O Encontro das Comunidades Macaenses: “…Só se lembra dos caminhos velhos quem tem saudades da terra…” 

A propósito das várias comemorações que por aqui se vão realizando sobre o canta-autor Zeca Afonso que faria 90 anos a 2 de Agosto e entre o trautear das várias melodias que nos deixou, chamou-me a atenção uma passagem do seu tema «Natal dos Simples» (um tema popular) que evoca as memórias do lugar em que nascemos e/ou crescemos, “… só se lembra dos caminhos velhos quem tem saudades da terra…” antecipando um pouco a imagem dos vários “patrícios” que rumarão a Macau em finais de Novembro para mais um encontro de macaenses.

Apesar da carga saudosista que estes encontros envolvem podemos também extrair daí a “vitalidade” da comunidade em se posicionar decorridos que estão 20 anos da fórmula da transição para a RAEM.

A presença de Macaenses vindos das diásporas para reviverem e reencontrarem pessoas e “velhos caminhos” em Macau, já por si só, seria de exaltar como marca distintiva da singularidade de Macau, dando relevo e importância a esta comunidade que mesmo mitigada pela presença reduzida dos actuais residentes se vê, de tempo em tempo, reforçada pela presença dos que continuam a reclamar a identidade macaense fora do território.

 

Nostalgia e saudosismo serão talvez os adjectivos que muitos utilizarão para classificar esta mobilização, para não falar em meras incursões pontuais e conjunturais que animam estas deslocações onde também se pauta pela oportunidade oferecida de usufruir dos subsídios atribuídos e das refeições e viagens que a complementam. Porém, no âmago da sua substancia, os valores enraizados serão porventura bem maiores, mesmo que se manifestem de forma inconsciente, o que os move é por certo a “alma” de ser (ou querer ser) macaense.

O património tangível e intangível que se vai salvaguardando é a marca distintiva dos traços herdados de gerações anteriores, sem dúvida muito importantes, mas o principal activo são as pessoas hoje que se mobilizam para lhes dar “voz” e “rosto”, é nelas que reside a capacidade de perpetuar e de reinventar se necessário, a marca dessa diferenciação. 

Neste sentido, o Encontro das Comunidades Macaenses cumpre os seus desígnios ao congregar e, de alguma forma ampliar, a visibilidade da identidade macaense com os que aí vivem e aqueles que estão espalhados pelo mundo fora, permitindo que se possa continuar a vincular a importância deste legado no contexto da RAEM.

Apesar da data de 2019 ser marcante nos desígnios da RAEM por enquadrar o aniversário dos 20 anos da pós transição, para nós (macaenses e portugueses) torna-se também importante, não tanto por se tratar de um aniversário, apesar de o podermos incluir como tal mas, por nos permitir exaltar a manutenção de uma presença edificada e renovada nos pressupostos de uma Macau que agora se designa por RAEM como realidade concreta que se festeja no quotidiano dos actores que nela participam.

Em boa hora, ou por coincidência, quis o tempo fazer coincidir os 20 anos da existência da RAEM com mais um Encontro das Comunidades Macaenses, o 6º do período da pós transição o 9º desde a sua criação, pois que seja também uma data onde possamos afirmar a “vitalidade” da identidade macaense em terras de Macau.

Fico então na expectativa que todos os participantes possam usufruir de mais um momento de são convívio que caracteriza estes encontros com esta mensagem de fundo de que só se lembra dos caminhos velhos quem tem saudades da terra”, ou seja, por mais que Macau seja modificada ou transformada no futuro que se avizinha teremos sempre as lembranças da infância, da adolescência e das demais experiências vivenciadas, perpetuadas nos registos que vamos deixando e nas histórias que os nossos avós, pais e conterrâneos nos vão contando (Macau sã assim).

 

Carlos Piteira

Investigador do Instituto do Oriente

Docente do Instituto Superior de Ciências Socias e Politicas / Universidade de Lisboa

 

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CONVENCIDOS E ARROGANTES

Parece tornar-se cada vez mais frequente e habitual, entre os responsáveis do governo das nações, exibir uma postura de ‘convencidos e arrogantes’ no exercício da sua autoridade. Mais lamentável se apresenta ainda a situação, quando nos deparamos, em seguida e  mais do que seria de esperar, com decisões inadequadas, para não mencionar aquelas que são até um verdadeiro absurdo, uma autêntica aberração.

Mas choca, de maneira particular, quando percebemos que esse convencimento ou essa arrogância se construíram fundamentadas não em grandes ideias para bem da humanidade, o que pode acontecer, mas, ao contrário e infelizmente, na ausência delas. ‘Convencidos e arrogantes’ que querem edificar o seu mundo, a sua visão planetária, num egocentrismo doentio, num narcisismo destruidor e numa megalomania trágica. 

Nos ensinamentos de Jesus Cristo a chamada à Humildade é uma constante. É manifesta na sua pregação a crítica forte, contundente e penetrante aos comportamentos e aos modos de pensar e sentir dos doutores da Lei, dos anciãos do povo e dos fariseus. Tudo por se julgarem sempre superiores aos outros, os verdadeiros conhecedores e intérpretes da Lei, e por revelarem, na prática, uma escandalosa a incoerência nas suas próprias vidas, de até bradar aos céus. Quantas vezes os chamou, com toda a frontalidade, de «Hipócritas» e mesmo «Raça de víboras»!

Alarguemos os nossos horizontes a outras religiões e filosofias de vida. A Humildade faz parte do caminho daquele que, na ética confuciana, deseja ser ‘um cavalheiro’. O ‘despreendimento de si mesmo’ é um estádio a atingir ou uma atitude a viver constantemente para poder chegar a algo superior da sua existência, segundo o pensamento budista. ‘0 Caminho de Perfeição’, do taoísmo, convida-nos a caminhar pela via do ‘desprendimento’ do nosso ser instintivo para chegar ao mais íntimo, profundo, verdadeiro do nosso ser. 

Assim sendo, a Humanidade, a Sociedade actual está a precisar, com extrema urgência, duma redescoberta do ‘Sentido e dos Valores  Transcendentais da sua Existência’, concretizada numa ‘Reforma de Vida’, que conduza à mudança de comportamento, hábitos e atitudes. A História e, muito concretamente, a História da Igreja, mostram que nada disso acontecerá sem a ‘Conversão dos Corações e dos Espíritos’, ‘a Conversão Interior’.

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O Evangelho deste Trigésimo Domingo do Ano Litúrgico começa por afirmar: «Jesus disse a seguinte parábola para alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros». A parábola que Jesus, o Senhor e Mestre, apresenta descreve-nos,  um homem a falar com Deus, considerando-se ele justo, ‘politicamente correcto’ na sua conduta social e melhor que os outros e, muito concretamente, face ao publicano,  ajoelhado ao fim do templo e que apenas dizia, batendo no peito: «Meu Deus, tende compaixão de mim, que sou pecador».

Perante o sucedido, Cristo conclui, afirmando: «Eu vos digo que este (o publicano) desceu justificado para sua casa e o  outro não. Porque todo aquele que se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado».

Embora a história, criada por Jesus, se passe no templo, ela descreve muito apropriadamente a psicologia e o comportamento dos ‘convencidos e arrogantes’.

Primeiro, não têm consciência de si mesmos, não se vislumbram realmente com são. O seu egocentrismo obnubila-lhes a inteligência. Não são capazes nem de discernir objectivamente a sua própria pessoa nem de conhecer as características e traços distintivos da sua personalidade, as qualidades e os defeitos. Em que ridículo, tantas vezes, caiem! Mas não conseguem ‘ver-se ao espelho’.

Segundo, a leitura dos Outros é indubitavelmente sempre destorcida, como na parábola: «Meu Deus, dou-vos graças por não ser como os outros homens, que são ladrões, injustos e adúlteros, nem como este publicano». Não é de espantar a sua tremenda incapacidade de perceber e compreender o Outro. Desconfiam de todos. Defendem-se e atacam, a despropósito e disparatadamente, como se toda a gente fossem  inimigos. E se a inveja entra em cena, então, é o descalabro. Tudo é mal. Tudo se transforma numa tragédia. Todos estão perdidos…

Terceiro, a própria realidade de Deus é, por eles, os ‘convencidos e arrogantes’. completamente adulterada e prostituída, como nos diz o Antigo Testamento, na linguagem profética. O seu Deus torna-se um ‘ídolo’, com olhos, ouvidos e narizes…que não captam ‘o clamor do pobre e do aflito’, porque ‘feitos por mãos humanas’ como diz o Salmo. 

Na parábola, o Deus do dito cujo «justo» não passa de um administrador a quem se apresenta a contabilidade: «Jejuo duas vezes por semana e pago o dízimo de todos os meus rendimentos». Mais. É um Deus que é uma ‘projecção’ das suas próprias necessidades e das suas inclinações instintivas, do seu eu egoísta:  «não sou como os outros homens… nem como este publicano».

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O Mundo melhor que se deseja constrói-se na vivência profunda, verdadeira, amorosa e bela da nossa Humanidade, de ser Homem e de ser Mulher, com sua aspiração a ser como Deus. Ele que declarou que fomos ‘criados à Sua imagem e semelhança’. 

Não é o ter muito nem o ser dominado sentir instintivo que nos abre à Felicidade.   

Luís Sequeira, Sacerdote e antigo Superior da Companhia de Jesus de Macau

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“Animal Farm”

1. MarreirosEncontro-me no estrangeiro em serviço, por isso não estou a par de todos os pormenores relacionados com a questão da PCU relativa à Escola Portuguesa de Macau. Todavia, deu para perceber que a montanha pariu um ratinho enfezado. Tanta peritagem, tanto conselho, tanta inteligência, tanto patois para 1,50 M de raciocínio. Curtíssimo, claro. 

O meu colega Rui Leão está no Conselho para dar a sua opinião, se a sua opinião vale ou não a pena é outra questão. Não vou perder um segundo com isso. O Conselho, Macau, a Educação, as crianças e as Comunidades é que vão perder muitos meses com o que a referida opinião vai gerar ou já gerou. 

Os membros dos diversos Conselhos devem dar a sua opinião, mas também devem ser responsabilizados pelas mesmas. Ou seja, uma opinião que vale o que vale, ao prejudicar interesses colectivos prioritários, duas palavras que podem afectar centenas de famílias ou interesses superiores da vida da RAEM, merecem reflexão, ou melhor, rejeição. Porque uma opinião imponderada gera prejuízos irrecuperáveis. E é mais uma vez um português a dar um tiro no pé. Quê grande pé é esse, esburacado de tantos tiros que levou. Um queijo fedorento. É caso para se dizer que com portugueses desses bem podem contar com o pé fedê do “Amor e Dedinhos de Pés”. 

A DSSOPT vai estudar a questão dada a sua complexidade. Complexidade é que opiniões são livres como as asneiras, pois, não tem limites. A asneira é livre e associada a burocratas, cuja designação devia ser escrita com 3 érres de burro, é que criam complexidade em coisas que são simples. E desgraçamo-nos a vida de todos porque nada anda, tudo é caçado na teia kafkiana da burrrocracia. E se Macau não fosse Terra de Flor de Lotus há alguns anos que já estaria venezuelizada, de rastos com os burrrocratas que temos. Felizmente, é que vai havendo esperança que isso, em breve, acabará. 

Eu, por mim, vou aguardar olimpicamente, pelo parecer da DSSOPT, para fazer cumprir os regulamentos e festejar as glórias dos burrrocratas e dos opinadorzecos da praça. Enquanto aguardo budicamente, sugiro àqueles que leiam o “Animal Farm” do George Orwell, para compreenderem como um suíno chega a general.

 

Carlos Marreiros

Arquitecto

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MAIS ALÉM E… MAIS FUNDO

 O Evangelho do Domingo passado, neste caso o Vigésimo Sétimo do Ano Litúrgico, lança-nos para horizontes de vida que estão para além dos critérios imediatos, habituais e comuns de encarar a nossa vivência diária. Primeiro, quando apresenta Jesus Cristo a proclamar: «Se tivésseis fé como um grão de mostarda, diríeis a esta amoreira: ‘Arranca- te daí e vai plantar-te no mar’, e ela obedecer-vos-ia.» Segundo, quando, pouco depois, o mesmo Jesus aconselha a todos, quando acabada uma obra, a dizer:  «Somos servos inúteis: ‘fizemos o que devíamos fazer.’» Tais frases correspondem, na verdade, a duas posturas possíveis do ser humano, homem ou mulher, perante si mesmo. Aparentemente, muito diferentes e parecendo até quase  antagónicas, elas, porém, complementam-se à perfeição. 

 A postura inicial afirma que o homem ou a mulher de fé podem realizar coisas extraordinárias, inconcebíveis e inimagináveis. Ela parece dizer que a capacidade criativa do ser humano quase não tem limites. As suas aspirações contêm algo de divino. Assim se podem entender as palavras do Senhor Jesus quando afirma que aqueles que têm fé são capazes não só de transplantar árvores para o mar como também de mover montanhas. O homem ou a mulher de fé, humana e espiritualmente falando, podem fazer maravilhas.

A segunda, ao invés, faz um apelo radical à atitude de humildade que toda e qualquer pessoa deve manter sempre nas as suas realizações, por mais originais e portentosas  que sejam. Na nossa actuação há que ter um cuidado particular e atento para não cair na inclinação sempre muito forte da natureza humana à vaidade, ao orgulho e à dependência do louvor e elogio dos outros. A visão narcisística de nós mesmos leva-nos a perder o sentido do Outro, e o dito ‘Serviço aos Outros’ acaba por não passar de uma ‘máscara’ que camufla ou esconde um coração dominado pelo egoísmo.

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O Evangelho deste próximo Domingo, o Vigésimo Oitavo, parece continuar a análise do ser humano, abordando concretamente a questão da necessidade dele  caminhar constantemente para uma maior consciência de si mesmo e vir a alcançar um conhecimento bem mais objectivo da sua pessoa, por outras palavras, conhecer-se a si mesmo. Diz o texto da Escritura: «Vieram ao seu encontro dez leprosos. Conservando-se à distância, disseram em alta voz: ’Jesus Mestre, tem compaixão de nós’… Um deles, ao ver-se curado, voltou atrás, glorificando a Deus em alta voz, e prostrou-se de rosto em terra aos pés de Jessus, para lhe agradecer.»

Assim, através dum «Samaritano» agradecido, em flagrante contraste com a atitude daqueles que nem sequer apareceram a manifestar a sua gratidão a Jesus pela cura, podemos entender quanto é importante na vida ter consciência e conhecimento de tudo quanto sucede na nossa existência, o bem e o mal, o positivo e o negativo, o perfeito e o imperfeito, a qualidade e o defeito, o dom e a insuficiência, o limite… Caso contrário, quanto alheios da realidade podemos andar! Não captamos nem o que sucede no interior de nós mesmos nem à nossa volta, nos Outros e no Mundo. Perdemos até, e dramaticamente, o sentido Deus. 

Aqui chegados, triste e penoso, é ainda verificar que não conseguir  reconhecer devidamente mesmo os próprios dons, graças ou favores recebidos, tal como aconteceu com os nove leprosos da narração evangélica, se torna deveras frequente entre as pessoas na Sociedade actual. Tantos não sabem saborear as coisas boas da vida! Sempre prontos a recitar, de preferência, a ladainha dos seus infortúnios e o rosário das suas lamentações. Não são capazes de tomar esses momentos de profunda alegria e ‘consolação’ como situações previlegiadas para confortar e fortalecer nos momentos de ‘desolação’ vindouros, que, dentro de pouco tempo, lhes baterão à porta. 

Ou, então, também acontece. Inebriados pela satisfação imediata do bem sucedido, embalam nas sensações agradáveis imediatas, mas superficiais, em vez de ‘ponderar nos seus corações’ o acontecido, de modo a encontrar aí a energia revigorante para enfrentar, com coragem e criatividade, o momento difícil que, em breve, se apresentará.

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A Humanidade, que entrou já no Terceiro Milénio, carece urgentemente de Homens e Mulheres cheios de Fé, Coragem e Confiança no Futuro, para aceitar os imensos desafios que se lhe apresenta. 

A Sociedade Contemporânea precisa de Homens e Mulheres capazes de escolher o Caminho de Humildade para encontrar soluções que respondam à Angústia Existencial do Ser Humano e da Natureza.

O Ser Humano geme e clama na profundidade do seu íntimo por Homens e Mulheres capazes de o conduzir ao conhecimento da sua Existência e da sua Essência e a discernir os sinais de um Mundo Melhor.

O Ser Humano procura Homens e  Mulheres com o dom de o conduzir ao Conhecimento, ao Encontro e à Intimidade de Deus, na consciência e na certeza de ter sido verdadeiramente criado por Deus, por Ele chamado a viver com os Outros e estar aberto à realidade que o circunda, o Cosmos.

Luís Sequeira, Sacerdote e antigo Superior da Companhia de Jesus de Macau

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DUAS MÃOS E DOIS CARTAZES: liberdade de expressão sem aviso prévio

Jorge Menezes-Eduardo MartinsAs declarações do Secretário para a Segurança de que duas estudantes do IFT que exibiram cartazes de solidariedade com Hong Kong cometeram crime de manifestação ilegal é insensata e assustadora. Para além de descaracterizar e maltratar o direito de manifestação, denega a liberdade de expressão e o direito de participação cívica, fundamentais numa sociedade livre. 

Considerar que duas estudantes e um par de cartazes fazem uma manifestação, usando regras desenhadas para proteger este direito a fim de o aniquilar e punir, constitui um desvirtuamento ou, no mínimo, uma fraude à lei, virando-a do avesso a fim de obter um resultado contrário àquele que ela foi feita para assegurar. 

A manifestação distingue-se da liberdade de expressão, antes de mais, pelo uso de meios de expressão intromissivos em relação a terceiros. Daí admitir-se a figura do ‘manifestante solitário’ no caso do uso de altifalante. A distribuição de panfletos, como a exibição de um cartaz, cai no âmbito da liberdade de expressão, não constituindo uma manifestação. 

É da natureza de qualquer manifestação lícita afectar, ou mesmo prejudicar, terceiros, que terão de a suportar. Tal ocorre, normalmente, por ser um direito individual tipicamente exercido de forma colectiva: as manifestações tendem a afectar terceiros desde logo pelo facto de levarem muitas pessoas à rua. Por isso, o número releva.

Se não importunasse ninguém, o direito de manifestação não necessitaria de protecção específica na Lei Básica, bastaria mencionar a liberdade de expressão. 

A conduta das estudantes – cujos cartazes não faziam barulho, nem obstruíam o trânsito – é um caso emblemático de liberdade de expressão e direito à crítica, usando um meio de exteriorização de natureza não intromissiva, sem qualquer impacto negativo nos direitos de terceiros. Por isso, não foi uma manifestação. 

Nem nunca seria permitido fazer uso das restrições excepcionais admitidas na lei das reuniões e manifestações para proteger terceiros de acções que “perturbem grave e efectivamente” os seus direitos. Um par de cartazes não paralisa o trânsito, não acorda doentes, não pára ambulâncias, não afecta interesses legítimos de ninguém. Pelo contrário, agita o pensamento, estimula o espírito crítico, provoca o debate de ideias. 

Todavia, mesmo para os casos reais de manifestação, a lei adverte que esse direito é exercido “sem necessidade de qualquer autorização” (errou por isso, e muito, o Dr. Rui Cunha ao defender que “quem quer fazer manifestações tem de pedir autorizações”). Basta avisar, informar. Mas não para que a polícia autorize ou proíba, o que só excepcionalmente poderia suceder. A finalidade é obter a cooperação da polícia com os manifestantes para assegurar que possam exercer o seu direito, minimizando os inconvenientes dele decorrentes.  

A diferença é grande: enquanto um direito que dependa de autorização não pode ser exercido na falta dela, direito que dependa de aviso pode. O que não precisa de autorização pode ser livremente praticado (sem prejuízo do direito penal). 

Tratar o aviso como uma autorização atraiçoa a lei e não denota muita rectidão intelectual. Basta ler o Diário da Assembleia Legislativa de aprovação da lei para vermos quão estruturante foi a vontade política de rejeitar um regime de autorização. Por isso, é errada a ideia de que uma manifestação sem aviso prévio é ilegal e participar nela é crime. 

Para além de ser óbvio que manifestações instantâneas não necessitam de aviso prévio (o que foi garantido pela própria Presidente da AL), a posição mais sensata é a de que o aviso só é exigível quando se prevê que possa afectar direitos de terceiros. Se uns quantos amigos combinarem reunir-se no Jardim Luís de Camões para discutir a nova lei do jogo têm de avisar o comandante da PSP três dias úteis antes e por escrito? O Secretário para a Segurança acha que sim…

Acresce que, nos termos da lei, a polícia só pode interromper manifestações que (i) não tenham sido objecto de aviso e (ii) sejam “para fins contrários à lei”. Tratando-se de requisitos cumulativos, a polícia não pode interromper manifestações por faltar aviso. Polícia que o fizer, diz a lei, comete o crime de abuso de poder.

Se não pode ser interrompida e pode realizar-se, não pode ser crime manifestação sem aviso. Doutro modo, teríamos a situação sem par de criminalizar aquilo que a lei deixa que se faça. 

Há, infelizmente, decisões judiciais que punem manifestações sem aviso. Mas é uma visão errada. Basta pôr a lógica a rolar: se a lei não deixa a polícia interromper, não se pode punir quem faça o que a lei permite que se faça. Actos lícitos não podem ser crime. 

E faz sentido que assim seja. Se manifestação é um direito fundamental que não depende de autorização de ninguém, seria um contra-senso valorativo punir a falta de aviso. Seria empurrar pela janela adentro o que a lei não deixa entrar pela porta, transformando aviso em autorização. 

Como escreveu o Professor Sérvulo Correia, o aviso é um “mero requisito de ordem procedimental”, “não constitui requisito de licitude”. Por isso, conclui, manifestação sem aviso é lícita, não pode ser interrompida (salvo se forem violados gravemente direitos de terceiros), nem é crime. 

Mas nada disto se aplica às duas corajosas estudantes que levantaram a ‘voz’, numa sociedade em que a academia pouco se ouve. Fizeram uso da liberdade de expressão e do direito de participação cívica: não foi uma manifestação, não era preciso dar aviso, não poderia ser proibida ou interrompida, nem, em caso algum, seria crime. 

Uma sociedade em que as autoridades ameaçam entrar em universidades para retirar cartazes das mãos de estudantes e os enredar em processos crime por falta de aviso, não é uma sociedade verdadeiramente livre. O exercício da liberdade de expressão não depende de aviso, muito menos de autorização. É aterradora a visão de uma sociedade que assim não seja.

E quando o governo anuncia que cometeram um crime, mas não as processará, bate no fundo da moralidade política: invoca abusivamente o direito penal, sem o querer usar, amordaçando a população.  

As autoridades, enamoradas pelo seu peculiar conceito de ordem pública, vêm atropelando direitos e liberdades fundamentais. Travestem vozes isoladas em ‘manifestações’, fazendo depender o próprio exercício da liberdade de expressão de aviso prévio, o que, nas mãos desta polícia, significa sujeição a autorização. 

Que ninguém se deixe enganar, mais do que o direito de manifestação, o objectivo é ir asfixiando a liberdade de expressão. 

Parece mesmo haver quem ache ser necessário dar aviso prévio para andar na rua com um autocolante ao peito… 

Rotular activistas de criminosos e extremistas é um desejo atávico de governos assustados e com tiques autoritários. Macau merecia melhor: que os governantes não violassem a Lei Básica e promovessem – não silenciassem – a participação cívica e o debate público. 

Jorge Menezes

Advogado

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