A reunião magna dos comunistas chineses teve lugar em Pequim na semana transacta sob a égide de duas interrogações: estaria Xi Jinping em condições de concentrar o seu político interno em termos que não se viam desde Mao Zedong? Em caso de resposta positiva, quem seria o seu próximo sucessor à frente do Partido e do Estado?
As respostas que saem do Congresso, que colocou efectivamente fim ao primeiro mandato de Xi Jinping, são mistas.
Sim, Xi Jinping é o inquestionável líder da China – o “core leader”, como se deixou designar – mas o seu poder, sendo majestático não é, ao contrário do que muitos observadores adiantavam, absoluto. Dito de outra forma: não há ninguém no partido que se ache em condições de desafiar a sua liderança. Mas Xi Jinping não é – nem será – um líder que incentiva uma obediência cega, como Mao conseguiu em partes significativas dos seus mandatos como secretário-geral e “paramount leader”. Xi não colhe a unanimidade.
Isso não o transforma, porém, num líder fraco. É o líder para o actual tempo da China. Nem mais nem menos.
A segunda resposta é que Xi Jinping não nomeou o seu sucessor à frente do partido para o substituir quando a regra consuetudinária dos 68 anos recair sobre o seu futuro. Há duas leituras possíveis: ou Xi Jinping não se quis precipitar nessa escolha, com receio de se ludibriar como aconteceu com Mao em relação a Lin Piao; ou os “senior leaders” impuseram-lhe que não o fizesse porque não declinam participar, activamente, nessa escolha. Deixo para o fim, o revelar da minha preferência quando falar do elenco do Comité Permanente do Comité Central e do Politburo.
No ínterim, direi apenas que Xi quis-se imortalizar como líder da China do que chamou “a nova era” e que só se pode entender como a era Xi Jinping. Daí que tenha insistido que o “Pensamento Xi Jinping do Socialismo de características chinesas” ficasse impresso a letras de ouro na constituição do Partido, uma distinção que só aconteceu duas vezes quanto ao Pensamento de Mao Zedong e à Teoria de Deng Xiao Ping. Nenhum dos secretários-gerais que o precederam teve tal distinção e isso revela um aspecto significativo do culto de personalidade que tem estimulado e que acredito se irá intensificar no seu segundo mandato.
Mais do que isso, a Nova Era de Xi Jinping é um desafio àquelas que foram as principais premissas da Era das Reformas de Deng. Vamos ser claros. O XIX Congresso foi o toque de finados da era das reformas e do que ela trouxe de notável à China: um socialismo especial de características chinesas, combinando a propriedade pública com o papel motriz do mercado; a abertura ao exterior possibilitando a captação de investimento directo estrangeiro que foi indispensável à modernização notável da China nas ultimas três décadas; a criação das Zonas Económicas Especiais no sul em contacto com os enclaves capitalistas de Macau e de Hong Kong e com a província “renegada” de Taiwan; o desenvolvimento exponencial das zonas costeiras, percorrendo todo o litoral acima e abaixo de Xangai.
O XIX Congresso foi o toque de finados do contributo de Deng Xiaoping para a história e o sucesso do Partido Comunista Chinês, um partido que soube sobreviver ao ocaso dos partidos comunistas na União Soviética, na Europa de Leste, na Albânia, na Jugoslávia e na Europa Ocidental. Por uma razão elementar: porque ao contrário dos outros partidos a China sob Deng soube baixar o dogmatismo ideológico em favor do pragmatismo do tanto faz que seja cão ou gato desde que cace o rato. Este pragmatismo sobreviveu nos mandatos de Jiang Zemin e Hu Jintao como marca da Nova China Reformista.
Os postulados teóricos da doutrina de Xi Jinping são puro marxismo-leninismo nas suas premissas essenciais. O Partido é todo poderoso. Deixa de fazer sentido a separação entre o Partido e o Estado: tudo é Partido. Tudo são interesses do Partido.
O sector empresarial é só um: o das empresas estatais que devem ser não privatizadas [como o promoveu Zhu Rongji] mas fundidas e alargadas para servir os reais interesses do Partido Comunista. Daí que se assista a uma revisão dos estatutos das SOE’s para fazer depender a assunção de decisões estratégicas do parecer e da opinião dos Comités do Partido envolvidos. Ao mesmo tempo, assiste-se a um alargamento da acção do Estado em relação às empresas privadas: os empresários têm de ser patriotas [diz Xi] e o partido quer que os seus membros sejam recrutados pelas empresas e lhes sejam oferecidos lugares proeminentes.
Mas o “Pensamento Xi Jinping” vai além disso. Determina uma aposta no investimento nas regiões do Oeste e Centro da China em favor do papel pioneiro do litoral. O Partido passa a ser o promotor do Estado de Direito, seja qual for a concepção que os comunistas chineses têm do Estado de Direito. Finalmente a China é um participante activo na vida internacional e ambiciona tornar-se líder em 2050.
Se por alguma forma pudéssemos fazer um flashback com as mudanças importantes que estão previstas para a República Popular da China no segundo mandato de Xi Jinping, é como se estivéssemos a reviver um brejnevismo sem Brejnev em que o poder fulgurante do nacionalismo chinês se impusesse como uma inevitabilidade para uma nova partilha do mundo em dois mundos: o mundo capitalista, decadente e corrupto e o mundo socialista renascido e rejubilitante sob a liderança da República Popular da China.
Como se explica esta inversão do curso da China segundo o elucidativo discurso do líder Xi Jinping? Por três razões essenciais. Xi Jinping é um homem de partido e o único objectivo credível é reforçar o Partido, ajudar a que sobreviva às inúmeras dificuldades que uma situação volátil internacional promove e multiplica. Xi Jinping é filho da Revolução Cultural, é um seu produto e é a sua catarse. Sabe que um regime unipartidário só subsiste se existirem regras políticas claras e cada um desempenhar o seu papel. Pegando na velha analogia de Platão, os guardas devem ser guardas, os trabalhadores e artífices devem ter só esse poder e os administradores serem administradores. É essa a chave de um regime sábio onde a sabedoria prevaleça.
Por isso a única solução para salvaguardar o papel central do partido é uma direcção “hard-liner” do partido, do Estado e da sociedade. Centralismo interno e férrea disciplina partidária. Detenção e perseguição de activistas pró-democracia e advogados defensores de cidadãos envolvidos nesses movimentos. Controlo férreo dos media, da Internet, dos chats e de todas as plataformas que possam possibilitar a difusão de ideias divergentes daquela que passa a ser a doutrina oficial do Partido: um apoio unívoco e inquestionável ao líder que nunca erra.
Em resumo, esperam-nos cinco anos de reforço ainda maior do papel de Xi Jinping como líder incontornável da China, de continuidade da campanha anti-corrupção contra opositores internos, de fortalecimento dos mecanismos de economia socialista e desmontagem dos instrumentos da economia de mercado. Como dizia Maquiavel, o Príncipe iluminado é o que sabe que é melhor ser temido que amado, que faz todo o mal possível primeiro, para depois ter a condescendência de fazer algum bem.
Então se é assim, se Xi Jinping tem um poder inquestionável, porque não nomeou os seus delfins para o Comité Permanente do Politburo? Na verdade quem analisar, com alguma profundidade, os “sete magníficos” do Comité Permanente não pode deixar de se surpreender com o que encontra. Li Keqiang acompanha o líder, mas é um Primeiro-Ministro cada vez mais debilitado pois parte das suas competências têm sido derrogadas em favor de comités ad-hoc designados e dirigidos pelo Presidente do Partido. Li Zhangshu é o homem do Comité Nacional de Segurança que dirigirá, nesta nova fase, todo o aparelho “controlador” do Estado e cuja orientação em termos de facções é desconhecida. Wang Yang, o actual Vice-Primeiro Ministro é um homem de Hu Jintao. Wang Huning, coordenador da Comissão Central para as Reformas é um homem de Jiang Zemin. Zhao Leji, o subdirector do Departamento Central de Disciplina e Inspecção é um incondicional de Xi, indo cumprir o papel que fora o de Wang Qishan. Han Zheng, o ex-secretário do Partido em Xangai é um homem próximo de Jiang Zemin. Quer dizer, em seis membros Xi poderá confiar em Li Zhanshu e Zhao Leji. Em certas ocasiões em Li Keqiang.
Todos os badalados candidatos ao Comité Permanente do Politburo – e putativos “delfins” do líder – quedaram-se por um lugar no órgão mais alargado: Yang Xiaodu, um dos pivots da Comissão Central de Disciplina; Chen Quanguo, o secretário do partido em Xinjiang; Chen Min’er, o secretário do partido em Chongqing; Hu Chunhua, o secretário do partido em Guandong; Cai Qi, secretário do partido em Pequim. Todos eles, de alguma forma ficaram pelo caminho.
Qual a explicação? A meu ver só pode ser uma: os líderes “seniores” impuseram a sua vontade em beneficio de homens de transição, deixando para daqui a cinco anos a definição de quem irá substituir Xi Jinping na tríplice posição de secretário-geral, Presidente do Estado e Presidente da Comissão Politico-Militar do Comité Central.
Sinal de fraqueza ou calculismo político? Só o tempo permitirá responder a essa questão.
Os olhos do mundo estão em Xi Jinping. Mas os dos oitenta milhões dos militantes do Partido Comunista Chinês também.
Arnaldo Gonçalves é jurista e professor de Ciência Política e Relações Internacionais. Escreve neste espaço quinzenalmente e, hoje, excepcionalmente à terça-feira.