O Sopro de Pak Tai:Molly Pereira e outras Barrigas Amarelas

FOTO Pak Tai desta semana (2)



Numa altura em que, na Malásia, entre 27 e 30 deste mês de Junho, tem lugar uma conferência organizada por associações de luso-descendentes, recebendo importantes colaborações de académicos dos Estados Unidos, Indonésia, Áustria, Ceilão, Filipinas, Malásia e Austrália, com investigações relacionadas com a herança cultural portuguesa em diversos pontos do mundo, acho oportuno lembrar o inesperado encontro que tive há anos no norte de Myanmar, a uma mesa de um pequeno restaurante local, com um homem de olhos verdes, um desses bayingyis urbanos, tresmalhados. Era funcionário dos caminhos-de-ferro e tinha como apelido um Brito bem português, um caso raro entre as comunidades luso-descendentes do norte do Myanmar. Nas cidades, talvez devido à administração colonial, muitos dos católicos mantiveram o nome de família, daí a abundância de Sousas, Castros e Abreus no sul desse país.

Numa das passagens do romance de George Orwell Os Dias da Birmânia, retrato mordaz da decadência do império britânico, cujo enredo nos remete para a época da terceira guerra anglo-birmanesa, em 1885, Ellis, um dos personagens – protótipo do colono, eurocêntrico e profundamente racista – menciona um tal Maxwell, «que passa a vida atrás das pegas euro-asiáticas». É este o tom: «Não negue, Maxwell, chegaram-me aos ouvidos as suas andanças por Mandalay com uma rameira malcheirosa chamada Molly Pereira. Aposto que casava com ela se não o transferissem para aqui, não é? Todos vocês parecem gostar daqueles palonços encardidos e fedorentos.»

Ora, esses «encardidos e fedorentos» eram, ainda nas palavras de Ellis, «uns nativos católicos», contra os quais se insurgia, pois estavam «todos repimpados na nossa igreja», uns tais Samuel e Francis, designados «focinhos amarelos».

Este parágrafo deixa bem patente a postura britânica face à portuguesa em termos de política colonial. Quanto a isso, estamos conversados.

Mais adiante, Flory, personagem principal dessa obra de Orwell, um homem que lutava por manter a dignidade face à mesquinhez da sociedade expatriada, responde nos seguintes moldes a uma inglesa recém-chegada que estranhara a presença de umas «criaturas bizarras» na igreja, ao Domingo, sendo que uma delas parecia quase branca: «São euro-asiáticas, filhas de pais brancos e de mães nativas. Demos-lhes a amigável alcunha de Barrigas Amarelas.»

Uns parágrafos adiante, o escritor, pela voz de Flory, traça o retrato da realidade bayingyi daquela época: «Os europeus não lhes tocam nem com um pau e vedam-lhes o acesso aos serviços governamentais subalternos. Nada lhes resta senão mendigarem, a menos que desistam por completo de pretenderem ser europeus. E, para sermos francos, não é de esperar que os podres diabos o façam. O seu quinhão de sangue branco é o único “haver” que possuem.»

Como se depreende desta passagem, vem de longe a reivindicação dessa tão especial casta de luso-descendentes.

No entender de Ellis, os euro-asiáticos «usam aqueles capacetes coloniais enormes para nos lembrarem de que possuem crânios europeus. Uma espécie de cota de armas». Depois, ao notar que Flory simpatiza com eles, acrescenta: «Têm um aspecto terrivelmente degenerado, não têm? Tão escanzelados, tão andrajosos, tão bajuladores, e as caras, de modo nenhum são honestas. Acho que estes euro-asiáticos são muito degenerados. Você não? Ouvi dizer que os mestiços herdam sempre o pior de ambas as raças.»

Flory responde-lhe que isso poderia ter que ver com a forma como eram criados e educados, lembrando-o de que eram os brancos os responsáveis pela sua existência.

Indigna-se o racista Ellis: «Mas, afinal de contas, você não é responsável. Quero dizer, só um homem com instintos muito baixos seria… hum… capaz de ter relações com mulheres nativas, não é verdade?»

Flory, sarcástico, responde: «Estou inteiramente de acordo. Mas os pais daqueles dois eram clérigos, acho eu.»

Nessa noite, já em Mandalay, de visita à igreja de Lafonds, o responsável da paróquia, o padre Canute, mostrando-me um planisfério afixado na parede, dizia:

– Repare como estamos esquecidos. O mapa-múndi birmanês omite a bandeira de Portugal.

De facto, nos cantos do mapa utilizado para ensinar Geografia em todas as escolas do país não constava o estandarte das quinas, o primeiro país europeu a estabelecer contactos com os antigos reinos do Pegu e de Arracão, embora surgissem quase todas as outras bandeiras do mundo, inclusive as de San Marino, Samoa, Guiné-Bissau e Vanuatu. (Um contacto que se manteria ao longo dos séculos desempenhando Macau um papel bem activo, como o demonstra a forte comunidade birmanesa residente no território). Não admirava, pois, que as pessoas, quando indicava a minha origem, satisfazendo-lhes a curiosidade, ficassem pensativas e perguntassem: «A que país pertence essa província ou colónia chamada Portugal?» Ou então: «Com que país faz fronteira?». Queriam saber também se tínhamos «uma língua própria» e coisas do género.

Ao manifestar a minha tristeza pela omissão, Canute (seria corruptela do apelido Canuto?) fez-me, muito inocentemente, a seguinte pergunta:

– Portugal faz parte das Nações Unidas?  Que queriam que lhe respondesse? E olhem que nem com o futebol nos safávamos. Horas depois, ao assistir a um desafio entre o Manchester United e uma outra equipa inglesa, acompanhado pelo bispo e o padre Peter, da paróquia de Chaunthaya, este perguntou-me:

– Qual é o desporto mais popular em Portugal?

Ficou pasmado quando lhe disse que era o futebol e que muitos jogadores portugueses integravam equipas conotadas a nível mundial. Apesar de desconhecer o desporto-rei nacional, o padre Peter passava bem por senhor abade beirão ou transmontano, com aquele seu andar curvado, barrete basco na cabeça, sempre com um cherot na boca e outro aguardando a vez no bolso da camisa.

Peter redimir-se-ia da sua «ignorância» ao sugerir a criação de uma espécie de museu bayingyi. Para tal, urgia iniciar quanto antes a recolha de objectos e documentos dispersos, evitando que fossem vendidos por tuta e meia.

Joaquim Magalhães de Castro, escritor e investigador da expansão portuguesa. Escreve neste espaço às quartas-feiras.

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O Sopro de Pak Tai:O cônsul e o enlevo feminino

FOTO Sopro Pak Tai (2)

Visitei o Japão por diversas ocasiões e ali cheguei a viver quase um ano, em Nara, não muito longe de Quioto, antiga capital do império.

Uma dessas visitas teve lugar após o devastador terramoto de Hanshin, ocorrido a 17 de Janeiro de 1995 e que atingiu em cheio a cidade portuária de Kobe, no sul do Japão.

O processo de reconstrução dessa tragédia que vitimara mais de cinco mil pessoas, apresentando ao país a astronómica factura de dez triliões de ienes, prolongar-se-ia, segundo as previsões da época, por mais de uma década. A julgar pelo que via, como, por exemplo, o edifício da Câmara Municipal, que continuava com o seu andar superior abatido, a fazer lembrar a dobra de um fole de acordeão, creio que essa era uma visão optimista. O sismo tinha ocorrido há sete meses, mas, em certos pontos da cidade parecia ter sido no dia anterior, e, como sempre acontece em situações do género, a prioridade da reconstrução ia toda para os edifícios onde estavam sedeadas as grandes marcas comerciais, possuidoras de consideráveis somas de capital para injectar de imediato na gigantesca operação de reconstrução.

Entre as pessoas com quem falei na altura estava o senhor Mishishige Hamada, um desses católicos que resultaram da obra de evangelização de Francisco Xavier e seus pares no longínquo século XVI. Nos finais da década de 1970 habitara Macau, «por um breve espaço de tempo», e dessa «pacata cidade» guardava «as melhores recordações». A vida entretanto levara-o até ao Canadá, onde residia há mais de quinze anos, e de onde Hamada acabara de chegar, para ver em que estado tinha ficado a sua casa paterna. Apanhara o avião com destino ao novíssimo aeroporto de Kansai, logo no dia a seguir à tragédia.

– Felizmente nenhum dos meus familiares sofreu qualquer dano pessoal ou material – dizia.

Estávamos ambos sentados num pequeno restaurante escondido na arcada comercial de Motomachi, o bairro chinês de Kobe, sorvendo ruidosamente a nossa massa udon, servida em enormes malgas.

A poucas dezenas de metros dali, junto a uma antiga área residencial por tradição reservada aos estrangeiros, onde viveu Wenceslau de Morais, exercendo as funções de cônsul antes de se mudar definitivamente para Tokushima, onde viria a falecer, avistava-se um templo praticamente destruído. Foi nesse exacto local que, em 1868, por altura da abertura do porto de Kobe aos navios ocidentais, o samurai Masa Nobu Zenzaru Taki feriu com gravidade um soldado norte-americano que, de forma provocatória, se tinha atravessado em frente a uma procissão xintoísta em curso. O incidente levou ao agravamento das relações entre japoneses e ocidentais, tendo como trágico desfecho o bombardeamento da cidade levado a cabo pelos navios estrangeiros ancorados no porto.

Num opúsculo que intitulou Fernão Mendes Pinto no Japão, inicialmente publicado em crónicas no Comércio do Porto, Wenscelau de Morais tece alguns comentários, «cuidando corrigir», como ele diz, algumas coisas que escreveu o mais conhecido dos nossos viajantes.

Morais estranha, por exemplo, que Mendes Pinto, que ele considerava um «delicioso impressionista», não tenha dado o devido destaque à «formosa e impressiva paisagem japonesa», e, mais surpreendente ainda, que tenha ficado mudo «perante um outro enlevo do Japão, o enlevo feminino – a japonesa». Se se aceita como legítimo o primeiro reparo de Wenscelau de Morais, um apaixonado pelo Oriente, como bem se sabe, já não se pode aceitar o segundo argumento, pois Fernão Mendes Pinto realça por diversas ocasiões a beleza das japoneses, de resto, como o faz em relação às mulheres chineses e às mulheres das diferentes nações asiáticas que visitou.

Mendes Pinto diz-nos que, em certa ocasião, foi-lhes servida «uma muito abastada mesa de iguarias muito limpas e bem guisadas», e servida «por mulheres muito fermosas», notando ainda que muitos dos presentes se admiraram quando os viram comer com as mãos, pois no Japão, à semelhança da China, costuma-se «comer com dous paus», sendo considerada «muito grande sujidade fazê-lo com a mão, como nós costumámos».

Mais adiante, Mendes Pinto volta a realçar a beleza das nipónicas ao falar-nos de «seis moças fermosas e muito ricamente vestidas, em trajos de homens mercadores, com seus terçados e adagas de ouro na cinta, e de aspectos graves e autorizados, porque todas eram filhas dos principais senhores do reino». Aproveitando o ensejo, e agora estabelecendo um paralelo entre as culturas chinesa e japonesa, o aventureiro informa que os habitantes dessa terra «eram como os chins», pois «vestiam linho, algodão, e seda, com alguns damascos que lhe trazem do Nanquim», e que, como eles, eram também «muito comedores e dados às delícias da carne e pouco inclinados às armas, e muito faltos delas, por onde parece que será muito fácil conquistá-los».

Wenscelau de Morais conta-nos que, em 1839, na altura em que exercia funções em Macau, «como imediato da capitania, inspector do ópio e professor», tinha ido ao Japão, «comissionado pelo governo daquele território», para comprar num dos arsenais do império algumas peças de artilharia de montanha. Admite Morais que não pode reter um sorriso quando leu a passagem da Peregrinação que refere a introdução da espingarda pelos portugueses, «considerada a circunstância de ter vindo pedir armas de fogo aos japoneses, quando foi Diogo Zeimoto quem ofereceu aos japoneses a primeira arma de fogo que eles viram. Os tempos mudam: e, no teatro mundial, os papéis invertem-se, por vezes…»

Estranhamente, o senhor Mishishige Hamada, nado e criado em Kobe, bem perto da antiga legação lusa, do cônsul Morais, dedicado orientalista e confesso admirador da beleza e dos dotes da mulher local, nunca ouvira falar.

IIM LOGOTIPO - 2015 (15)

Joaquim Magalhães de Castro, Escritor e Investigador da Expansão Portuguesa. Escreve neste espaço às quartas-feiras.

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Tempo, tempo, tempo, tempo

 

(…)

 

Quando o tempo for propício

Tempo tempo tempo tempo

De modo que o meu espírito

Ganhe um brilho definitivo

 

(…)

 

Caetano Veloso

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O livro de José Luís Hopffer Almada, “Rememoração  do Tempo e da Humidade” (Imprensa Nacional Casa da Moeda), que temos em mãos para uma leitura prazenteira, sem recusar a nossa apreciação crítica, reconfirma algo já escrito nas estrelas das letras cabo-verdianas.

 

Hopffer Almada realiza neste seu novo livro a articulação de seis outros ‘livros’ – ‘A infância e os mitos assinalados’ e o subtítulo ‘Assomada nocturna revisitada’; ‘Terra Longe-Diásporas’; ‘Sanvicentinas (Reformulações Mindelenses)’; ‘Revisitações da Casa do Tempo e do Saber’; ‘Praianas’; e ‘(Es) pasmos da Desesperança e da Dor de Liberdade (ou Reencenações da Maturidade dos Tempos e dos Heróis Reinventados)’.  Livro que, aporta em subtítulo ‘Poema de Nzé di Sant’ y Águ’, que o ressignifica em completude assonante do verso em mote Lembras-te e dos versos em refrão Todos nós éramos/todos nós fomos; Livro que sectoriza o leitor para cada livro de cenários profusos, mas numa linha de remarcação do sujeito poético complexo.

 

O arco e a lira em José Luís Hopffer Almada também armam-se da recordação, da ontologia, da epifania e da litania. São orações, se quisermos, em toda a sua ambivalência, porquanto empreendem os  versos tanto na retroversão do passado (ecos e ressonâncias) do Poeta, como na prospecção do futuro (desejos e pulsares) no projeto poético tornado livro. Fica-nos a dúvida: será que a paixão vigorosa do puro texto a varrer a temporalidade o nascedouro do épico moderno?

 

Somos leitores de José Luís Hopffer Almada desde os seus versos, revelados aquando do Movimento Pró Cultura, na segunda metade dos anos oitenta do século passado. Temo-lo lido, com interesse e com expetativa, pondo foco nas suas máscaras poéticas plurais, diríamos mesmo nos seus heterónimos, e a perscrutar inovações estéticas que os novos tempos exigem. Temos acompanhado, amiúde, a sua decisão de buscar algo novo e diferente à linearidade, às crendices e às alfaias do fazer poético nacional. E, neste afã particular, estamos, ademais, alinhados à premência das ruturas estéticas que, cogitadas e ensaiadas, ainda não aconteceram em Cabo Verde. Este livro, nos seus pontos e contrapontos, afirma-se tentado ao diapasão do Novo Tempo.

 

 

2.

 

O livro “Tempos de um Tempo que Passou” (Acácia Editora), de Jorge Querido, que tivemos o privilégio de apresentar na Associação Cabo-verdiana de Lisboa, é um convite à leitura atenta, parcimoniosa e crítica. Passando um olhar sobre os vários tempos que compõem o Tempo Contemporâneo Cabo-verdiano, o Autor propõe-nos transitar por seus textos não só ao considerável equilíbrio, mas também na vertigem dos imponderáveis.

 

O que chama a atenção neste novo livro é a fluidez da linguagem e o sortilégio da narrativa a revelarem vários momentos existenciais e históricos. É a consciência crítica da função memorialista de um ‘eu’ que, na primeira pessoa do singular, não se desapega do coletivo, nem se aparta de coresponsabilidade na montagem do ethos nacional. Dito de outra forma: temos aqui o carrossel das temporalidades, levando voz interior e suas lembranças expostas, muito para além das instaladas e estafadas azias políticas. Temos aqui uma exposição estilística bem conseguida, amiúde, já denunciada no livro anterior, “Um Demorado Olhar sobre Cabo Verde”.

 

Momentos houve em que olhámos para esta obra como uma paráfrase de romance histórico. Em verdade, o que caracteriza o romance histórico é a narrativa ficcional a relacionar-se com factos históricos. A composição das personagens e dos cenários é feita de modo que estejam em concordância com documentos e dados históricos, oferecendo assim ao leitor uma noção da vida e dos costumes da época e dos tempos. Estamos perante uma narrativa factual, mas com deslocamentos e aproximações que entrelaçam literatura, experiência e figuração do tempo, baseados em documentos e dados históricos. Parecendo cumprir o vaticínio de Lukács, a temporalidade, nele gerada por uma lógica de encadeamento causal entre passado-presente-futuro, esbarra-se com um complexo hibridismo narrativo e documentado.

 

A escrita de Jorge Querido, ressalvando a sua singularidade e a sua dicção textual, num diapasão da tradição crítica que vem de longe nas letras cabo-verdianas, incorpora novos significantes, mas similar significado, toda uma linguagem que o identifica com escritores de exegese e de afrontamento cívicos das temporalidades, como amiúde foram, outrora, Eugénio Tavares, Pedro Monteiro Cardoso e Luís Loff de Vasconcelos.

Filinto Elísio

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O Sopro de Pak Tai:A velha questão do património

 

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Aquando da transferência de soberania do território de Macau para a China, escrevia um conceituado cronista da nossa praça que «haverá sempre Portugal onde, apesar das ausências de soberania, houver mulheres e homens que se lembrem dele». E depois dava exemplos de locais onde se manifestava a dita presença portuguesa: «Aqui em Macau, junto às Portas do Cerco, na Rua do Saco em Bombaim, numa praça de Kuala Lumpur, ou em Mombaça».

Talvez o dito cronista não tenha visitado esses lugares na qualidade de cidadão anónimo, auscultando o sentir das pessoas que aí vivem. Se o tivesse feito, se tivesse deambulado pelas ruelas da Macau antiga, se tivesse dormido numa pensão barata da Rua do Saco em Bombaim, se tivesse comido uma sobremesa malaia numa das praças de Kuala Lumpur ou rondado os mercados de Mombaça, saberia muito bem que essa lembrança de Portugal é apenas isso: uma vaga lembrança. Às vezes uma lembrança de apelidos portugueses, outras nem disso; quase sempre é uma lembrança coberta de poeira e envolta em densa névoa. O estado degradado de muito do património de origem portuguesa disseminado por esse mundo fora e a usurpação descarada e impune do legado histórico que deixámos no Japão — mais concretamente em Nagasáqui — por parte dos nossos parceiros europeus da Holanda (um exemplo entre muitos) comprovam o nosso alheamento em relação a uma riqueza que nenhum outro país conseguiu em tão pouco tempo.

Pobre do povo que se contenta com meras lembranças. Sabe-se que a implacável roda do tempo tende a apagá-las, por completo. Para que os vestígios da nossa presença, do nosso legado, não caiam no esquecimento, deveríamos actuar como se estivéssemos perante um ente querido ou um amigo que não vemos há muito tempo e realizar visitas regulares a esses locais. Isto, enquanto desígnios mais altos não tomam a decisão de levar a cabo uma investigação séria no sentido de pesquisar e inventariar o património cultural português presente noutras culturas.

Esta dissertação conduz-nos ao que me traz em mais esta viagem de reconhecimento de algum do nossa património espalhado pelo mundo (desta vez com uma intrínsica ligação a Macau) e tudo a que ele pode ser associado. E como o património está ligado à memória e esta ao conhecimento que se tem ou não de um determinado povo, considero relevantes as considerações que atrás deixei.

Em Outubro de 2008 tive a oportunidade de participar no projecto Sete Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo, que, como não podia de ser, incluíu Macau no seu roteiro. Mesmo antes de partir para o terreno, munido com equipamento fotográfico apropriado, computador e um bom par de livros — um deles a História da Expansão Portuguesa, de Jaime Cortesão, porventura a melhor síntese da epopeia dos Descobrimentos —, estava consciente da dificuldade em separar o trigo do joio num campo tão fértil como o que estava em jogo, ou, melhor dizendo, a concurso. A realidade no terreno é sempre mais vasta do que a imaginada, surpreendente até para o mais bem preparado dos investigadores com espírito viandante.

Não sou dado a numerologia ou a quaisquer outras formas de esoterismo, mas não posso negar que existe algo de único no número sete. Eram sete as maravilhas do mundo antigo; sete são os dias da semana e as colinas de Roma, Lisboa e Macau, só para citar algumas das cidades que têm muito mais em comum do que à primeira vista aparentam. Também nessa aventura o número sete foi o mote inspirador, pois era esse o número dos finalistas do concurso que teve o seu término a 10 de Junho de 2009. Foram vinte e sete os locais visitados, mas poderiam ter sido outros tantos, ou múltiplos desses, já que é vastíssimo o património que deixámos pelo mundo fora.

Para mim, visitar alguns dos mais carismáticos lugares por onde passaram os portugueses de antanho com o objectivo de os documentar e de lhes sentir o pulsar foi um encontro também com o meu próprio passado. Já por ali tinha andado, noutras deambulações, com outra idade e outros objectivos. Foi o caso de Goa, onde estive pela primeira vez numa altura em que minha única preocupação era viajar por simples prazer, algo de que sou agora incapaz. «Há um tempo para tudo», como é costume dizer-se.

O leque é, portanto, largo e o critério de selecção discutível, mas isso são correntes de um rio que não nos levaria a qualquer foz, daí nada melhor do que concentrar-me nas nascentes, mergulhando nelas de cabeça — e que fresca é a água —, sem hesitações.

Por constrangimentos de gestão de tempo, aquela foi uma viagem com os dias contados, um a um, mas com diferentes e inesperadas mudanças de rumo que me levaram de um continente a outro, pois a dificuldade em obter vistos para alguns locais a isso me obrigou.

Tão-pouco houve uma preocupação em seguir um rumo cronológico, já que, a determinada altura, os Descobrimentos e a consequente criação de património — edificação de igrejas, de fortalezas, de centros históricos — passaram a acontecer em simultâneo. E os contactos, as ditas pontes, foram-se estabelecendo.

Figuras históricas que se destacaram a Oriente viriam a definhar nas Américas, enquanto outros que aqui tinham tido existências cinzentas ficariam para sempre nos anais asiáticos ou fundariam as primeiras povoações no continente africano, que já então era explorado no seu âmago, embora os britânicos, hábeis usurpadores de factos históricos alheios, continuem ainda hoje a ser considerados os verdadeiros reveladores dos seus mistérios.

Plantas que eram de uma latitude viajaram para outra latitude e a ela se adaptaram; as sementes que deram origem às romãzeiras e à latada de vinha que ainda hoje se podem ver em Diamantina, no quintal da casa de Chica da Silva – a brava e caprichosa negra que ousou desafiar a elite branca da época colonial – vieram no fundo dos mesmos porões que levavam os escravos acorrentados e traziam o ouro e as especiarias.

A bela e o monstro partilham, em permanência, as linhas com que se preencheram e preenchem as páginas da História da Humanidade.

Joaquim Magalhães de Castro, escritor e investigador da expansão portuguesa. Escreve neste espaço às quartas-feiras.

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O Sopro de Pak Tai: Fraquezas e vícios lusitanos

1.Pak Tai

Foi em Junho, mês festivo para os kristang de Malaca, veneradores de São Pedro, o santo padroeiro, que pela primeira vez travei conhecimento com essa peculiar comunidade luso-descendente. Mas nem tudo eram rosas naquele «jardim à beira mar-plantado» – como descrevia um panfleto informativo, numa clara analogia ao nosso país.
 Os breves dias que passei no kampung foram suficientes para que me apercebesse de uma notória divisão entre as hostes locais. De um lado, pontuava o Comité dos Pescadores, cuja figura de proa era Patrick Félix, um homem de sessenta e cinco anos, mas que aparentava quarenta, que me ofereceu alojamento em sua casa. No lado oposto, uma espécie de junta de freguesia, o denominado painel, composto por dez elementos e liderado por um regedor nomeado pelas autoridades provinciais de Malaca. As desavenças eram mais do que muitas.
 Falava-se de pessoas infiltradas na comunidade para, em nome dela, tirar proveitos pessoais.

– A mim, por exemplo, consideram-me um forasteiro só porque não habito aqui – argumentava Harold de Melo. – Sei que não gostam de mim porque digo o que penso. Estão no direito deles. Não posso, no entanto, admitir que me discriminem. Sou um de Melo. Sou tão português como eles.
 Pelos vistos, o pescador era mais português do que certos elementos do painel. A começar pelo anterior regedor, Michael Young, de ascendência inglesa e sem qualquer antepassado luso, ao contrário do que acontecia com gente de apelido holandês como Denker, Overee e Zuzartee. Tão pouco era luso-descendente o ex-vice-presidente Michael Banerji, um bengali a quem acusavam de ter roubado material electrónico.

A propósito de oportunismos e apropriações indevidas, veio a lume o caso de uma senhora que se apresentara como portuguesa com o objectivo de conseguir um subsídio da Fundação Calouste Gulbenkian para comprar máquinas de costura, tendo em vista o ensino da arte do bordado junto das crianças do bairro.

– O dinheiro recebeu-o, mas até hoje, e já passaram muitos anos, ainda não vimos nem máquina de costura nem aulas.

As críticas eram também dirigidas a elementos da comunidade prendados com estadias em Macau e Portugal «e que nunca se preocuparam em partilhar a sua experiência». Era referida uma personalidade local (entretanto falecida) que tivera bolsa para estudar português e que, quando lhe pediram que ensinasse o que aprendera, exigira dinheiro.

– O mais grave – salientava Harold – é que esse senhor foi enviado para Lisboa em nome da comunidade, tendo por isso responsabilidades acrescidas.

Era precisamente devido à actuação do painel, «que está permanentemente a pedir donativos, por todo o país e até em Singapura, manchando o nosso bom nome», que os pescadores vinham a público reafirmar que não precisavam de esmolas. Apenas queriam salvaguardar o seu ganha-pão.

Nos bai no mar a note e dia, nos nang pobri. Nussa riqueza está no mar – dizia Félix, em kristang.

Como comprovativo dos pedidos indevidos, mostraram-me uma fotocópia com o relatório e contas de 1996, que esse órgão apresentava todos os anos por altura da Festa de São Pedro. Num dos itens, de uma lista de despesas que totalizava os 28 mil ringgits, claramente se discriminava um total de mil e 500 ringitts relativos ao «jantar e bebidas para o Governador de Macau, mulher e 100 convidados em 28 de Outubro de 1995».

– Já viu a vergonha?! – insurgia-se Patrick. – Esta lista correu toda a Malásia e Singapura, pois foi enviada aos doadores. Quem a leu poderá ter ficado a pensar que o Governo de Macau não quis custear o jantar de recepção e esteve dependente dos donativos que o painel foi pedinchar por todo o lado… Já viu a vergonha?!

Na lista havia ainda outros itens que indignavam o pescador.
 – Já viu algum mendigo, cego ou doente mental no bairro? Face ao meu negativo abanar de cabeça, replicou: 
– Então porque é que insistem em apresentar contas de gastos em festas para pobres, deficientes mentais, cegos e velhos?
 Na brochura das festas desse ano, os obséquios e agradecimentos estavam lá todos. Ao governo local, ao chefe do departamento de turismo e até mesmo aos próprios investidores.

– Não têm vergonha na cara – acusava Félix. – Pedincham como se fôssemos uns miseráveis. E fazem-no em nosso nome, o que é mais grave ainda.

Malgrado os protestos, o comité parecia não encontrar grande receptividade junto dos restantes pescadores, que se mostravam apáticos. Por seu lado, o painel queixava-se da falta de cooperação dos pescadores:

– Só lhes pedimos que tenham confiança – dizia-me um dos seus mais altos responsáveis, acrescentando depois em tom paternal:

– Sabe, muitos dos pescadores são iletrados.

Iletrados ou não, o certo é que esses homens do mar – herdeiros directos dos soldados e marinheiros de Albuquerque, que ali se miscigenaram com mulheres asiáticas, constituindo mais tarde famílias que ajudariam a povoar uma Macau ainda embrionária – não perdiam uma só ocasião para dar largas ao seu descontentamento.

Joaquim Magalhães de Castro, escritor e investigador da expansão portuguesa. Escreve neste espaço às quartas-feiras.

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O siso e o Siza

1.Estoril Tap Sec

 

O fraco rei faz fraca a forte gente. O ditame de Camões só não veste Macau como uma luva porque, de fortes, as gentes do burgo têm muito pouco: são fracos os governantes, que não escondem a vulnerabilidade sempre que sopra o vendaval dos grandes interesses, são péssimas as elites que não vêm o mais das vezes mais além do que o próprio bolso e é fraca e disforme a massa anónima que constitui a sociedade civil do território, que se contenta e se desculpa com o imediato para não ter que indagar sobre o legado que irá deixar às novas gerações. Substitua-se “o panem” dos romanos pelo sushi de alguns restaurantes que caíram nas boas graças da classe média e o “circenses” com que Nero entretinha a prole por uns quantos desfiles e espectáculos de fogo-de-artifício e eis Macau, sem tirar nem pôr.

O silêncio, tão prezado em algumas filosofias orientais, chega, no território, a ter o efeito contrário: chega a ser incomodativo, irritante mesmo. Mas não tão irritante como uma certa hipocrisia que permeia o processo de decisão política, conformado que está pela obrigação de dar uma aparência democrática ao que democrático nunca foi.

Um dos préstimos de se viver num regime não democrático é o de se saber, de certo modo, aquilo que se pode esperar de governos não eleitos e não representativos. Ninguém ficaria verdadeiramente surpreendido se amanhã ou um destes dias a junta militar tailandesa, por exemplo, se decidisse encerrar jornais independentes, dado que encerrar jornais, perseguir a oposição e oprimir minorias foi algo que outras juntas militares fizeram no passado em circunstâncias idênticas. No fundo, ninguém em seu perfeito juízo espera de um regime autocrático ou não-democrático decisões de natureza democrática, que tenham em conta as convicções ou os interesses da maioria.

Não sendo necessariamente autocrático, o sistema político do território de democrático também não tem muito. Dizer que Macau é uma democracia por dispor de um hemiciclo subordinado ao Governo com quarenta e tal por cento de deputados eleitos directamente pela população é esticar o elástico em demasia e cair despudoradamente no exagero. Ninguém na posse plena das suas faculdades acredita, por exemplo, que a Assembleia Legislativa aprove uma proposta de lei sindical apresentada por Pereira Coutinho e o diploma até pode ser apresentado mil vezes. Ou que o Governo, num rasgo de lúcida sensatez decida arriscar-se por caminhos ínvios e submeta a plebiscito popular o futuro de Coloane, uma hipótese circunstancialmente inviável dado que a figura do referendo não faz parte do cardápio político do território e não está inscrita na Lei Básica. Um das características dos regimes não-democráticos é mesmo essa: excluir o que à partida seriam as soluções mais representativas e consensuais.

Não sendo carne, nem peixe e não devendo, em abono da verdade, justificações ao eleitorado – uma vez que não é produto de um escrutínio por sufrágio universal –  o Governo poderia muito bem dar-se, de quando em vez, ao atrevimento de mandar um murro na mesa e decidir, em vez de nos enloular a todos com consultas públicas e conselhos consultivos que ao invés de agilizarem os processos de decisão, o  enredam numa teia de interesses. Em aspectos como a lei laboral, sobretudo nos capítulos atinentes à maternidade, a salvaguarda irredutível do património ou mesmo a defesa dos valores ambientais, medidas sensatas de governação seriam garantidamente bem acolhidas por uma esmagadora maioria da população.

Um murro bem dado na mesa, em certas circunstâncias, poderia até fazer milagres em prol da imagem do Governo ou, pelo menos, poupá-lo à vergonha e ao despudor. Veja-se o caso do hotel Estoril. O anúncio de que a obra que vai nascer no lugar do antigo complexo hoteleiro já não terá a assinatura de Siza Vieira fere de morte as boas intenções de Alexis Tam e rouba razão ao secretário no longo braço-de-ferro que manteve com os que defendem o valor patrimonial do edifício. Ainda que o Estoril não seja um portento arquitectónico, não é exactamente o mesmo ver nascer no seu lugar uma obra de Siza Vieira ou um projecto com a assinatura de sabe lá Deus quem. E não é, porque nenhum arquitecto em Macau, por mais dotado, competente e inovador que seja tem um Pritzker no currículo e parte importante do charme da empreitada de requalificação do Tap Seac (senão mesmo o único motivo) desaguava nesse desígnio maior de se assistir à substituição de património – com capital histórico ou emocional ou seja lá o que for – por património de outra natureza, a do prestígio que só um arquitecto com uma carreira como Siza Vieira (ou Zaha Hadid ou Frank Gehry ou Rem Koolhaas) pode trazer a uma cidade.

A novela do Estoril sempre teve um enredo demasiado abstruso para que o processo fosse olhado de forma racional e desapaixonada, até porque o casamento entre o tradicional e o contemporâneo quase nunca foi feito, nesta cidade, de modo consensual e as diversas intervenções de que a zona do Tap Seac foi alvo ao longo dos anos são disso um exemplo. Siza trazia uma certa nota de dignidade ao projecto e agora que se sabe que do Pritzker português não rezará a história, pouco mais há a ressalvar do que uma certa ideia de que nos venderam de novo gato por lebre: o que se prefigurava um projecto de grande potencial arquitectónico e turístico está desde sexta-feira reduzido à insignificância porque o Governo vacila ao primeiro sopro e se mostra incapaz de dizer: “Meus amigos, quem decide somos nós”.

A este Governo falta que lhe cresça qualquer coisinha. Coragem, garras e um ou outro dos dentes do siso, porque deles se diz que trazem consigo juízo. Pode ser que com os dentes e com o tino, chegue também maior responsabilidade e maior respeito por quem é governado.

 

Marco Carvalho

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Preparar o futuro

1.Luis Sequeira
«Jovem, Eu te ordeno; levanta-te», diz Jesus neste Décimo Domingo do Ano Litúrgico. Quase sinto como se o Senhor estivesse a dirigir-se, com voz forte e firme, à Juventude, aos jovens de hoje, e a desafiá-los, declarando: ‘Levantai-vos, enfrentai o mundo.’
Torna-se avassalador e, pior, aterrador a torrente de notícias que nos chegam, de todos os continentes e a toda a hora e momento, a revelar quanta falsidade e mentira, manipulação e chantagem, corrupção e exploração, violência e morte na nossa sociedade actual. Por mais inacreditável que pareça, toda esta onda chega mesmo aos locais mais remotos e perdidos. Quem fará mudar esta situação, deveras, confrangedora ? A Esperança está nos mais novos. A Humanidade precisa dos Jovens para a sua transformação.
A reflexão que me vem é surpreendente. Pode até apresentar-se como chocante. De facto, toca-me mais o vigor das palavras de Jesus Cristo ao jovem, a chamá-lo à vida e à responsabilidade, do que ficar a contemplá-lo na situação de morto, circundado pelo choro da mãe e dos amigos e conhecidos.
Esta leitura, digamos simbólica e espiritual, leva-me ainda mais longe, a ser mais acutilante. Muito em particular, faz-me abordar um problema muito sério na sociedade actual: a vida familiar. Refiro-me, para ser mais directo, aos pais e ao seu papel na educação e formação dos filhos, especialmente tendo em conta a necessidade tamanha de novos paradigmas de existência no mundo. Estão, realmente, os pais, de hoje, a prepararem os homens e as mulheres do futuro, capazes de criar um mundo novo, mais justo, harmonioso e pacífico? Embora reconheça que possa ser melindroso tocar o assunto, em especial, da maneira que me chama a atenção, contudo, também não posso furtar-me a fazer uma reflexão sobre uma matéria que, deixada em aberto e sem solução, pode, no futuro, ser catastrófico para a Humanidade. Precisamos de formar Jovens para o futuro. E os Pais ? Estão eles preparados? Estão eles concientes das responsabilidades ?
O mesmo Evangelho, na mesma ordem de ideias e segundo a minha própria percepção e sensibilidade, é como se lançasse a pergunta á mãe: ‘Mulher, porque choras? A vida continua. Muito há que fazer.’
‘A mãe que chora’ pode bem simbolizar a crise, muito real entre mulheres, de saber o que é ‘ser mãe’ na sociedade contemporânea. Que o digam as crianças, em lágrimas, nos nossos colégios, quando falam do que se passa ‘em casa.’! E quando nos é permitido entrar nos recantos íntimos do coração das pessoa e ’a relação com a mãe’ é tocada ?
A contínua queixa sobre ‘o pai distante, ausente, quase desaparecido ou morto’ dos alunos na escola primária ou no colégio secundário e mesmo entre os pequenitos do Jardim de Infãncia é um facto inegável. E Cristo perguntará: ‘E vós, homens, onde andais ? Vós pais, onde estão os vossos filhos, se não lhes dais atenção e carinho ?’

Eis, em parte, a razão do apelo do Papa Francisco e do nosso Bispo Stephen para trabalhar mais na formação da família.

Luís Sequeira. Jesuíta. Antigo Superior da Companhia de Jesus em Macau. Escreve neste espaço às sextas-feiras.

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Em busca de um reposicionamento para a matriz cultural de Macau

 

2-minchi

A popularidade do conceito «cultura» na actualidade é inegável. Não há contexto onde a condição humana esteja presente que não o reclame como objecto de estudo, de análise, de interpretação e de explicação, seja ela considerada na óptica macro ou micro social, a necessidade de o reposicionarmos nas várias vertentes que o utilizam e o reclamam torna-se premente e, nesse sentido, a referência à ciência antropológica é inevitável.

Na realidade, a Antropologia –  às vezes por culpa própria – esconde-se por detrás de uma visão hermética e ortodoxa, receando alargar a sua visão sobre realidades que lhe fogem ao caminho traçado, permitindo assim uma utilização distorcida e o consequente abuso conceptual do conceito desligado desta ciência, o que acontece, particularmente, no contexto das várias versões sobre a cultura da sociedade macaense no sentido ampliado.

Nos últimos 20 anos, temos assistido ao desmoronamento de algumas das grandes teorias no domínio das ciências sociais, ou seja, das certezas adquiridas passámos às incertezas embrionárias que as novas abordagens vão suscitando.

Numa primeira aproximação sobre esta questão, podemos admitir que reina alguma confusão e bastante fragmentação no campo teórico das ciências sociais em geral, e do conceito de «cultura» em particular, tal é o número das novas teorias e novas abordagens que se evidenciam, todas elas reclamando o sentido mais apropriado para o lugar da análise do fenómeno social, o que as torna quase em lugares de “não ciência”.

No entanto, esta dinâmica tem permitido também dar alguns passos no sentido de uma eventual ruptura epistemológica: isto é, as ciências sociais no geral, começam a desistir de adoptar o “caminho” das chamadas ciências exactas (ou não sociais) para procurar outras abordagens que não sejam o da analogia de fazer leis nomotéticas de aplicação universal que reinam no mundo físico e natural. Porém, esta posição ainda não é definitiva.

Por detrás desta confusão que se estabeleceu, emerge uma nova vontade e um novo esforço em compreender de forma mais minuciosa o mundo do social e o mundo dos “Homens”, essencialmente, a partir da possibilidade de separar os dois mundos, o físico-natural e o social, sem no entanto, descurar a possibilidade da inter-relação de ambos num ciclo de relação permanente entre o Homem e a Natureza e vice-versa, estimulando a formulação de leituras distintas para uma e outra realidade.

A vontade de explorar esta dualidade tem-se revelado mais intensa na produção de ideias do que propriamente na tentação em formular mega teorias, o que tem gerado uma produção em exponencial de pequenas teorias emergentes que se baseiam em observações assentes quer numa etnografia descritiva, quer numa especulação de empirismo abstracto, nomeadamente, no que se refere aos estudos sobre as singularidades locais, como é o caso de Macau.

A própria Antropologia não constitui excepção a esta regra. Múltiplas foram as trajectórias e experiências saídas destes últimos 20 a 30 anos. Apenas a título classificatório podemos aqui referir uma possível categorização agrupada em três grandes movimentos:

  • Um primeiro, que se centra nos estudos em torno da pessoa/indivíduo, (p. ex. as questões de género, identidade, cognitivas etc.)

 

  • Um segundo, em torno dos estudos sobre as práticas dos actores sociais em grupo nas sociedades (p. ex. as configurações culturais, os agrupamentos sociais, as comunidades, etc.)

 

  • Por fim, um terceiro, centrado nos estudos sobre as instituições e as representações colectivas (p. ex. o simbólico, os códigos linguísticos, as estruturas sociais, etc.)

Partindo desta constelação, a Antropologia tem vindo a tomar uma posição mais interventiva na percepção das dimensões que lhe dizem respeito no quadro interpretativo das sociedades singulares e por consequência do contexto e das dinâmicas onde as mesmas se desenvolvem.

Em boa parte a Antropologia tem vindo a alicerçar o conceito de «comunidade» ao contexto das sociedades singulares, retomando o princípio do sentimento de pertença e a ordem de inclusão/exclusão que as mesmas comportam, ou como foi já sugerido várias vezes nestas crónicas, a necessidade de realçar as bases de uma abordagem antropo-cultural (apesar da redundância) que valorize a singularidade de Macau no seu «modo de vida» específico sem a excluir como protótipo de uma sociedade contemporânea onde o individual e o institucional emergem como referência à própria modernização chinesa.

O tema por si só não se esgota nestas breves linhas, como é óbvio, apenas temos a pretensão de ir “alimentando” as apreciações que vamos formulando em torno de Macau nas suas várias abordagens quando a queremos enquadrar no seu modelo cultural.

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Carlos Piteira

Investigador do Instituto do Oriente

Docente do Instituto Superior de Ciências Socias e Politicas / Universidade de Lisboa

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O Sopro de Pak Tai:Onde pára o padrão de Duarte Coelho?

 

FOTO Pak Tai desta semana (1)

Contemporânea de Macau e Malaca, Hoi An, vila ribeirinha a sul de Danang, na costa vietnamita, era conhecida outrora pelo nome de Faifo e, entre os séculos XVI e XIX, foi um dos mais importantes portos internacionais do Sudeste asiático. Os seus habitantes referiam‐se aos portugueses – os putaonhá – como os primeiros europeus a chegar ao Vietname, mas ficavam por aí, desconhecendo que a norte, a pouco mais de mil quilómetros da sua terra, o território de Macau – para onde alguns (será mais correcto dizer, algumas) começavam a «emigrar» em grande número, e muitos outros ali tinham encontrado refúgio, depois de meses à deriva nos mares do Sul da China, sujeitos às intempéries – teve mais de quatro séculos para se habituar à presença desses estranhos de nariz comprido e pêlo no corpo que, entre outras bagagens, trouxeram a espingarda e a cruz para estas paragens. Desconheciam ainda que qualquer vinho português de marca, depois da devida divulgação, enfiaria na prateleira do esquecimento as garrafas de Chianti e de outros vinhos italianos que já então lhe inundavam o mercado.

Nguyen Dru, um dos vários pintores locais que ali conheci, falava francês e inglês com uma fluidez admirável, sobretudo se considerarmos as raras ocasiões que tinha para comunicar com estrangeiros: «Há muitos ocidentais que visitam o nosso país, porém, a grande maioria não tem qualquer contacto directo connosco», queixava‐se, perguntando‐me depois, algo admirado: «Mas vivem portugueses em Macau?» Embora não soubesse desse elo de ligação entre Portugal e Macau, Nguyen estava ciente que fora um grupo de aventureiros portugueses que, em 1516, inaugurara a era do contacto vietnamita com o mundo ocidental. Entre esses aventureiros, o nome de Duarte Coelho, que também deixou pegadas pelo Brasil, é o mais relevante. Continua por localizar um padrão que ergueu algures na orla costeira dos antigos reinos do Tonquim, da Cochinchina e de Champa, que correspondem ao actual território vietnamita.

Não só não deixámos fortalezas no Vietname como recusámos, por diversas ocasiões, a oferta dos soberanos locais para que erguêssemos bairro e feitoria na antiga cidade de Tourão (actual Danang), embora aí tivéssemos comerciado intensamente, assim como em Faifo e Sinoa (actual Hué), e ainda em portos mais a norte, vizinhos de Hanói.

Muito há ainda a investigar, a desmistificar e a divulgar no que se refere às relações dos portugueses de Macau com as famílias rivais dos Nguyen e dos Trinh, senhores dos reinos da Cochinchina e do Tonquim, respectivamente, ambos fiéis vassalos do imperador da China. Tanto um como outro tentaram sempre atrair os mercadores portugueses à sua área de influência, se bem que tenha havido longos períodos de interdições ao comércio e até guerras, provocadas sobretudo pelo excesso de zelo dos missionários que chegavam a todo o lado a bordo das embarcações mercantis.

Ao longo de todo o processo de expansão, a religião e o comércio estiveram sempre associados, para o bem e para o mal. Para que pudessem exercer a sua actividade livremente, padres e comerciantes tinham de se munir de valiosos presentes, pois, nessa matéria, os Trinh e os Ngyuen eram insaciáveis. Fundamental para a manutenção das boas relações foi o fornecimento de tecnologia militar, de armas e de homens que davam formação aos exércitos locais. Nessa área há a salientar o papel de um mestiço de Macau, João da Cruz, principal fundidor na capital imperial de Sinoa. Existem ainda hoje, espalhadas pelos terrenos intramuros da fortaleza dessa cidade, canhões, bacias, caldeirões e outros objectos de bronze que ostentam o seu selo.

No rasto dos mercadores, em 1527, vieram os missionários dominicanos, e, em 1535, o primeiro militar, o capitão António Faria, ao que consta, responsável pelo estabelecimento do entreposto comercial português em Faifo. Outros missionários portugueses chegariam, entretanto, acabando por estabelecer uma missão em 1596. Mas só 19 anos mais tarde, quando os jesuítas, expulsos do Japão, foram autorizados a entrar no Vietname, é que o cristianismo ganhou verdadeira solidez. No ano da graça de 1615, chegavam a Hoi An, vindos das terras do Sol nascente, o napolitano Francisco Buzoni e o português Diego Carvalho, os dois primeiros jesuítas a colocarem os pés em território vietnamita. Com eles vinha o leigo António Dias e Joseph Paul, um japonês convertido.

Bem cedo os europeus se deram conta da extrema dificuldade em efectuar um comércio rendível com o Vietname e de propagar aí a fé cristã. Uma a uma, as delegações ocidentais foram abandonando as respectivas feitorias e, após 1700, apenas os portugueses eram capazes de manter relações comerciais com aquele país, numa época em que o declínio do império das quinas era já um processo irreversível. Ficaríamos por aí. Até hoje.

Joaquim Magalhães de Castro, escritor e investigador da expansão portuguesa. Escreve neste espaço às quartas-feiras.

IIM LOGOTIPO - 2015 (2)

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