Condignos e longe daqui

Inês Santinhos Gonçalves

Descobri que o Governo de Macau preza a justiça social acima de tudo. Temos vindo a ser muito injustos, sempre a criticar, sempre a apontar o dedo, que as casas estão mais caras, que o supermercado não se pode, só queixinhas. Afinal, ficámos a saber que o Governo, ciente do aumento do custo de vida, está a impedir os portugueses de virem para Macau com salários inferiores a 20 mil patacas – nalguns casos até mais. Se as pessoas não podem cá estar condignamente, é melhor que não estejam. O Governo de Macau não está aqui para explorar ninguém.

Será certamente má vontade minha, mas há questões que me intrigam. É que ainda na semana passada saíram os resultados do coeficiente de Gini que apontavam para uma maior distribuição da riqueza. Feitas as contas, a população de Macau tinha mais dinheiro que há cinco anos.

Além disso, se menos de 20 mil patacas por mês não garantem condignidade, porque é que o salário mínimo recomendado para as empregadas domésticas é de 2500 patacas? Já sei: é porque residentes e não-residentes são tratados de maneira diferente em Macau (são condignidades oito vezes inferiores). Ah, espera, também não pode ser isso. O Governo disse à ONU que os trabalhadores residentes e não-residentes eram tratados da mesma forma, perante a lei e na prática, e que têm direito a salários equivalentes para trabalho equivalente. Se o Governo de Macau diz, só pode ser verdade.

E depois há ainda a questão do salário mínimo, fixado pelo Governo em 28 patacas por hora – que feitas as contas a oito horas por dia, seis dias por semana, não chega a seis mil patacas por mês.

Será que o Governo não quer atribuir residência a trabalhadores vindos de outro país por haver falta de trabalho para quem cá nasceu? Parece que também não, já que a taxa de desemprego é abaixo dos dois por cento e a maioria das empresas se queixa – e algumas fecham – por falta de mão-de-obra.

Manifesto-me confusa, mas pode ser da minha matemática, que nunca foi grande coisa. Isto de ter meios de subsistência tem muito que se lhe diga e parece que muita gente tem sido excessivamente poupadinha. Pelo sim, pelo não, é melhor começarmos todos a pedir aumentos.

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O exercício de voar

 

Márcia Souto*

 

“Liberdade, essa palavra

que o sonho humano alimenta

que não há ninguém que explique

e ninguém que não entenda”

(Cecília Meireles)

 

 

A literatura sempre nos faz companhia. Tanto mais reais quanto fictícios há personagens que nos carregam desde a sua gênese, que grudam em nós e não descolam nunca mais.

Certamente a família Buendía aderiu à pele de muitos leitores que não conseguem (e não querem) se esquecer da imobilidade radical orquestrada pelo patriarca  José Acádio Buendía.

Inesquecível o rasto de sangue que maculou Macondo aquando do Massacre dos Grevistas. Encantadoras as mágicas máquinas do cigano Melquíades e sua habilidade em fabricar sonhos.

E, ainda mais, a memorável Remédios, a Bela, cuja essência não poderia mesmo pertencer a nenhum dos mundos, daí o destino fê-la voar entre lençóis em direção ao firmamento.

Embora “Cem Anos de Solidão”, a obra-prima de Gabriel García Marquez, esteja embebida de realismo mágico, o caráter etéreo de Remédios, a Bela, é impressionante, devido à leveza da personagem, condição para seu levitar.

E voamos com ela.

Na primeira leitura que fiz deste romance, ainda jovem como a Remédios e a sonhar em ser bela como ela, a tragédia que trespassa esta personagem (e não só!) aterrorizou meu peito que arfava pelas primeiras descobertas do coração. Hoje, ao me lembrar, sinto vontade de rir, afinal amor e humor rimam, não é?

Remédios era livre, livre a ponto de voar…

……………

Na semana passada a presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, apresentou o projeto Net Mundial, de internet livre e segura. Em clara resposta às comprovadas práticas de espionagem por parte da Agência Americana de Inteligência, a Chefe do Governo brasileiro afirmou ser preciso respeitar os Direitos Humanos, tanto offline quanto online.

Embora não nos livre da dúvida metódica o fato de a espionagem ser justificada por cartesianas razões de segurança, sabemos nós que não é esta a essência da questão. Comprovou-se, no caso brasileiro, que se tratou de espionagem industrial, tendo a Petrobras, empresa que opera na área de combustíveis fósseis, sido a vítima do “voyeaurismo” da “concorrência”.

E por falar em petróleo, a liberdade de ir e vir está cada vez mais condicionada pela liberdade de compra. No Brasil, os engarrafamentos (como chamam as inúmeras filas de carros que não têm como andar) estão cada vez maiores. Quilômetros e quilômetros de inquietante espera. O transporte público é péssimo e a saída imediata tem sido o auto(i)móvel. O problema, que se repete nas grandes cidades de quase todo o mundo, pode revelar um viés perverso que nos leva a querer consumir liberdade, tendo o fio de Ariadne, às avessas, levado-nos ao labirinto da prisão da imobilidade. A solução? Quem sabe se no vaticinado pelo Nobel colombiano: leveza para voar…

……… ………… 

Ontem foi Abril e Portugal esteve em festa. Uns, pelo ideal da Revolução de 1974; outros, pelo Feriado apenas. Mas estávamos todos em festa. (“Foi bonita a Festa, pá/ Fiquei contente/ Ainda guardo renitente/ um velho cravo para mim”, vejo-me a cantarolar com Chico Buarque.)

Assistimos, pelo Rossio abaixo, ao desfile dos cravos vermelhos a lembrarem também que é Primavera, a estação mais linda do ano. Havia muita gente a protestar, a gritar, a sorrir. Gente que esteve no 25 de Abril, desconfiada, assustada ou eufórica. Gente que nasceu após o 25 de Abril, meio incrédula de que houve o dia 24. Sobretudo, havia crianças, muito mais do que vemos normalmente pelas ruas de Portugal. Nas mãos dos pequenos, o futuro se agiganta leve e determinado a voar, qual os balões de ar que soltavam para colorir de Abril o céu deste país, cujo destino, apesar do circunstancial peso, é o exercício de voar…

……….

Sem que ninguém explique, nem que ninguém entenda este concitar de liberdade, rosas amarelas, cravos vermelhos, a flora toda avisa que a Primavera chegou e com ela o perfume de Remédios, a Bela, a nos incitar a voar in line ou out line, mas sempre em brancos lençóis.

 

*Cronista

 

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Rés-do-chão, a contar vindo do céu

Sónia Nunes

Há 1500 dias que aguardamos por este momento: o Chefe do Executivo, Chui Sai On, qual Mantorras da Santa Sancha, está a resolver coisas. O feito mais espantoso (e difícil de ser ultrapassado pelo carácter inusitado e mágico da empreitada) foi a acção de limpeza em Ka Ho que, numa semana, trouxe ar quase puro, 14 árvores e bonitas fotografias de céu azul, o que só demonstra que, quando o Governo quer e o Photoshop ajuda, a obra nasce. Com esta linha de acção governativa, conjugada com a linha de crédito empresarial para acabar com o Occupy Patane mais do que para salvar o Sin Fong, Chui Sai On conseguiu outro facto extraordinário: é um político que, de facto, as pessoas querem ver na rua.

Apesar do súbito índice de popularidade, o Chefe do Executivo não descansa confortavelmente à sombra do direito adquirido ao segundo mandato, nem ignora o vasto eleitorado que tem. As 400 pessoas da Comissão Eleitoral contêm em si multidões e Chui Sai On, conhecido leitor de Walt Whitman, tem consciência disso, tanto que, quando tomou posse, prometeu ter a “inovação necessária” para “responder ao sublime princípio de servir melhor o cidadão”. É este o contexto para a certeira e oportuna alteração à lei da actividade de mediação imobiliária destinada a resolver os problemas de quem verdadeiramente sofre com este flagelo. Exactamente: as agências.

O cidadão que está a ser mais bem servido por esta Administração é o indivíduo anónimo do sector imobiliário. Chui Sai On não receia tomar medidas impopulares (do mesmo modo que não receia não tomar medidas populares), nem se deixa conduzir pela tirania da maioria. É preciso ter coragem para nesta altura avançar com uma revisão legislativa para resolver o problema das 40 agências imobiliárias que perderam a licença de actividade, o que nos afectou a todos – foram menos 40 mediadores a cobrarem comissões, a pedirem contratos de um ano e a azucrinarem-nos por isto e por aquilo.

O mais giro é que estas agências perderam a licença por um problema de localização, que é tudo no mercado: estavam a funcionar no rés-do-chão de edifícios sem fins comerciais. E assim vão continuar porque, sem consultorias independentes ou consultas públicas, o Conselho Executivo decidiu mudar a lei “considerando que a actividade de mediação imobiliária já vinha sendo exercida antes da publicação da lei (…) e era exercida no rés-do-chão, pouco afectando os outros utilizadores do edifício”. É injusto não recordar aqui trabalho meritório do grupo de deputados que entregaram um parecer ao secretário para os Transportes e Obras Públicas a defender esta alteração à lei, mas é da vida.

Em Macau o bom é morar no logístico rés-do-chão em vez do modesto primeiro andar porque tudo é a contar vindo do céu. Se é verdade que o último ano de Governo antes de eleições é o melhor por mostrar as boas intenções de quem está no poder advinha-se um inferno cheio delas para os próximos cinco anos.

 

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Dos Balcãs para o mundo: Goran Bregovic e a Orquestra de Casamentos e Funerais

Anson Ng*

Aclamado como incontornável embaixador da música dos Balcãs há mais de uma década, Goran Bregovic introduziu a música étnica do leste europeu ao resto do mundo. O compositor juntou influências sérvias, bósnias, croatas, búlgaras, gregas e ciganas, misturou-as com a sua fusão de rock, música clássica, reggae e tango e o resultado foi um som musical inesquecível.

Antes de começar a ser conhecido internacionalmente, Goran Bregovic já era uma estrela do rock no seu país. Foi o realizador sérvio Emir Kusturica que lhe abriu as portas além-fronteiras ao convidá-lo para compor várias bandas sonoras para os seus premiados filmes. Juntamente com a Orquestra de Casamentos e Funerais foi levado ao estrelato, tocou em icónicas salas de concerto e chegou a um público de mais de um milhão de pessoas.

De estrela rock a mestre das bandas sonoras 

Nascido em Sarajevo em 1950, de mãe sérvia e pai croata, Bregovic estava talvez destinado a fazer da música a sua ferramenta para exprimir os complexos sentimentos ligados à etnicidade. Os primeiros anos foram dedicados ao estudo do violino num conservatório, mas acabou por se sentir muito mais atraído pelo rock. Aos 16 anos formou os “White Button”, banda que ganhou imensa popularidade no Leste da Europa tendo vendido mais de seis milhões de álbuns, afirmando-se com o estatuto de banda idolatrada aos olhos do público jovem. Mas o rebentar da guerra nos Balcãs obrigou ao desmembramento do grupo. Foi nessa altura que Bregovic foi convidado por Emir Kusturica, seu amigo de longa data e realizador de cinema, para compor bandas sonoras. Viajou para Paris sem saber que estava à beira de embarcar noutra aventura musical. A parceria abrangeu “Time of the Gypsies” (1988), “Arizona Dream” (1993) e “Underground” (1995) todos eles tão bem recebidos pela crítica que o mundo parou para ouvir. Em 1994 compôs mais uma banda sonora, uma sinfonia rock para o Filme “Rainha Margot” de Patrice Chéreau – outro sucesso fenomenal. A comédia documental “Borat”, que em 2006 deu muito que falar, continha muita da sua música na banda sonora. Para além do grande ecrã, Bregovic também deixou a sua marca no teatro. Entre 1997 e 2001 juntou-se ao encenador Tomaz Pandur nas peças “Silêncio dos Balcãs” e “Divina Comédia” e, em 2004, terminou a sua primeira ópera “Carmen de Bregovic com um Final Feliz”. A produção multimédia “Planeta Azul”, de Peter Greenaway, apresentada em Macau em 2012 também inclui música de Bregovic, oferecendo ao público uma boa dose musical à moda do Leste europeu.

Mudar de vida

Em 1985 Bregovic anunciou o seu afastamento da música rock e passou os 10 anos seguintes nos bastidores, longe da ribalta. Só regressou aos palcos em 1995, depois de ter formado uma extensa orquestra de 120 elementos. Em 1997 reduziu-a a 50 músicos (às vezes 20 para facilitar espectáculos ao vivo). Inspirado nas bandas de música das aldeias da Europa de Leste, decide formar a Orquestra de Casamentos e Funerais para interpretar as suas próprias composições. Sob a sua direcção, a banda ganhou popularidade quando entrou em digressões e deu concertos em conhecidas salas de espectáculo em todo o mundo. O grupo destaca-se com uma mescla ecléctica de banda cigana, vozes búlgaras, percussão tradicional, cordas e guitarra eléctrica, criando música que percorre a escala das emoções humanas, do romance, paixão, tristeza e alegria à loucura sem limites. Posteriormente, os seus inúmeros álbuns a solo também se tornaram imensamente populares. Bregovic colaborou com músicos pop de diversas origens incluindo Iggy Pop, Ofra Haza, Cesária Évora, Scott Walker, Setzen Aksu, George Dalaras e os Gypsy Kings.

Champanhe para Ciganos

Bregovic traz a Macau os acordes electrizantes da sua Orquestra de Casamentos e Funerais num concerto que junta músicos oriundos de todos os cantos dos Balcãs. A orquestra inclui uma banda cigana de seis elementos, um ensemble tradicional feminino de vozes búlgaras, um coro ortodoxo masculino e um quarteto de cordas. Vão interpretar temas do mais recente álbum “Champagne for Gypsies” bem como outros sucessos de um percurso de fazer inveja. Este trabalho pode ser considerado como uma mostra retrospectiva de Bregovic enquanto músico. Como ele uma vez referiu, “O meu álbum é uma resposta à pressão extrema que os ciganos têm sofrido na Europa… os ciganos não são um problema deste mundo – eles têm sido sempre um dos talentos deste mundo. Neste concerto faço uma homenagem ao seu talento que tem inspirado compositores ao longo dos séculos”. Segundo se diz, quem frequenta os concertos deixa a sala a suar, porque a banda agita o espírito bailarino das pessoas, e assim que começa a tocar, o público entra em delírio. Tal como Bregovic uma vez disse, “quem não entra na loucura, não é normal!”.

*Colunista Musical e proprietário da Pintomusica

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Os vampiros

[Escrita automática]

 

Maria Caetano

As efemérides têm o mérito de convocar, pelo menos, a reflexão, o momento em que nos interrogamos sobre o significado de comemorações ou da revivificação dos lutos, das causas que continuamos anualmente com maior ou menor energia, das festas que fazemos mais alegres ou cabisbaixos. O 25 de Abril de 1974, para mim, nunca foi mais que efeméride, com o proveito de ter sempre vivido em liberdade relativa e o também consequente estigma de pertencer às gerações pós-revolucionárias ditas ingratas ou alienadas das lutas mais corajosas.

Sou da geração “sensibilizada” para o 25 de Abril, como muitos. E, de tudo o que não testemunhámos, foi-nos entregue testemunho e ideário da gente que se exaltou, que se levantou acima do que era para ser parte de uma mole amiga e solidária, de um pensamento colectivo onde as preocupações eram públicas e o civismo, sobretudo, se confundia com a palavra “amizade”, com uma ideia de camaradagem. Houve um herói colectivo, o povo, e os anti-heróis derrubados, os vampiros de pés de lã que sugavam a manada. A história estava mais ou menos contada.

Não entravam ainda nestas contas o cinismo de um pensamento crítico ou a vontade de despedir os heróis que não fossem sempre consequentes com o ideal que celebravam. Ainda não entravam os ajustes históricos de contas e as transposições para os presentes estados de coisas – era pedagogia da pura para um caminho cívico-moral, com fé que a gente não esquecesse e, de alguma forma, agradecesse o facto de poder estar exactamente onde estava. E ainda bem. Acho que se vive muito bem com proselitismos desta natureza.

Isto para dizer que não me dana que o 25 de Abril não fosse tudo o que prometeu a quem lá estava. Ou seja, não vivo amargurada com isso, possivelmente em contrário a quem lá entregou tudo e sonhou acordado com uma camaradagem constante e com uma sociedade permanentemente empenhada. Não é que não queira sonhar com isso mas, na medida modesta em que vejo hoje portugueses e todos os outros ao redor, só concebo de eficaz um herói colectivo ou individual que se vigie constantemente para se certificar que, de noite, não é ele mesmo um vampiro.

A medida de um povo já me parece grande demais. Mas, ainda assim, cogito, e até admito que a gente se junte com solidariedade e concessões de individualidade para lutar por algo que seja maior que nós. Aliás, o espero. Mas tenho, depois de muita sensibilização – que levei a sério e sem ingratidão, pelo menos, premeditada –, que o que mais me preocupa é a possibilidade de me deitar à noite como gente boa do povo e acordar um dia transformada em vampiro, cheia de pezinhos de lã. Um trauma da infância pós-25 de Abril.

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Quem é que se está a rir agora?

Iris Lei

Recentemente têm vindo a público relatórios e estatísticas que apontam para um conflito entre o grau de desenvolvimento económico do território e o nível de felicidade dos habitantes. Concluem que há maior pressão sobre os agregados familiares e mais desigualdade na distribuição da riqueza, o que tira os sorrisos dos lábios dos residentes.

Foi divulgado um estudo que avaliou as fotografias com sorrisos colocadas nas redes sociais por residentes de seis mil cidades do mundo, medindo a forma e o tamanho do sorriso. Ignorando questões de representatividade, já que acredito que há pouca probabilidade de os “infelizes” usarem o Instagram para se expressarem, o dito estudo concluiu que Macau está em melhor situação que Hong Kong e a China Continental, mas abaixo de Taiwan, com 13.3 pontos, numa escala que chega até aos 100 pontos.

Parece-me que o Chefe do Executivo acompanha os residentes, a avaliar pelo seu desempenho na Assembleia Legislativa, na terça-feira – não se viu nem um sorriso e, desde a visita a Ka Ho na semana passada, Chui apresenta um ar adoentado. Ao encorajar os empregadores do território a aumentar os salários, o Chefe do Executivo não deixou os patrões do sector privado mais contentes, até porque as suas declarações foram apenas uma lembrança, sem qualquer consequência prática.

A ausência de sorriso na cara de Chui pode dever-se às suas preocupações com a reeleição, estando apreensivo com a possibilidade de ter um concorrente poderoso e com a falta de confiança das associações tradicionais, ou até do Governo Central. O Chefe do Executivo pode ter dado um grande contributo para os maus resultados de Macau no estudo dos sorrisos, com a publicação de ‘selfies’ nas redes sociais.

O índice dos sorrisos pode reflectir a realidade – as pessoas sorriem, mas apenas uma minoria, e como referiu o deputado Mak Soi Kun, têm “sorrisos amargos”, obrigados a lidar com tantas dificuldades, como os transportes, a habitação e os serviços de saúde. Esses sorrisos matreiros e gargalhadas não podem ser medidos nas redes sociais.

Quem é que, entre os residentes, apresenta sorrisos mais rasgados? Os empresários, claro. Mostram-se satisfeitos com as medidas apresentadas para a procura de mais terrenos, o que vai gerar mais oportunidades de negócio na Ilha da Montanha. Como revelou o Chefe do Executivo, os contratos de concessão e subconcessão das operadoras de jogo vão ser revistos em 2015, cinco a sete anos antes de expirarem.

Não devemos também esquecer os membros da Associação de Conterrâneos de Jiangmen, já que o Chefe do Executivo abriu a possibilidade de cooperar com esta cidade do sul de Guangdong. De facto, Jiangmen tornou-se incontornável depois das eleições para a Assembleia Legislativa, e especialmente depois de milhões de patacas terem sido canalizadas para reconstruir o Edifício Sin Fong. Com fama e (elevados) juros, os sorrisos das pessoas de Jiangmen podem bater recordes na escala. Mas infelizmente o estudo não avaliou os seus ‘selfies’ no Instagram.

 

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Tirem-me tudo menos o Gini

Inês Santinhos Gonçalves

Pelo menos quatro pessoas vieram duvidar dos resultados do recém-calculado coeficiente de Gini – o economista Albano Martins, o provedor da Santa Casa da Misericórdia António José de Freitas, o secretário-geral da Caritas Paul Pun e o professor de serviço social do Instituto Politécnico de Macau Larry So.

Porquê? Além de algumas lacunas nos dados apontadas por Martins, todos chamam a atenção para algo que consideram evidente, ainda que empírico: a vida é hoje significativamente mais cara do que há cinco anos e os aumentos, quando os há, não acompanham essa tendência. Ainda que os apoios do Governo tenham aumentado, há mais gente a ver o seu orçamento familiar encolher – António José de Freitas fala mesmo de “famílias escondidas” que “estão a passar por dificuldades”. Larry So sublinha que “o índice de Gini não reflecte o que as pessoas sentem e isso é mais importante que números”.

Numa era em que nos garantem que os números não mentem, como explicar esta disparidade? Os números dos Serviços de Estatística e Censos dizem mesmo que os agregados familiares com rendimentos mais baixos viram as suas receitas reais subirem 41,8 por cento nos últimos cinco anos e que a diferença entre os mais pobres e os mais ricos estreitou de 8,2 vezes para 7,2 vezes – os agregados familiares do quintil mais baixo deixaram de contar com receitas de 8115 patacas para passarem a ter 11.509 patacas. Será então que, como diz António José de Freitas ao Jornal Tribuna de Macau, os grandes afectados são a classe média, já sem a mesma folga orçamental de antes? Ou como afirma Larry So, os que, não sendo pobres, apenas conseguem tirar férias uma vez por ano “e não podem ir para longe”?

Parece que não. Ao canal chinês da Rádio Macau, Paul Pun alertou para um maior fosso entre ricos e pobres e garantiu que os aumentos para as famílias de rendimentos mais baixos têm sido insuficientes para fazer face à inflação e custos de habitação. Não se pode dizer que Paul Pun esteja alheado da realidade de Macau.

O que se passa, afinal? Como podem os números contrariar as evidências? Será da forma como foram feitos os inquéritos? Como foram tratados os dados? Será que a realidade ultrapassa aquilo que observamos no supermercado, nos restaurantes, na hora de pagar a renda, o combustível, a conta de telefone e a escola das crianças? Será que a realidade não condiz com as nossas contas bancárias, testemunhas de uma não autorizada dieta da margem de poupança? Estaremos perante uma distopia dos orçamentos familiares?

Não sei. Mas nesta altura em que se aproxima o fim do mês, uma altura sensível para as carteiras em geral, tenho a certeza que a população de Macau se sente reconfortada por saber que, pelo menos em números, estamos mais ricos e que essa riqueza está mais bem distribuída. Valha-nos isso. Valha-nos a nós e valha ao Chefe do Executivo, que um Gini mau em ano de eleições era um Gini para ser enfiado, à força, dentro da lâmpada.

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A (má) matemática de Crato

João Paulo Meneses

Seria de esperar que ao fim de tantos anos o ministro Crato chegasse a Macau e anunciasse que 1) a Escola continuaria no mesmo local; 2) apresentou em primeira-mão às autoridades de Macau os novos estatutos da Fundação Escola Portuguesa de Macau e 3) todas as questões financeiras, nomeadamente envolvendo o donativo da SJM, estão esclarecidas (já agora, em benefício da Escola…).

Mas não, o ministro apenas encerrou a primeira questão – que era a mais fácil de resolver, a que menos ‘esforço’ exigiria e aquela que há mais tempo deveria estar concluída. Não foi bom, mas também não foi mau – até porque o problema já vinha dos seus antecessores e, ao menos, ficará o mérito de o ter resolvido.

Se critico Crato não é por não ter – ainda – resolvido as outras duas questões (admito que seja necessário mais tempo).

Critico porque me parece que o ministro foi ingrato com as autoridades de Macau.

«Aquilo que vem do Executivo local são suplementos», disse o ministro.

Ou seja, o dinheiro que a RAEM dá à Escola Portuguesa são (apenas, reforço eu) «suplementos».

Os jornalistas são sempre os mesmos, sempre a querer encontrar problemas onde eles não existem…

Problemas onde não existem?

Sim, a palavra suplementos foi uma força de expressão, não era certamente isso que o ministro queria dizer.

Vamos, então, à frase original – e que não mereceu contestação – do ministro: «O Estado português contribui através dos salários dos professores, da colocação de professores e de fundos que são disponibilizados regularmente à escola. Aquilo que vem do Executivo local são suplementos que são muito bem-vindos e são muito importantes para beneficiar a escola, dignificar a escola e ajudar a que a escola seja melhorada».

Mas a RAEM não está a pagar os 49% que eram da Fundação Oriente? É que não são apenas os 9 milhões de patacas da Fundação Macau, a Direcção de Serviços de Educação e Juventude dá mais uns milhões…

Se ainda por cima, e por razões que se compreendem, o Ministério da Educação não tem aumentado a sua comparticipação e a Fundação Oriente deixou de dar o subsídio de um  milhão de patacas que ainda deu em 2012, será correcto/justo/honesto falar em «suplementos»?

Tanto quanto se percebe, em Macau ninguém ficou aborrecido com a ‘ingratidão’ do ministro português.

Um lapso? Uma confusão? Contas mal feitas pelo matemático Crato?

É provável.

Mas 49% de 30 milhões de patacas não são suplementos nem  «são muito importantes para beneficiar a escola, dignificar a escola e ajudar a que a escola seja melhorada». 49% de 30 milhões pagam metade da Escola, pagam ordenados, pagam despesas correntes, pagam, até, investimentos.

Sem os 49% de 30 milhões esta Escola Portuguesa de Macau fechava e era outra coisa bastante diferente.

 

PS – e como vai ser o governo da RAEM a pagar as obras que aí vêm, estou convencido de que fecharemos 2014 (ou o ano lectivo de 14-15) com o governo da RAEM a contribuir com bastante mais do que 50% do orçamento global da Escola.

Crato não teria querido dizer, em vez de suplementos, suprimentos?

 

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Bilinguismo jurídico em Macau (III)

Fernando Dias Simões*

Como já tivemos oportunidade de referir anteriormente, a linguagem assume importância decisiva no contexto da arbitragem internacional. O tribunal arbitral é frequentemente confrontado com partes de diversas nacionalidades. Se as partes não têm a mesma língua materna, a comunicação pode tornar-se um problema. Linguagem e nacionalidade caminham frequentemente de mãos dadas. Deste modo, a linguagem pode ter impacto sobre a composição do tribunal arbitral: a escolha de um árbitro único (e a determinação da sua nacionalidade e língua) ou de um painel de três árbitros (e a determinação da nacionalidade e língua do árbitro presidente). Para dar resposta adequada a estas questões, os centros de arbitragem devem disponibilizar uma lista de árbitros com diferentes nacionalidades e com fluência em diversos idiomas, de modo a aumentar a liberdade de escolha das partes.

A linguagem usada também é relevante no que concerne à igualdade das partes. A realização do direito das partes a apresentar adequadamente o seu caso ao tribunal depende de poderem comunicar correctamente e acompanhar o processo de forma cabal. A violação das regras relativas à linguagem da arbitragem não é normalmente considerada como um fundamento para a anulação da sentença ou para recusar o seu reconhecimento e execução. No entanto, este fundamento pode ser levado em conta se resultar na violação do direito das partes a serem ouvidas, a lutarem pelos seus direitos, ou se essencialmente se desviar das regras de arbitragem determinadas pelas partes ou impostas pela lei.

Um terceiro aspecto a considerar tem a ver com a eventual necessidade de recurso aos tribunais estaduais em busca de medidas de apoio durante o processo arbitral. A autonomia das partes só se aplica perante os árbitros. Em caso de intervenção judicial as partes devem respeitar a língua oficial do tribunal, o que pode acarretar custos de tradução. No caso de processos arbitrais envolvendo partes chinesas ou lusófonas que tenham lugar em Macau as partes retiram algum conforto de saber que tanto o chinês como o português são usados nos tribunais do território.

Finalmente, uma vez proferido o acórdão arbitral, a questão da linguagem desempenha um papel relevante quando se trata de obter a anulação da sentença, no território onde a arbitragem teve lugar, ou o seu reconhecimento e execução noutro país. Problemas podem surgir quando a linguagem da decisão arbitral não é a mesma que a do tribunal competente. No que se refere ao reconhecimento e execução de decisões arbitrais na China continental, num dos países lusófonos, ou até mesmo noutros países, se a decisão não estiver redigida numa das línguas oficiais desse país, a parte que requer o reconhecimento e execução terá normalmente de fornecer uma tradução certificada da decisão.

As partes são livres de determinar a língua ou línguas a utilizar no processo arbitral. Por vezes as partes que não partilham a mesma língua acordam no uso de uma “linguagem neutra”, normalmente o inglês. Uma das consequências da globalização é o aumento do nível de fluência em inglês no mundo dos negócios. O inglês foi adoptado como a língua de trabalho do comércio internacional para os contratos entre as partes que falam diferentes idiomas. Como resultado, o inglês é também cada vez mais utilizado na arbitragem internacional. O alto nível de fluência da língua inglesa, no entanto, pode levar os participantes na arbitragem a esquecer que as diferenças culturais continuam a existir. A aparente facilidade de comunicação pode levar a que árbitros, advogados e partes acreditem erroneamente que todos os participantes têm as mesmas expectativas em relação ao processo. Frequentemente os participantes na arbitragem estão a usar a mesma língua mas não conseguem entender completamente o significado do que está sendo dito ou as razões para algo estar a ser dito.

O Direito é um tipo de linguagem em si mesmo. A linguagem jurídica é uma linguagem técnica. A linguagem jurídica é baseada na linguagem comum; no entanto, ela é utilizada para fins especiais, o que conduz à existência do “legalês”. A linguagem utilizada no processo de arbitragem é também uma linguagem jurídica, altamente sofisticada e específica. Não basta ter um conhecimento básico para compreender esta linguagem técnica. É preciso dominar um vocabulário especializado, de modo a ser capaz de compreender os argumentos da outra parte, dos árbitros e testemunhas, e expressar-se sem problemas graves. A parte que está a usar o seu idioma nativo tem uma vantagem sobre aqueles que o aprenderam como uma segunda língua. Falar e escrever outra língua suficientemente bem para a finalidade do processo de arbitragem é muito exigente. Não surpreende, pois, que os problemas relacionados com a linguagem sejam suscitados num número crescente de litígios.

Como a maioria dos empresários, árbitros, e advogados chineses e lusófonos não podem ser verdadeiramente considerados fluentes em inglês, o uso deste idioma não minimiza a barreira da língua, podendo até aumentar a distância linguística e cultural entre as partes. A selecção de uma linguagem “neutra” é muitas vezes uma abordagem ilógica. É preferível que as partes, os advogados, e os árbitros se expressem na sua própria língua (chinês ou português) e recorram à tradução, do que forçar todas as partes a usar o inglês. Para além disso, a China e os países lusófonos pertencem à família do Direito Civil. Usar o inglês nos processos arbitrais seria submetê-los ao “legal English”, uma linguagem técnica com a qual provavelmente não estão acostumados, uma vez que a sua experiência com a tradição da Common Law é provavelmente pouca, se não mesmo inexistente. O jargão ou terminologia específica de alguns ramos do Direito é por vezes tão particular que se torna quase numa linguagem totalmente diferente. Nesta linguagem os conceitos têm significados específicos que resultam de décadas de jurisprudência. O uso do inglês sujeita todos os participantes no processo de arbitragem a uma espécie de dupla tradução – tanto linguística como jurídica. Não só eles usam uma língua estrangeira, como também usam uma linguagem jurídica estrangeira. Um empreendimento tão exigente como a arbitragem de litígios comerciais entre empresários chineses e lusófonos não pode ser bem-sucedido sem ter em devida conta a importância que a linguagem (quer a linguagem natural, quer a linguagem jurídica) e a tradução jurídica desempenham na arbitragem internacional.

* Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Macau

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Parábola dos talentos (revista e adaptada)

Sónia Nunes

 

Pois é assim como um homem, de apelido Governo, que ao partir para outra terra, chamemos-lhe Ilha da Montanha, convocou os seus servos e lhe entregou os seus bens: a um deu cinco talentos, a outro dois e a outro um. A distribuição dos talentos, que na altura dos factos (o leitor julgará da sua veracidade já que, como lembra e bem o talentoso teólogo Ricky Gervais, a narrativa inclui uma serpente que fala) eram moedas de ouro, nalguns casos de prata, e foram entretanto transformadas em aptidão natural ou adquirida. O homem, chamemos-lhe senhor, deixou os servos com talentos (ambos, dinheiro e dons) e deu-lhes também uma área por explorar com 4,5 quilómetros quadrados. E seguiu viagem.

Antes de partir, organizou um Seminário para a Captação Conjunta de Investidores (do latim, talentum, talenti) e estabeleceu uma Comissão de Apreciação para ver quem dos cinco talentos atribuídos conseguiu ganhar mais outros cinco, quem multiplicou os dois talentos por mais dois e quem, tendo apenas um, optou por não o usar. Fez mais que os antecessores ao divulgar os critérios para a prestação de contas. Era, afinal, um tecnocrata. Os talentos teriam de ser favoráveis ao desenvolvimento da terra, chamemos-lhe centro de turismo e lazer, e beneficiar os seus residentes na procura de emprego e de pequenos e médios investimentos.

Não surpreendeu quando organizou a avaliação de talentos em fases de pré-selecção, fazendo ao mesmo tempo saber que os primeiros a serem apresentados teriam mais hipóteses de ganhar. Apareceu assim um homem, chamemos-lhe Chan Chak Mo, que pretendia construir uma praça com restaurantes e lojas de souvenirs, um outro, chamemos-lhe Lam Ion Fun, que pensou em erguer uma ‘cidade do cinema’ com estúdios de produção, e mais um outro, poderemos chamar-lhe Yani Kwan, com a ideia de abrir um parque temático, uma “ilha do tesouro”. Veio nos jornais.

Esta semana houve mais notícias da Ilha da Montanha, mas não foram apresentadas ao parente pobre do jornalismo local, chamemos-lhe imprensa em português. O Governo, chamemos-lhe agora IPIM, até divulgou a lista de projectos recomendados para a área de 4,5 quilómetros quadrados, mas recusou-se a dizer quais foram os investidores escolhidos – entre a entrega dos projectos e a sua aprovação a questão ficou a ser tratada como matéria da esfera privada dos empresários por motivos não apurados. Sabe-se, no entanto, que no mesmo dia que o Governo, chamemos-lhe agora Conselho de Consumidores, divulgou as “investigações específicas sobre o preço dos papéis higiénicos” que, sem ligação alguma a esta história, servem o propósito do narrador mostrar o tipo de informação em que o Governo está disposto a ser transparente.

É público que haverá uma Praça de Comidas Criativas de Macau, um Complexo Turístico Pitoresco de Hengqin e uma Cidade Biológica de Hengqin, que poderá ou não ficar ao lado da Nova Zona de Hengqin, Ecossistema de Nuvens, Parque Comercial e de Negócios. Teremos ainda uma Cidade Mundial de Artes e Cultura que não deve ser confundida com a Vila Mundial de Artes e Cultura, embora ambas possam ter interesses em comum com o Complexo Cinematográfico de Hengqin ou até mesmo com o Parque Industrial Cinematográfico e Cultural da Zona de Hengqin. E o que dizer do projecto colocado entre os 10 primeiros, o “Mundo dos Sonhos”? É um complexo comercial. Deixo-vos com esta enquanto não soubermos quem dos cinco talentos atribuídos conseguiu ganhar mais outros cinco, quem multiplicou os dois talentos por mais dois e quem, tendo apenas um, optou por não o usar.

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