor’, como exigência natural de «filho» ou «filha» que somos ; ser capaz de ‘Dar e Receber Amor’, como «homem» ou «mulher» adultos; e, por fim, ‘Amar’, pura e simplesmente, sem estar à espera de receber em troca, como verdadeiros pais, «pai» e «mãe»,  são três estádios diferentes, necessários de serem vividos para se conseguir chegar ao Amor verdadeiro, ao Amor sem estar à espera de recompensa, ao Amor capaz de amar até os inimigos e de dar a vida pela pessoa amada.

Não acreditar na diferença estrutural e na sua essência constitutiva destes três níveis da afectividade humana é uma pena. Mais lamentável, porém,  é quando se evita fazer essa caminhada tão necessária a todos, homens ou mulheres, casados ou solteiros, padres ou madres, com autoridade ou sem ela, para poder alcançar a maturidade no mundo afectivo.

A crise dos casamentos, com a sua avalanche de imaturidades,  duplicidades e cumplicidades, e de divórcios; a questão da ausência das vocações ao sacerdócio ou à vida religiosa; os escândalos de pedofilia, os abusos sexuais, as violações silenciosas e manipuladas, o tráfico humano, sobretudo de crianças e mulheres, são problemas dolorosos e terríveis da sociedade actual que estão, muitíssimas vezes, intimamente ligados a realidades afectivas de infância ainda em chaga ou mal resolvidas ou soterradas por pavores horrendos, espiritualismos enganadores e vergonhas morais e sociais.

As cadeias e os grilhões afectivos são inúmeros. Por isso,  lá diz o Senhor e Mestre: «Felizes os puros de coração…» Os de coração integrado, livre e transparente.

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Ainda um pequeno apontamento. Sempre me chama a atenção o episódio do encontro de Jesus com esta mulher a sofrer duma hemorragia. Ela a quem eu apelido de ‘tímida’. Mas, Ele é, de facto, um mestre, um pedagogo: «Quem tocou nas minhas vestes?»

A cena passa-se toda no segredo do coração da mulher e no escondimento por entre o turbilhão da multidão, onde muitos se acotovelam e atropelam. Ele,  faz aparecer, de modo firme e cristalino, a distinção entre timidez e discrição e humildade. O Senhor condu-la, primeiro, a dizer a Verdade e a reconhecer o dom de Deus, e então, depois, discretamente, deixa-a partir. Que fique claro, a timidez inclui sempre medo e falta de confiança em si mesmo. Assim,  não é de Deus. O humilde, confiante em Deus, tanto pode ser o primeiro como último. Ele avança ou retira-se, segundo a voz de Deus no seu coração…

 

Luís Sequeira, Sacerdote e antigo Superior da Companhia de Jesus em Macau. Escreve neste espaço às sextas-feiras

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