Numa altura em que, na Malásia, entre 27 e 30 deste mês de Junho, tem lugar uma conferência organizada por associações de luso-descendentes, recebendo importantes colaborações de académicos dos Estados Unidos, Indonésia, Áustria, Ceilão, Filipinas, Malásia e Austrália, com investigações relacionadas com a herança cultural portuguesa em diversos pontos do mundo, acho oportuno lembrar o inesperado encontro que tive há anos no norte de Myanmar, a uma mesa de um pequeno restaurante local, com um homem de olhos verdes, um desses bayingyis urbanos, tresmalhados. Era funcionário dos caminhos-de-ferro e tinha como apelido um Brito bem português, um caso raro entre as comunidades luso-descendentes do norte do Myanmar. Nas cidades, talvez devido à administração colonial, muitos dos católicos mantiveram o nome de família, daí a abundância de Sousas, Castros e Abreus no sul desse país.
Numa das passagens do romance de George Orwell Os Dias da Birmânia, retrato mordaz da decadência do império britânico, cujo enredo nos remete para a época da terceira guerra anglo-birmanesa, em 1885, Ellis, um dos personagens – protótipo do colono, eurocêntrico e profundamente racista – menciona um tal Maxwell, «que passa a vida atrás das pegas euro-asiáticas». É este o tom: «Não negue, Maxwell, chegaram-me aos ouvidos as suas andanças por Mandalay com uma rameira malcheirosa chamada Molly Pereira. Aposto que casava com ela se não o transferissem para aqui, não é? Todos vocês parecem gostar daqueles palonços encardidos e fedorentos.»
Ora, esses «encardidos e fedorentos» eram, ainda nas palavras de Ellis, «uns nativos católicos», contra os quais se insurgia, pois estavam «todos repimpados na nossa igreja», uns tais Samuel e Francis, designados «focinhos amarelos».
Este parágrafo deixa bem patente a postura britânica face à portuguesa em termos de política colonial. Quanto a isso, estamos conversados.
Mais adiante, Flory, personagem principal dessa obra de Orwell, um homem que lutava por manter a dignidade face à mesquinhez da sociedade expatriada, responde nos seguintes moldes a uma inglesa recém-chegada que estranhara a presença de umas «criaturas bizarras» na igreja, ao Domingo, sendo que uma delas parecia quase branca: «São euro-asiáticas, filhas de pais brancos e de mães nativas. Demos-lhes a amigável alcunha de Barrigas Amarelas.»
Uns parágrafos adiante, o escritor, pela voz de Flory, traça o retrato da realidade bayingyi daquela época: «Os europeus não lhes tocam nem com um pau e vedam-lhes o acesso aos serviços governamentais subalternos. Nada lhes resta senão mendigarem, a menos que desistam por completo de pretenderem ser europeus. E, para sermos francos, não é de esperar que os podres diabos o façam. O seu quinhão de sangue branco é o único “haver” que possuem.»
Como se depreende desta passagem, vem de longe a reivindicação dessa tão especial casta de luso-descendentes.
No entender de Ellis, os euro-asiáticos «usam aqueles capacetes coloniais enormes para nos lembrarem de que possuem crânios europeus. Uma espécie de cota de armas». Depois, ao notar que Flory simpatiza com eles, acrescenta: «Têm um aspecto terrivelmente degenerado, não têm? Tão escanzelados, tão andrajosos, tão bajuladores, e as caras, de modo nenhum são honestas. Acho que estes euro-asiáticos são muito degenerados. Você não? Ouvi dizer que os mestiços herdam sempre o pior de ambas as raças.»
Flory responde-lhe que isso poderia ter que ver com a forma como eram criados e educados, lembrando-o de que eram os brancos os responsáveis pela sua existência.
Indigna-se o racista Ellis: «Mas, afinal de contas, você não é responsável. Quero dizer, só um homem com instintos muito baixos seria… hum… capaz de ter relações com mulheres nativas, não é verdade?»
Flory, sarcástico, responde: «Estou inteiramente de acordo. Mas os pais daqueles dois eram clérigos, acho eu.»
Nessa noite, já em Mandalay, de visita à igreja de Lafonds, o responsável da paróquia, o padre Canute, mostrando-me um planisfério afixado na parede, dizia:
– Repare como estamos esquecidos. O mapa-múndi birmanês omite a bandeira de Portugal.
De facto, nos cantos do mapa utilizado para ensinar Geografia em todas as escolas do país não constava o estandarte das quinas, o primeiro país europeu a estabelecer contactos com os antigos reinos do Pegu e de Arracão, embora surgissem quase todas as outras bandeiras do mundo, inclusive as de San Marino, Samoa, Guiné-Bissau e Vanuatu. (Um contacto que se manteria ao longo dos séculos desempenhando Macau um papel bem activo, como o demonstra a forte comunidade birmanesa residente no território). Não admirava, pois, que as pessoas, quando indicava a minha origem, satisfazendo-lhes a curiosidade, ficassem pensativas e perguntassem: «A que país pertence essa província ou colónia chamada Portugal?» Ou então: «Com que país faz fronteira?». Queriam saber também se tínhamos «uma língua própria» e coisas do género.
Ao manifestar a minha tristeza pela omissão, Canute (seria corruptela do apelido Canuto?) fez-me, muito inocentemente, a seguinte pergunta:
– Portugal faz parte das Nações Unidas? Que queriam que lhe respondesse? E olhem que nem com o futebol nos safávamos. Horas depois, ao assistir a um desafio entre o Manchester United e uma outra equipa inglesa, acompanhado pelo bispo e o padre Peter, da paróquia de Chaunthaya, este perguntou-me:
– Qual é o desporto mais popular em Portugal?
Ficou pasmado quando lhe disse que era o futebol e que muitos jogadores portugueses integravam equipas conotadas a nível mundial. Apesar de desconhecer o desporto-rei nacional, o padre Peter passava bem por senhor abade beirão ou transmontano, com aquele seu andar curvado, barrete basco na cabeça, sempre com um cherot na boca e outro aguardando a vez no bolso da camisa.
Peter redimir-se-ia da sua «ignorância» ao sugerir a criação de uma espécie de museu bayingyi. Para tal, urgia iniciar quanto antes a recolha de objectos e documentos dispersos, evitando que fossem vendidos por tuta e meia.
Joaquim Magalhães de Castro, escritor e investigador da expansão portuguesa. Escreve neste espaço às quartas-feiras.