DUAS MÃOS E DOIS CARTAZES: liberdade de expressão sem aviso prévio

Jorge Menezes-Eduardo MartinsAs declarações do Secretário para a Segurança de que duas estudantes do IFT que exibiram cartazes de solidariedade com Hong Kong cometeram crime de manifestação ilegal é insensata e assustadora. Para além de descaracterizar e maltratar o direito de manifestação, denega a liberdade de expressão e o direito de participação cívica, fundamentais numa sociedade livre. 

Considerar que duas estudantes e um par de cartazes fazem uma manifestação, usando regras desenhadas para proteger este direito a fim de o aniquilar e punir, constitui um desvirtuamento ou, no mínimo, uma fraude à lei, virando-a do avesso a fim de obter um resultado contrário àquele que ela foi feita para assegurar. 

A manifestação distingue-se da liberdade de expressão, antes de mais, pelo uso de meios de expressão intromissivos em relação a terceiros. Daí admitir-se a figura do ‘manifestante solitário’ no caso do uso de altifalante. A distribuição de panfletos, como a exibição de um cartaz, cai no âmbito da liberdade de expressão, não constituindo uma manifestação. 

É da natureza de qualquer manifestação lícita afectar, ou mesmo prejudicar, terceiros, que terão de a suportar. Tal ocorre, normalmente, por ser um direito individual tipicamente exercido de forma colectiva: as manifestações tendem a afectar terceiros desde logo pelo facto de levarem muitas pessoas à rua. Por isso, o número releva.

Se não importunasse ninguém, o direito de manifestação não necessitaria de protecção específica na Lei Básica, bastaria mencionar a liberdade de expressão. 

A conduta das estudantes – cujos cartazes não faziam barulho, nem obstruíam o trânsito – é um caso emblemático de liberdade de expressão e direito à crítica, usando um meio de exteriorização de natureza não intromissiva, sem qualquer impacto negativo nos direitos de terceiros. Por isso, não foi uma manifestação. 

Nem nunca seria permitido fazer uso das restrições excepcionais admitidas na lei das reuniões e manifestações para proteger terceiros de acções que “perturbem grave e efectivamente” os seus direitos. Um par de cartazes não paralisa o trânsito, não acorda doentes, não pára ambulâncias, não afecta interesses legítimos de ninguém. Pelo contrário, agita o pensamento, estimula o espírito crítico, provoca o debate de ideias. 

Todavia, mesmo para os casos reais de manifestação, a lei adverte que esse direito é exercido “sem necessidade de qualquer autorização” (errou por isso, e muito, o Dr. Rui Cunha ao defender que “quem quer fazer manifestações tem de pedir autorizações”). Basta avisar, informar. Mas não para que a polícia autorize ou proíba, o que só excepcionalmente poderia suceder. A finalidade é obter a cooperação da polícia com os manifestantes para assegurar que possam exercer o seu direito, minimizando os inconvenientes dele decorrentes.  

A diferença é grande: enquanto um direito que dependa de autorização não pode ser exercido na falta dela, direito que dependa de aviso pode. O que não precisa de autorização pode ser livremente praticado (sem prejuízo do direito penal). 

Tratar o aviso como uma autorização atraiçoa a lei e não denota muita rectidão intelectual. Basta ler o Diário da Assembleia Legislativa de aprovação da lei para vermos quão estruturante foi a vontade política de rejeitar um regime de autorização. Por isso, é errada a ideia de que uma manifestação sem aviso prévio é ilegal e participar nela é crime. 

Para além de ser óbvio que manifestações instantâneas não necessitam de aviso prévio (o que foi garantido pela própria Presidente da AL), a posição mais sensata é a de que o aviso só é exigível quando se prevê que possa afectar direitos de terceiros. Se uns quantos amigos combinarem reunir-se no Jardim Luís de Camões para discutir a nova lei do jogo têm de avisar o comandante da PSP três dias úteis antes e por escrito? O Secretário para a Segurança acha que sim…

Acresce que, nos termos da lei, a polícia só pode interromper manifestações que (i) não tenham sido objecto de aviso e (ii) sejam “para fins contrários à lei”. Tratando-se de requisitos cumulativos, a polícia não pode interromper manifestações por faltar aviso. Polícia que o fizer, diz a lei, comete o crime de abuso de poder.

Se não pode ser interrompida e pode realizar-se, não pode ser crime manifestação sem aviso. Doutro modo, teríamos a situação sem par de criminalizar aquilo que a lei deixa que se faça. 

Há, infelizmente, decisões judiciais que punem manifestações sem aviso. Mas é uma visão errada. Basta pôr a lógica a rolar: se a lei não deixa a polícia interromper, não se pode punir quem faça o que a lei permite que se faça. Actos lícitos não podem ser crime. 

E faz sentido que assim seja. Se manifestação é um direito fundamental que não depende de autorização de ninguém, seria um contra-senso valorativo punir a falta de aviso. Seria empurrar pela janela adentro o que a lei não deixa entrar pela porta, transformando aviso em autorização. 

Como escreveu o Professor Sérvulo Correia, o aviso é um “mero requisito de ordem procedimental”, “não constitui requisito de licitude”. Por isso, conclui, manifestação sem aviso é lícita, não pode ser interrompida (salvo se forem violados gravemente direitos de terceiros), nem é crime. 

Mas nada disto se aplica às duas corajosas estudantes que levantaram a ‘voz’, numa sociedade em que a academia pouco se ouve. Fizeram uso da liberdade de expressão e do direito de participação cívica: não foi uma manifestação, não era preciso dar aviso, não poderia ser proibida ou interrompida, nem, em caso algum, seria crime. 

Uma sociedade em que as autoridades ameaçam entrar em universidades para retirar cartazes das mãos de estudantes e os enredar em processos crime por falta de aviso, não é uma sociedade verdadeiramente livre. O exercício da liberdade de expressão não depende de aviso, muito menos de autorização. É aterradora a visão de uma sociedade que assim não seja.

E quando o governo anuncia que cometeram um crime, mas não as processará, bate no fundo da moralidade política: invoca abusivamente o direito penal, sem o querer usar, amordaçando a população.  

As autoridades, enamoradas pelo seu peculiar conceito de ordem pública, vêm atropelando direitos e liberdades fundamentais. Travestem vozes isoladas em ‘manifestações’, fazendo depender o próprio exercício da liberdade de expressão de aviso prévio, o que, nas mãos desta polícia, significa sujeição a autorização. 

Que ninguém se deixe enganar, mais do que o direito de manifestação, o objectivo é ir asfixiando a liberdade de expressão. 

Parece mesmo haver quem ache ser necessário dar aviso prévio para andar na rua com um autocolante ao peito… 

Rotular activistas de criminosos e extremistas é um desejo atávico de governos assustados e com tiques autoritários. Macau merecia melhor: que os governantes não violassem a Lei Básica e promovessem – não silenciassem – a participação cívica e o debate público. 

Jorge Menezes

Advogado

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