As consequências do XIX Congresso do PCC

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A reunião magna dos comunistas chineses teve lugar em Pequim na semana transacta sob a égide de duas interrogações: estaria Xi Jinping em condições de concentrar o seu político interno em termos que não se viam desde Mao Zedong? Em caso de resposta positiva, quem seria o seu próximo sucessor à frente do Partido e do Estado?

As respostas que saem do Congresso, que colocou efectivamente fim ao primeiro mandato de Xi Jinping, são mistas.

Sim, Xi Jinping é o inquestionável líder da China – o “core leader”, como se deixou designar – mas o seu poder, sendo majestático não é, ao contrário do que muitos observadores adiantavam, absoluto. Dito de outra forma: não há ninguém no partido que se ache em condições de desafiar a sua liderança. Mas Xi Jinping não é – nem será – um líder que incentiva uma obediência cega, como Mao conseguiu em partes significativas dos seus mandatos como secretário-geral e “paramount leader”. Xi não colhe a unanimidade.

Isso não o transforma, porém, num líder fraco.  É o líder para o actual tempo da China. Nem mais nem menos.

A segunda resposta é que Xi Jinping não nomeou o seu sucessor à frente do partido para o substituir quando a regra consuetudinária dos 68 anos recair sobre o seu futuro. Há duas leituras possíveis: ou Xi Jinping não se quis precipitar nessa escolha, com receio de se ludibriar como aconteceu com Mao em relação a Lin Piao; ou os “senior leaders” impuseram-lhe que não o fizesse porque não declinam participar, activamente, nessa escolha. Deixo para o fim, o revelar da minha preferência quando falar do elenco do Comité Permanente do Comité Central e do Politburo.

No ínterim, direi apenas que Xi quis-se imortalizar como líder da China do que chamou “a nova era” e que só se pode entender como a era Xi Jinping. Daí que tenha insistido que o “Pensamento Xi Jinping do Socialismo de características chinesas” ficasse impresso a letras de ouro na constituição do Partido, uma distinção que só aconteceu duas vezes quanto ao Pensamento de Mao Zedong e à Teoria de Deng Xiao Ping.  Nenhum dos secretários-gerais que o precederam teve tal distinção e isso revela um aspecto significativo do culto de personalidade que tem estimulado e que acredito se irá intensificar no seu segundo mandato.

Mais do que isso, a Nova Era de Xi Jinping é um desafio àquelas que foram as principais premissas da Era das Reformas de Deng. Vamos ser claros. O XIX Congresso foi o toque de finados da era das reformas e do que ela trouxe de notável à China: um socialismo especial de características chinesas, combinando a propriedade pública com o papel motriz do mercado; a abertura ao exterior possibilitando a captação de investimento directo estrangeiro que foi indispensável à modernização notável da China nas ultimas três décadas; a criação das Zonas Económicas Especiais no sul em contacto com os enclaves capitalistas de Macau e de Hong Kong e com a província “renegada” de Taiwan; o desenvolvimento exponencial das zonas costeiras, percorrendo todo o litoral acima e abaixo de Xangai.

O XIX Congresso foi o toque de finados do contributo de Deng Xiaoping para a história e o sucesso do Partido Comunista Chinês, um partido que soube sobreviver ao ocaso dos partidos comunistas na União Soviética, na Europa de Leste, na Albânia, na Jugoslávia e na Europa Ocidental. Por uma razão elementar: porque ao contrário dos outros partidos a China sob Deng soube baixar o dogmatismo ideológico em favor do pragmatismo do tanto faz que seja cão ou gato desde que cace o rato. Este pragmatismo sobreviveu nos mandatos de Jiang Zemin e Hu Jintao como marca da Nova China Reformista.

Os postulados teóricos da doutrina de Xi Jinping são puro marxismo-leninismo nas suas premissas essenciais. O Partido é todo poderoso. Deixa de fazer sentido a separação entre o Partido e o Estado: tudo é Partido. Tudo são interesses do Partido.

O sector empresarial é só um: o das empresas estatais que devem ser não privatizadas [como o promoveu Zhu Rongji] mas fundidas e alargadas para servir os reais interesses do Partido Comunista. Daí que se assista a uma revisão dos estatutos das SOE’s para fazer depender a assunção de decisões estratégicas do parecer e da opinião dos Comités do Partido envolvidos. Ao mesmo tempo, assiste-se a um alargamento da acção do Estado em relação às empresas privadas: os empresários têm de ser patriotas [diz Xi] e o partido quer que os seus membros sejam recrutados pelas empresas e lhes sejam oferecidos lugares proeminentes.

Mas o “Pensamento Xi Jinping” vai além disso. Determina uma aposta no investimento nas regiões do Oeste e Centro da China em favor do papel pioneiro do litoral. O Partido passa a ser o promotor do Estado de Direito, seja qual for a concepção que os comunistas chineses têm do Estado de Direito. Finalmente a China é um participante activo na vida internacional e ambiciona tornar-se líder em 2050.

Se por alguma forma pudéssemos fazer um flashback com as mudanças importantes que estão previstas para a República Popular da China no segundo mandato de Xi Jinping, é como se estivéssemos a reviver um brejnevismo sem Brejnev em que o poder fulgurante do nacionalismo chinês se impusesse como uma inevitabilidade para uma nova partilha do mundo em dois mundos: o mundo capitalista, decadente e corrupto e o mundo socialista renascido e rejubilitante sob a liderança da República Popular da China.

Como se explica esta inversão do curso da China segundo o elucidativo discurso do líder Xi Jinping? Por três razões essenciais. Xi Jinping é um homem de partido e o único objectivo credível é reforçar o Partido, ajudar a que sobreviva às inúmeras dificuldades que uma situação volátil internacional promove e multiplica. Xi Jinping é filho da Revolução Cultural, é um seu produto e é a sua catarse. Sabe que um regime unipartidário só subsiste se existirem regras políticas claras e cada um desempenhar o seu papel. Pegando na velha analogia de Platão, os guardas devem ser guardas, os trabalhadores e artífices devem ter só esse poder e os administradores serem administradores. É essa a chave de um regime sábio onde a sabedoria prevaleça.

Por isso a única solução para salvaguardar o papel central do partido é uma direcção “hard-liner”  do partido, do Estado e da sociedade. Centralismo interno e férrea disciplina partidária. Detenção e perseguição de activistas pró-democracia e advogados defensores de cidadãos envolvidos nesses movimentos. Controlo férreo dos media, da Internet, dos chats e de todas as plataformas que possam possibilitar a difusão de ideias divergentes daquela que passa a ser a doutrina oficial do Partido: um apoio unívoco e inquestionável ao líder que nunca erra.

Em resumo, esperam-nos cinco anos de reforço ainda maior do papel de Xi Jinping como líder incontornável da China, de continuidade da campanha anti-corrupção contra opositores internos, de fortalecimento dos mecanismos de economia socialista e desmontagem dos instrumentos da economia de mercado.  Como dizia Maquiavel, o Príncipe iluminado é o que sabe que é melhor ser temido que amado, que faz todo o mal possível primeiro, para depois ter a condescendência de fazer algum bem. ­

Então se é assim, se Xi Jinping tem um poder inquestionável, porque não nomeou os seus delfins para o Comité Permanente do Politburo? Na verdade quem analisar, com alguma profundidade, os “sete magníficos” do Comité Permanente não pode deixar de se surpreender com o que encontra. Li Keqiang acompanha o líder, mas é um Primeiro-Ministro cada vez mais debilitado pois parte das suas competências têm sido derrogadas em favor de comités ad-hoc designados e dirigidos pelo Presidente do Partido. Li Zhangshu é o homem do Comité Nacional de Segurança que dirigirá, nesta nova fase, todo o aparelho “controlador” do Estado e cuja orientação em termos de facções é desconhecida. Wang Yang, o actual Vice-Primeiro Ministro é um homem de Hu Jintao. Wang Huning, coordenador da Comissão Central para as Reformas é um homem de Jiang Zemin. Zhao Leji, o subdirector do Departamento Central de Disciplina e Inspecção é um incondicional de Xi, indo cumprir o papel que fora o de Wang Qishan. Han Zheng, o ex-secretário do Partido em Xangai é um homem próximo de Jiang Zemin.  Quer dizer, em seis membros Xi poderá confiar em Li Zhanshu e Zhao Leji. Em certas ocasiões em Li Keqiang.

Todos os badalados candidatos ao Comité Permanente do Politburo – e putativos “delfins” do líder – quedaram-se por um lugar no órgão mais alargado: Yang Xiaodu, um dos pivots da Comissão Central de Disciplina; Chen Quanguo, o secretário do partido em Xinjiang; Chen Min’er, o secretário do partido em Chongqing; Hu Chunhua, o secretário do partido em Guandong; Cai Qi, secretário do partido em Pequim. Todos eles, de alguma forma ficaram pelo caminho.

Qual a explicação? A meu ver só pode ser uma: os líderes “seniores” impuseram a sua vontade em beneficio de homens de transição, deixando para daqui a cinco anos a definição de quem irá substituir Xi Jinping na tríplice posição de secretário-geral, Presidente do Estado e Presidente da Comissão Politico-Militar do Comité Central.

Sinal de fraqueza ou calculismo político? Só o tempo permitirá responder a essa questão.

Os olhos do mundo estão em Xi Jinping. Mas os dos oitenta milhões dos militantes do Partido Comunista Chinês também.

 

Arnaldo Gonçalves é jurista e professor de Ciência Política e Relações Internacionais. Escreve neste espaço quinzenalmente e, hoje, excepcionalmente à terça-feira.

 

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O mundo dos afectos

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«Mestre, qual é o primeiro mandamento da Lei?», perguntou um dos doutores da Lei a Jesus para O experimentar. Eis a resposta : «‘Amarás o Senhor teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu espírito.’ Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo, porém, é semelhante a este : ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’».

O diálogo entre a Fé e o Mundo dos Afectos  continua, a meu ver,  a ser um assunto pouco ou nada integrado na Formação Cristã ou nas classes de Catecismo. No caminho da Fé prevalece, claramente, ainda a aprendizagem e o conhecimento das Verdades da Fé, a Doutrina, e a chamada à prática, direi, formal e externa da Vida Sacramental, sobretudo, da Missa e da Confissão.

A Pedagogia do «Coração» onde está? As reacções íntimas ou os ‘estados de alma’ ou as etapas do processo de crescimento e maturação daquele ou daquela que está a aprender os caminhos de Deus não são tidos em conta. Não são levados nem à ‘conversa espiritual’ com a ou o catequista nem apresentados quando se está a sós, em oração, ‘aos pés de Jesus. ‘

Na Formação Cristã continua-se a insistir, excessivamente, na Racionalidade, na compreensão intelectual, e na Actividade. Isto é, na prática ritualista dos Sacramentos, e deixamos,  lamentavelmente,  a riqueza profunda da Afectividade e da Sensibilade. Mas, Jesus Cristo, o Mestre Divino, expressa-se muito bem, dizendo: «‘Amarás o Senhor teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu espírito.’». Portanto, o «Coração» é parte integrante e inalienável da Experiência de Deus e, consequentemente, também de toda a Experiência Humana.

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Nesta mesma linha de ideias, outros são os aspectos que denotam, de igual modo, a falta de integração do mundo afectivo na experiência da Fé.  Por exemplo, a interrelação intrínseca da maturidade afectiva com a maturidade espiritual, na caminhada da Fé, estará ela bem equacionada no processo de aprendizagem actual de como  formar um autêntico cristão? No entanto, desejo abordar esse aspecto do enquadramento do ‘mundo dos afectos’ na vida de cada um numa visão mais universal e no contexto de toda a Humanidade e não apenas na experiência espiritual.

Levado pela minha missão,  encontro-me continuamente com gente, homens e mulheres, de muito diferentes raças, línguas, histórias e culturas e mesmo religiões.  Cresce, assim, em mim a convicção de que é uma incontestável verdade aquilo que já o filósofo grego aconselhava: «Conhece-te a ti mesmo». Verdade essa  que veio a ser confirmada, depois, com maior rigor científico, no século passado, através da Psicologia de Profundidade.  Ao mesmo tempo, não se pode esconder ou negar que essa experiência sempre foi defendida como fundamental para o crescimento na vida humana e espiritual, principalmente, pelos místicos, em toda a História da Igreja, tais como a grande Teresa de Ávila e o genial Inácio de Loiola. ´

Chego, porém, à conclusão, de quanto continua a ser de extrema importância na nossa Sociedade ensinar as pessoas a entrar, conhecer e discernir o que vai no íntimo dos  seus corações para melhor poderem servir a Humanidade e contribuirem para o progresso do Mundo. Assistimos, em contra-partida, ao excesso do uso da Racionalidade, dando origem ao Racionalismo legalista, impiedoso, calculista, e sem compaixão pelas necessidades realmente humanas. A Actividade humana, por sua vez, dominada pelo tecnicismo, mecanicismo e robótica, torna-se frenética, mecânica e compulsiva. O homem e a mulher contemporâneos estão a não conseguir controlar-se e a cair no abismo da sua ‘Angústia Existêncial’ e a descer, pouco a pouco, até ao seu  profundo ‘Desespero’.

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Diria ainda que uma coisa é não conseguirmos  entrar no nosso «Coração» e no «Mundo dos afectos» que são os nossos e  não lhe darmos a devida importãncia no dia a dia da nossa existência. Outra é, e pior ainda, o não conseguirmos dominar e controlar as consequências de um «Coração» posto de parte, desconhecido e amargurado. É que ao «Coração» está intimamente ligada a Sensibilidade, a Afectividade e a Sexualidade! Realidades que, bem entendidas e integradas na vida de uma Pessoa, conduzem-na à sua plenitude de Ser de Homem ou de Ser de Mulher, abrem-na ao Amor e transportam-na à Intimidade e à Perfeição de Deus. Caso contrário, podem-se transformar em forças tremendamente destrutivas da Humanidade, sobretudo, quando, com elas, não se respeita a Moralidade, a Dignidade de Ser Pessoa, «criada à Imagem e Semelhança de Deus.»

As Civilizações – egípcia, grega, romana – destruíram-se pela degradação moral.

Luís Sequeira, Sacerdote e antigo Superior da Companhia de Jesus em Macau. Escreve neste espaço uma vez por semana, sempre às sextas-feiras.

 

 

 

 

 

 

 

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  Não, Arnaldo Gonçalves não tem razão

 

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O presidente do Fórum Luso-Asiático disse recentemente, à margem da celebração dos 20 anos do Fórum Luso Asiático, organização a que preside, que Portugal se desligou da realidade de Macau, depois da transição de poder em 1999.

Não é a primeira, nem será provavelmente a última vez que este lamento se faz ouvir, mas não é por isso que o considero mais ou menos justo.

A questão é como medir este “desligamento”: de uma forma intuitiva ou o mais objetiva possível.

Alguns exemplos:

 

– Portugal tem um Consulado-Geral em Macau dos maiores em toda a rede consular;

– Portugal sempre teve um representante da AICEP – Agência para o Investimento e o Comércio Externo de Portugal e agora até tem um apenas para o Fórum de Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa;

– Macau destaca-se na lista de locais mais visitados pelos governantes portugueses em todo o mundo. Recentemente até tivemos o insólito caso de um secretário de Estado que veio para assinar um acordo e se foi embora porque o memorando não estava pronto. Todos se lembrarão também que José Cesário, antigo secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, passava mais tempo em Macau do que no Brasil ou em Angola.

– Todos os Presidentes da República estiveram em Macau e foram raros os primeiros ministros que falharam. Passos Coelho foi a óbvia excepção;

– Portugal mantém acordos especiais (que não existem com mais nenhum país) para que funcionários públicos trabalhem em Macau. Estes funcionários públicos desempenham funções como médicos e funcionários judiciais, entre outros;

– Portugal tem um ambicioso acordo de cooperação com Macau. Tão ambicioso que em muitos casos não saiu do papel.

Como se percebe, nem tudo funciona bem. Não funciona com Macau, como não funciona a relação do Estado português com o próprio país.

Mas Arnaldo Gonçalves também não tem razão quando diz: “Portugal, nestes anos todos que existem do fórum, nunca apresentou um projeto de uma iniciativa, de uma empresa, de um investimento, qualquer coisa”. Do meu ponto de vista, não é o Estado português que tem de apresentar projectos: são as empresas (privadas, portanto). E se as empresas não acham o modelo vantajoso ou eficaz, que culpa tem … Portugal? Por alguma razão, o Fundo é, até ao momento, um mistério.

Arnaldo Gonçalves afirmou ainda [e continuo a seguir o relato que li no PONTO FINAL] que Portugal “não se preocupa com Macau”. Mas é com Macau ou com os portugueses que residem em Macau? Os Portugueses que vivem em Macau precisam realmente que Portugal se preocupe com eles? A acção do Cônsul não é suficiente? Relativamente a Macau, devia preocupar-se com o quê? Com o Cumprimento da Declaração Conjunta? Devia Portugal ter um papel mais activo neste domínio? Eu por acaso acho que sim, mas gostava de ouvir o que pensa Arnaldo Gonçalves.

Fica o desafio.

 

 

João Paulo Menezes, Jornalista. Correspondente do PONTO FINAL em Portugal.

 

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Hipocrisia e malícia

 

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A Palavra de Deus constitui, em si, um desafio constante, perspicaz e surpreendente à nossa maneira de viver. Não nos deixa impávidos e serenos, como se nada tivesse a ver connosco. Algumas vezes, até se torna impertinente e desagradável, o acto de a escutar. Por vezes, chega a ser mesmo dura e cáustica, ao denunciar certas realidades que são um atentado à dignidade humana e, como diz o povo, ‘bradam aos Céus’. O texto do Evangelho deste Vigésimo Nono Domingo do Ano Litúrgico parece ser um desses casos.

Os fariseus enviam os seus discípulos não tanto para se inteirarem  ou aprenderem alguma coisa daquilo que o Senhor Jesus está a expor, mas, única e exlusivamente, para Lhe lançarem uma pergunta armadilhada que o pudésse desconcertar, surpreender ou fazer cair em qualquer contradição. Mas, tudo é arquitectado, com palavras, aparentemente,  muito elogiosas: «Mestre, sabemos que és sincero e que ensinas, segundo a verdade, o caminho de Deus, sem Te deixares influenciar  por ninguém,  pois não fazes acepção de pessoas…». A narrativa do facto continua, e pode ler-se , em seguida : «Jesus, conhecendo a sua malícia respondeu : ‘Porque me tentais, hipócritas ?»

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Meditando esta passagem da vida de Jesus Cristo, sinto-me muito mais inclinado, primeiro, a tomar em consideração as Suas palavras, fortes e contundentes, de uma verdade quase demolidora, para procurar, em seguida, descobrir onde quer Ele chegar ou a quem Ele se dirige ou que aspectos reprováveis Ele chama a nossa atenção, apelando, ao mesmo tempo e consequentemente, à necessidade da nossa parte de mudança de atitudes e comportamentos. É como dizer, de outra maneira,  Deus fala sobre os factos e sobre eles apresenta a leitura mais correcta. Ou ainda, a Palavra de Deus oferece-nos o significado dos acontecimentos e das atitudes e não somos tanto nós a procurarmos dar um significado às coisas que acontecem.

Não nego, no entanto, que este modo de pensa –  isto é, que Deus também nos diz a Sua verdade, directa e frontalmente – através das leituras da Sagrada Escritura, foi também provocado pelo Relatório dos Incêndios, em Portugal, cujas conclusões nos deixam petrificados de dor, indignação e vergonha e nos faz exclamar como Jesus: «Hipócritas!Quanta Malícia!». Tanta e tanta conversa para evitar dizer a verdade e assumir erros, incompetências e irresponsabilidades. Mas pior ainda, quando se percebe que há também negócios sujos e indignos por trás.

« Malícia! Hipocrisia!» é um mal, é um ‘polvo de muitos tentáculos’ que pervade a nossa sociedade actual, tanto nos grandes países ou super-potências como nos pequenos países, nos elegantes principados ou nas parasidíacas ilhas off-shores.

Surpreendentemente «os fariseus e os herodianos», aqueles que interpelaram Jesus, eram exactamente as pessoas mais influentes e os mais inseridos na política nacional.  São esses mesmos que vão ouvir Cristo a chamá-los de forma cristalina : ‘ Hipócritas ?» Que dizer dos nossos políticos, locais, nacionais, mundiais?

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O Senhor Jesus, pela conversa,  sobretudo com o elogio, cheio de verdade que, lisongeiramente, os seus interlocutores Lhe lançam,  deixa-nos um caminho em que só ele é capaz de contrariar seriamente « a malícia! a hipocrisia!» que invadem o nosso Mundo e a Política Mundial : «Ser sincero…Não se deixar influenciar por ninguém. Não fazer acepção de pessoas.»

O Evangelho deste Domingo termina ainda com a apresentação de um critério que, por fim, deve ser aplicado em toda e qualquer acção em consequência das nossas responsabilidades: «Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.»

Se, por um lado, somos chamados a contribuir para o desenvolvimento e o progresso da Criação e da Humanidade; por outro, como o Senhor bem nos diz, não podemos esquecer ou pôr de parte ‘o sentido de Deus’ na nossa actividade criativa.

 

Luís Sequeira, Sacerdote e antigo Superior da Companhia de Jesus em Macau. Escreve semanalmente neste espaço, sempre às sextas-feiras.

 

 

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  Xi Jinping, o líder indispensável

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Iniciou-se o XIX Congresso do Partido Comunista Chinês ontem, dia 19 de Outubro. É um tempo de celebração, mas também de escolhas. Diz-se que as escolhas foram já feitas nos meses que o antecederam e que as várias estruturas do partido escolheram os seus representantes ao congresso nacional. Tenho dúvidas se não haverá acertos de última hora. Não é habitual o partido anunciar uma lista de demitidos na véspera da sua reunião magna. Só Mao o fez – e poucas vezes – quando a luta entre ‘as duas linhas’ estava acesa. É um sintoma de fragilidade política. Mesmo que se só se verifique a médio prazo.

Há seis ou sete pontos a decidir neste congresso, o último antes das celebrações dos setenta anos da fundação do regime comunista na China. O primeiro que considero adquirido é a confirmação de Xi Jinping com líder central [‘core leader’] do regime comunista chinês. Não há tradição na história dos partidos comunistas de vários candidatos competirem abertamente pela liderança do partido. As escolhas fazem-se nos bastidores e o líder é cooptado pela oligarquia partidária que ao fazê-lo, salvaguarda-se. Não há, para já, ninguém que desafie a liderança de Xi no tríplice de poderes que detém: Estado, Partido e Forças Armadas.

O segundo é quem sobe ao Comité Permanente do Comité Central – o ‘Standing Committe’ do Politburo. Por razões de renovação interna, pretextadas pela regra não escrita do limite dos 68 anos como idade limite para o exercício de cargos partidários, devem sair Zhang Dejiang, Yu Zhengsheng, Liu Yunshan, Wang Qishan e Zhang Gaoli. Apenas Li Keqiang se manterá com Xi. Tem-se falado bastante se Wang Qishan, o secretário da Comissão Central de Disciplina e Inspecção e o arquitecto da campanha anti-corrupção se manterá no lugar como paga pelos serviços prestados. Isso constituiria uma violação da regra da aposentação compulsiva. Não creio que a excepção seja criada. O Partido funciona por regras mais ou menos rígidas que lhe dão estabilidade e previsibilidade. O mais provável será Xi Jinping fazer subir ao Politburo um dos ‘deputies’ de Wang na Comissão Central de Disciplina. Por exemplo Zhao Leji, membro do Politburo desde 2012 e membro do ‘steering committe’ para a reforma económica. É um homem da Universidade de Pequim, onde Li Kejiang de licenciou em economia. A ‘alma mater’ tem importância.

Ainda neste ponto está por decidir quem poderá subir ao ‘Standing Committe’. Não há na tradição do Partido Comunista Chinês um número fixo de membros e ele pode ir de 5 a 9 [são sete presentemente]. A resposta passará pelo seguinte: se Xi se sentir com força interna para decidir quem subirá é provável que o quorum se mantenha nos sete; se ele achar que lhe reforçará a áurea de líder forte [mas magnânime] incluir outras sensibilidades na liderança, ao mais alto nível, pode se sentir tentado a alargar a composição do Comité Permanente para nove membros. Pendo para já para a segunda solução. Xi é um homem inteligente e sabe que ganhará “se der a mão” às facções da Juventude Comunista, dos “princeling” e de Xangai.

O terceiro ponto a esclarecer é quão forte e profunda tem sido a campanha anti-corrupção. Vários comentadores, entre os quais David Shambaugh, Jean-Pierre Cabestan ou Robert Sutter, apontam que ela tem sido apenas um pretexto, uma ‘capa’, para o reforço do poder pessoal, monolítico e muscular de Xi Jinping como líder incontestado [e incontestável] do partido e um mecanismo de purga de opositores internos. Percebo a lógica. Tenho dificuldade em justapor o perfil de líder de Xi Jinping ao perfil megalómano e psicótico de Mao Zedong aquando da Revolução Cultural ou da Campanha de Rectificação de Massas. Não há, que se saiba, dirigentes presos a coberto da noite, torturados pela polícia secreta ou executados com um tiro atrás da orelha na cave de uma prisão. Existe um clima de medo no partido quanto às consequências da tomada de decisões que possam chamar a atenção das “antenas” da Comissão Central de Disciplina a nível regional, municipal ou de unidade de produção. Os quadros que querem enriquecer com o desempenho de funções de topo são hoje muito cuidadosos. O dinheiro de “luvas’ e “comissões” continua a fluir para o estrangeiro para contas seguras e discretas em paraísos fiscais e assim continuará. O que mudou foi que o locupletamento pessoal à custa dos bens e fundos do Estado deixou de ser a excepção “generalizada”. Ora, para que isso se mantenha, é indispensável que a campanha se mantenha, combinando a “caça” a “pequenos peixes e grandes peixes”.

O quarto ponto a avaliar é se Xi Jinping quererá dar indicações de qual o seu substituto à frente do Estado e do Partido daqui a cinco anos. É a posição que corresponde à de Vice-Presidente da República. Se olharmos para as lideranças de Deng a Hu, esta fórmula foi sempre observada para dar indicação ao partido de quem a liderança consensualizou para ser o próximo líder e para os mecanismos de cooptação poderem funcionar bem como a gestão das carreiras dos quadros de topo. Não estou convencido que Xi terá tomado já essa decisão. Digo isso por uma razão prática e essencial: Xi não teve tempo ainda, pelo modo muito personalizado que tem do trabalho partidário, de seleccionar os membros da sua “facção”, se podermos falar de algo similar no caso de Xi. É que não se vislumbra uma lógica de exclusividade e coesão interna que sabemos existir nas facções habitualmente mencionadas.

O quinto ponto tem a ver com a projecção externa do estilo de liderança de Xi. Que consequências trará uma ainda maior concentração de poder pessoal nas relações da República Popular da China com: a) países vizinhos; b) o regime pária da Coreia do Norte; c) os Estados Unidos; d) a Rússia. Na comparatística dos regimes políticos e ao invés das aproximações tradicionais de Almond e Verba, Inglehart e Welzel ou mesmo Easton e Weber, a habitual díade regimes políticos democráticos-autoritários deixou de corresponder com acerto à enorme diversidade de regimes e estilos de liderança política. Se olharmos para a evolução dos processos eleitorais, no mundo livre, na última década, constatamos a preferência dos eleitores por líderes solipsistas, centralizadores em detrimento de lideranças colectivas e de equipa. Merkel, Macron, Trump, Kurz e Trudeau são exemplos de um novo tipo de liderança que tem mais similitudes com a figura do Kaiser alemão do que com um tradicional primeiro-ministro de uma democracia representativa. Ora este tipo de liderança está mais habilitado, por disposição e temperamento, a ter uma relação forte e personalizada com líderes personalistas como Putin ou Trump ou carismáticos como Macron ou Merkel. Esse é o perfil de Xi Jinping e isso explica – o há alguns meses seria um absurdo – a forma relativamente fácil como Donald Trump tem logrado encontrar consensos [como na crise da província coreana] que foram impossíveis com Barack Obama.

Isso tem a ver com uma forma carismática e personalista de exercer o poder que me lembra os directores executivos das grandes multinacionais. Na verdade, goste-se ou não, Donald Trump não precisa de consultar os aliados da NATO para as decisões que vinculam todo o espaço da Aliança Atlântica: limita-se a informá-los. O mesmo se diga de Putin no quadro da federação russa. Essa verticalidade do processo de tomada de decisão é música celestial para os chineses pois significa previsibilidade, segurança e fiabilidade.

Em conclusão, Xi Jinping vai gerir de forma ainda mais “oleada” as relações com as outras Grandes Potências e os consensos vão surgir como naturais. Isso não significa que os três Grandes [Xi, Trump e Putin] estejam sempre de acordo mas sabem a cada momento com o que podem contar. Neste quadro, vejo absolutamente natural uma neutralidade chinesa perante um ataque preemptivo a objectivos militares do regime da Coreia do Norte se as vias diplomáticas para congelar a corrida nuclear de Pyongyang falharem por completo.

Sexto e último ponto. E daqui a cinco anos para onde caminhará o Partido Comunista Chinês? Estaremos em 2022. Xi Jinping terá 69 anos de idade. Dificilmente cumprirá um terceiro mandato. Tal hipótese seria um tsunami na filosofia de renovação de liderança que de forma mais ou menos constante tem protagonizado. Não precisará disso para continuar influente. Chiang Kai-shek, Lee Kwan Yew mantiveram-se influentes mesmo quando abandonaram o poder formal nos respectivos países.

Arnaldo Gonçalves é jurista e professor de Ciência Política e Relações Internacionais. Escreve neste espaço quinzenalmente, sempre às quintas-feiras.

 

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O PSD, as eleições autárquicas … e outras coisas

1.Eleições

 

  1. Os resultados das eleições autárquicas do corrente ano representam um pesadíssimo revés para o Partido Comunista Português: menos um terço de câmaras municipais, perda de bastiões importantes (Castro Verde – do meu amigo Francisco Duarte – Almada e Barreiro, por exemplo. “Quem semeia ventos, colhe tempestades” …

Ao definir como estratégia política principal afastar do governo o partido vencedor das eleições legislativas de 2015, o Partido Comunista colheu, dois anos depois, a pior derrota autárquica de sempre.

  1. O Partido Social Democrata (PSD) teve nestas eleições autárquicas, e terá nas próximas eleições legislativas, os mais ingratos combates eleitorais dos últimos 43 anos da democracia portuguesa.

Fruto da quase bancarrota em que o Partido Socialista deixou o país, o PSD viu-se obrigador a aplicar um violento programa de austeridade que começou a ser desagravado durante o ano de 2015.

  1. A chegada da geringonça ao poder, nas condições particulares em que foi feita, inverteu aquilo que se convencionou chamar o “ciclo da governação”. Portadores de uma mensagem de “boas novas”, trataram de começar a repor salários, pensões e outras regalias, chegando a 1 de Outubro em óptimas condições para, em conjunto, vencerem as eleições locais.
  2. No entanto, tal como eu, milhares de portugueses não perceberam a natureza do “negócio político” que Partido Comunista Português e Bloco de Esquerda rubricaram com o Partido Socialista.

E quiseram-no deixar claro nas eleições: deram uma quase maioria absoluta ao Partido Socialista, castigaram o Partido Comunista e deixaram o Bloco de Esquerda com pouco mais de três por cento.

  1. O PSD, partido que tem estatutos, programa e projecto político, e que há mais de 40 anos é sufragado por milhões de portugueses de muitas gerações, não está a “caminho da extinção”. Por mais que, ao domingo, na TDM, “contrapontistas” lhe vaticinem esse destino.

Em condições muito difíceis, com erros próprios, obviamente, que ajudaram a confirmar a já esperada derrota, teve apenas menos 1177 votos que nas eleições de 2013.

  1. Mas será que o Governo do Partido Socialista tem aproveitado da melhor forma a conjuntura externa muito favorável que tem encontrado? A crer nas estatísticas do Eurostat, referentes ao 1º semestre do corrente ano, parece que não. Dos 14 países mais pobres da União Europeia, metade onde, infelizmente, nos situamos, fomos dos que menos cresceu. Pior que nós, só a Grécia (ver jornal “Expresso” de 16.09.2017).
  2. Se bem me recordo, uma das criticas que se fazia ao último governo do PSD era o facto da dívida pública ter crescido enormemente. Mas poderia ter sido diferente? Não foi nesse período que contraímos um empréstimo de 87 000 milhões de euros para “resolver” a quase bancarrota deixada pelo governo do PS?

A dívida pública portuguesa atingiu este Verão o valor mais elevado de sempre: 250 000 milhões de euros.

E agora? Não deveria estar a descer? Estará o governo do Partido Socialista a tentar fazer a “quadratura do círculo”? A tal alquimia, no dizer de economistas do PS, ou, para ser mais popular, procurar querer ter “sol na eira e chuva no nabal”?

 

António Almeida Azevedo, Engenheiro

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Deus posto de lado

 

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Ao meditar os Evangelhos deste e do passado Domingo como uma só narrativa, descobrimos um aspecto da mensagem de Jesus Cristo que é comum a ambos os textos : o ser humano é chamado a escolher entre o aceitar, ou não, o Reino de Deus ou a acolher ou não o convite de se encontrar Senhor, seu Deus. E, muito concretamente, vincando até, a possibilidade da sua resposta poder ser negativa.

Neste Vigésimo Oitavo Domingo do Ano Litúrgico lê-se: «Um rei mandou os servos chamar os convidados para as bodas, mas eles não quiseram vir. Sem fazerem caso, foram um para o seu campo e outro para o seu negócio; os outros apoderaram-se dos servos, trataram-nos mal e mataram-nos». A rejeição descrita no Evangelho da semana passada é ainda mais violenta : « Lançando mão dos servos, espancaram um, mataram outro, e o outro apedrejaram-no. ( Foram mandados ainda) outros servos, em maior número que os primeiros. E eles  trataram-nos do mesmo modo. Por fim, mandou~lhes o seu próprio filho. Mas os vinhateiros, agarrando-o,  lançaram-no fora da vinha e mataram-no».

Ambas as parábolas, terminam com o castigo daqueles «malvados  assassinos», castigo esse que deve ser sempre entendido em estreita e grande complementariedade com aquelas outras parábolas da misericórdia infinita de Deus para com o frágil e o pecador.  Além disso, esse aspecto, o do castigo, não é a mensagem central da história. É circunstancial. Diria, no entanto, que, a metáfora deixa entender que,  no fundo do coração humano, permanece sempre o sentido do correcto e do incorrecto, do perfeito e do imperfeito, do bem e do mal. Mais ainda, comungando na fé daqueles que afirmam a existência e a experiência de  Deus mas também respeitando aqueles que, ao contrário, têm dificuldade em  chegar a Ele e até O possam negar, permanece, sempre e com certeza absoluta, a realidade de que no mais íntimo de todo o  ‘ser humano’, no mais intrínseco da sua essência e existência, existe o desejo, a aspiração e  a ‘sede de Deus’ .

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Procurando dialogar com a sociedade actual: que nos poderão dizer estes textos, a nós, homens e mulheres, do século XXI?

Perante a situação dos convidados que se recusam ir ao banquete que leva  o Senhor Jesus a criticar, seriamente, tal comportamento, não haverá algo de paralelo com a geração actual da humanidade ? Não estaremos nós também a  « pôr de lado», na nossa vida, com muitas desculpas,  Aquele que é o Senhor nosso Deus ?  Ele que se faz «próximo» de todos e de cada um de nós,  como verdadeiro Homem, e que fala no íntimo e no mais profundo do nosso coração?

 É um facto que não podemos ocultar ou escapar. Grandes zonas do mundo de hoje e, particularmente, nos auto-proclamados países mais desenvolvidos,  cresce o número daqueles que se afastam completamente da prática religiosa, esmorecem ou entram na apatia espiritual, ou ainda, Deus não tem qualquer sentido nas suas vidas.

Procurando entender o fenómeno do abandono  de tantos e tantos da sua  relação com Deus, sigo a linha de pensamento do texto evangélico. Deixo aquela via habitual de criticar a Comunidade cristã ou apontar as culpas a esta ou aquela pessoa que conhecemos. A pedagogia do Mestre conduz-nos,  ao invés,  a ponderar as motivações ou razões escondidas no nosso próprio coração ou na nossa própria inteligência.

Chega já de tanta lamentação, culpando os outros. Basta de tentar, sofregamente, de encontrar bodes expiatórios nos outros para encobrir as nossas atitudes perante Deus. É tempo de termos a humildade e a coragem de olharmos para dentro de nós mesmos.

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Segundo o Evangelho, três são os tipos de razões que estão na base da falta de sensibilidade ou do afastamento da experiência de Deus: o campo, o negócio, e o poder sobre os outros.

«Mas eles , sem fazerem caso, foram um para o seu campo». O excesso de preocupação pelo «seu campo»,  pela sua casa,  pelo seu comer,  pelo seu beber ou pelo seu vestir que tão apropriadamente a nossa sociedade apelida de ‘consumismo’ constitui, sem dúvida, um obstáculo ao encontro de Deus. Por diversas vezes, o Senhor Jesus chama a atenção para o excesso de preocupação pelas necessidades básicas do dia a dia. Essa ansiedade obsessiva faz-nos definhar na liberdade interior, na alegria de viver e na confiança na presença amorosa de Deus no nosso quotidiano.

«O outro ( foi)  para o seu negócio». Que o dinheiro, a riqueza e o andar metido em negócios, muito facilmente, pode afastar as pessoas de Deus, é uma constatação por de mais evidente nesta nossa sociedade influenciada tanto pelo capitalismo como pelo marxismo. O próprio Cristo afirma, peremptoriamente: «Não podeis servir a Deus e ao dinheiro ! »

 «Os outros apoderaram-se dos servos, trataram-nos mal e mataram-no». Domínio sobre os outros, perdendo o sentido de Deus, a história da Humanidade está repleta. Não há nenhuma Civilazação, por mais brilhante e sofisticado que tenha sido, que não tenha abusado de poder e explorado o ser humano. Hoje, onde está Deus quando se constata, escandalosamente silenciada, a exploração dos pobres e fracos, imigrantes, trabalhadores clandestinos? Aqueles, indivíduos e companhias nacionais e internacionais que manipulam, abusam e comercializam sexualmente crianças, adolescentes e jovens, têm o sentido de Deus ? O aborto, a eutanásia, a manipulação genética  e da sexualidade pode ser praticado em nome de Deus ?

O humano e o  divino completam-se numa profundíssima coerência interna.

 

Luís Sequeira. Sacerdote e Antigo Superior da Companhia de Jesus em Macau, escreve neste espaço todas as semanas, sempre às sextas-feiras.

 

 

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No rescaldo das eleições na RAEM  

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Para quem acompanha à distância todo o processo eleitoral de Macau fica-nos sempre aquela sensação de que por aqui pouco nos importamos com os destinos da RAEM, se é que alguma vez lhe demos a importância merecida, mesmo quando por aí ainda gravitava o Governo português.

Depois das notícias sobre o tufão Hato que os “mídias” por aqui fizeram gosto em divulgar porque de “catástrofe” se tratava, fiquei à espera que também houvesse alguma informação sobre o resultado das eleições para a Assembleia legislativa da RAEM, até porque havia portugueses a candidatarem-se para a representação no território.

E como curioso destas questões começaria, desde já, por congratular, com uma saudação especial, a eleição de José Pereira Coutinho, assim como, da presença de outros nomes de portugueses que concorreram nestas eleições. Foram eles que tiveram a “nobre” tarefa de manter o baluarte simbólico da presença portuguesa em Macau; ou seja, provaram que os portugueses ainda podem fazer parte da vida socia, cultural e política da RAEM, através da sua acção inserida na sociedade civil do território.

Ao contrário do que se vai passando em Portugal ou pela Europa fora, o tempo de eleições em Macau não reflecte a conjugação das forças politicas em torno das estratégias doutrinárias, ideológicas e de foro colectivo que maximizam o princípio elementar da acção dos políticos: a captura e a manutenção do poder. Em Macau as eleições para a Assembleia Legislativa reflectem apenas uma composição de listas – e não partidos – que procuram a representatividade de um determinado sector da população.

Não é que estejam ausentes de uma certa orientação (ou manipulação) das posições políticas que se vão desenhando para as Regiões Administrativas e Especiais (RAE’s) da Republica Popular da China, apesar do fenómeno em Hong Kong ter já tomado proporções diferentes.

Ora, em Macau, por mais sufragado que sejam as listas candidatas, nenhuma poderá reclamar o exercício do poder, dado que as eleições não consagram o princípio da governação para quem foi o mais votado mas, apenas e só a sua representatividade em cerca de um terço do colégio da assembleia legislativa. Ou seja, por mais participativa que seja, ela reduz-se à possibilidade de participar minoritariamente na definição das politicas públicas da região, dado que os restantes deputados são eleitos por via indirecta (representantes das Associações) e por iniciativa do Chefe do Executivo.

Longe de querer fazer qualquer apreciação mais técnica, política ou de outra natureza sobre os resultados das eleições, apenas tento realçar a ausência de interesse que estas decisões tiveram em território português. Bem sei (ou sabemos) que a RAEM é já da tutela da República Popular da China, no entanto a sua Lei Básica consagra o “modo de vida” singular perpetuado pela governação portuguesa. Este motivo por si só seria o suficiente para nos interessarmos pelos destinos da Macau, facto este que parece não ter sido suficiente para uma reportagem mínima a explicar o que se passou em Macau a 17 de Setembro.

Esta questão, aliada a outras situações que vão decorrendo pacificamente no território de Macau, fazem-nos reflectir um pouco sobre as estratégias que Portugal tem vindo a desenvolver nas relações com a RAEM, privilegiando aspectos económicos, soltos e fragmentados e descurando os aspectos da participação na vida local, onde ainda é possível criar representatividade, quer por via directa quer por via indirecta.

A questão central que podemos aqui levantar será talvez a de questionar a razão da ausência de apoio (institucional e de referência mediática) aos portugueses que vivem no território e que se pautam por salvaguardar um papel activo na vida cívica e social de Macau. No fundo, são eles que impregnam a “moldura” da portugalidade e da lusofonia no “modo de vida” em Macau.

Será este um factor a ter em conta? Ou, pelo contrário, apenas nos interessa ter ligações que se traduzam por ter uma presença nos negócios que cada vez mais são diluídos numa corrente que se pauta pelo postulado da uniformização e da globalização económica sem espaço para as singularidades e identidades que são a verdadeira herança do legado português? O tempo se encarregará de nos ir dando as respostas.

 

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(o texto não segue o acordo ortográfico em vigor)

Carlos Piteira

Investigador do Instituto do Oriente

Docente do Instituto Superior de Ciências Socias e Politicas / Universidade de Lisboa

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Perdendo a sensibilidade moral

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O Evangelho do Vigésimo Sétimo Domingo do Ano Litúrgico apresenta-nos uma outra Parábola : «Havia um proprietário que plantou uma vinha… depois, arrendou-a a uns vinhateiros e partiu para longe. Quando chegou a época das colheitas mandou os seus servos aos vinhateiros para receber os frutos. Os vinhateiros, lançando mão dos servos, espancaram um, mataram outro e o outro, apedrejaram-no. Tornou ele a mandar outros servos, em maior número que os primeiros. E eles trataram-nos do mesmo modo.. Por fim, mandou-lhes o seu próprio filho… Mas os vinhateiros, … agarrando-o,  lançaram-no fora da vinha e mataram-no».

Se, por um lado e pelas próprias palavras de Jesus Cristo, se entende muito claramente que Ele se refere ao povo judeu que O rejeitou e que, por fim, acabará mesmo por O matar, sendo Ele o Filho de Deus, por outro, é também deixada atrozmente patente «a insensibilidade moral » dos vinhateiros que «lançando mão dos servos, espancaram um, mataram outro, e o outro apedrejaram-no. (Mandados que foram) outros servos, em maior número que os primeiros. E eles trataram-nos do mesmo modo.. Por fim, mandou-lhes o seu próprio filho. Mas os vinhateiros, …agarrando-o,  lançaram-no fora da vinha e mataram-no».

Dois mil anos depois, olhamos para a sociedade actual. É facto, por demais evidente, que, nos países ocidentais, sobretudo da Europa, historicamente criados sob a inspiração cristã,  aumenta não só uma certa aversão à Cruz – por exemplo, as cruzes nas paredes da Escola – como também se afirma,  categoricamente,  a objecção em colocar a palavra Cristianismo na Constituição do Parlamento Europeu. Ao mesmo tempo, constatamos que, intimamente ligada a essa dimensão mais profunda da não aceitação de Cristo e do Cristianismo,  cresce também, como consequência, uma maneira de estar ou viver muito semelhante à dos vinhateiros. Lançar fora, agarrar ou empurrar à bruta, espancar, apedrejar e até matar parece não oferecer  grandes problemas de consciência. Mas, algo mais grave está a acontecer nas sociedades, ditas cristãs. Está-se a perder, dolorosa e dramaticamente,   a «sensibilidade moral », a saber aquilo que é bem  e aquilo é mal.

Atrevo-me a fazer uma leitura de um facto. Para mim, o Papa Bento XVI, na humildade e na grandeza interior da sua pessoa, totalmente dedicada a Deus e à Igreja,  é como que uma figura profética para a toda a Humanidade e para a Europa, em particular. Resigna como que a mostrar que a Europa perdeu,  por agora, « o espírito e a força moral» de outrora.

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Este princípio de Século e de  Milénio apresenta-se ainda muito como uma realidade um tanto ou quanto caótica, confusa e indeterminada. Estou convencido, no entanto, de que estamos a viver um momento de extraordinário valor civilizacional. Assim, a radicalidade, a profundidade e a criatividade de pensamento sobre a compreensão do que é verdadeiramente “Ser Humano”, hoje, são características a serem mantidas vigorosamente nesta busca da Verdade.  Além disso,  a Ciência, a Filosofia e a Teologia são chamadas a trabalhar com rigor e interdisciplinarmente. Questões como ‘Ser homem, Ser Mulher’, ‘Natureza ou Orientação’, ‘ Sexualidade e Amor’, ‘Família’, ‘Casamento, ‘Deus e o Homem’, ‘A Angústia Existencial’… deixam-nos com a pergunta : tudo aquilo que se defende na nossa sociedade, dominada pelo consumismo, hedonismo e  materialismo,  e pelo relativismo de valores, é «moralmente correcto?»

A Economia é, sem dúvida, um dos grandes motores de desenvolvimento da Humanidade neste Globo terrestre em que vivemos. Muitos afirmam mesmo que é o primeiro. Contudo,  consideremos  as necessidades básicas: comer, beber e vestir… Ao contemplar o mundo actual e objectivando, com a ajuda das estatísticas oficiais das grandes organizações humanitárias, as condições de vida de tantos e tantos milhões de seres humanos,  poderemos nós afirmar que existe ‘moralidade’ na nossa sociedade contemporânea?

Mas, pior ainda, é quando se descobre cada vez mais claro as manigâncias totalmente «imorais» dos economistas denominados ‘experts’, dos centros financeiros, das instituições bancárias e das agências financeiras.

E no mundo da Política, há Moralidade ? Quase que não há dia em que, em qualquer país, por esse mundo fora,  não apareça um caso de corrupção, suborno, má gestão consciente e fraude. A mentira é cada vez mais frequente, descarada e sem vergonha ou escrúpulos.

E em Macau? Tanto corre, de boca em boca, o nome daqueles da Administração que são directos e verdadeiros nas suas posições e decisões, como correm igualmente muitos comentários sobres aqueles que não são nem competentes, nem responsáveis, nem honestos. Mas o lamento e a crítica que mais se ouve é sobre aqueles que enchem os seus próprios bolsos e fazem prosperar os seus próprios negócios.

Luís Sequeira, Sacerdote e Antigo Superior da Companhia de Jesus em Macau. Escreve neste espaço todas as semanas, sempre às sextas-feiras.

 

 

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