Não há Liedson que resolva

Pode ir à sua vida

Sandra Lobo Pimentel

A Associação de Futebol de Macau volta este ano a ser a grande protagonista do arranque dos campeonatos. Tudo por causa das datas de início, oficiais, menos oficiais, mais confirmadas, ou menos, facto parece ser que já não há como desapegar do “ver para crer”.

A este jornal foi avançado o dia 9. No dia seguinte, o Jornal Tribuna de Macau trazia dia 16 como data mais certa, aquela que, agora, parece que será mesmo a data “oficial” para a bola começar a rolar. Mas o sorteio dos campeonatos só se realiza hoje… confuso.

Ninguém gosta de dar informações erradas, mesmo que não seja responsável pelas mesmas e tenha tido confirmação de fonte oficial, mas quem menos sofre nestes episódios são certamente os jornalistas. Questiono-me o que sentem dirigentes, equipas técnicas e jogadores sobre a organização dos campeonatos do território.

Senão vejamos: temos equipas que investem forte no futebol. Contratam jogadores estrangeiros a quem pagam salários, casa e viagens. Mas é nesta incerteza de quando irá começar a competição que se vêem obrigados a planear a preparação da época, decidir a data de vinda dos praticantes, marcar treinos, jogos e por aí.

Não sei se é inédito. Mas não consigo encontrar explicação para que o sorteio das competições e a data oficial de início de um campeonato onde tanto se investe, sejam anunciadas, ao que tudo indica, a duas semanas do início. O que poderá explicar a situação? Arrisco: nada.

A Associação de Futebol pode e deve organizar-se melhor. O ano passado foi a surpresa da alteração dos regulamentos, também “em cima do joelho”, como se costuma dizer, que deixou os clubes sem margem de manobra quando já tinham contratado jogadores fazendo contas a estrangeiros e locais que no fim saíram furadas.

Houve também a gestão da desistência de equipas na Liga de Elite, acabando por imperar a decisão de jogar o campeonato com nove equipas. Numa competição que precisa de um “empurrão” para melhorar e ganhar mais músculo, o número ímpar só veio adiar um ano aquilo que muitos esperam e alguns trabalham para alcançar: dar ao primeiro escalão mais alguma competitividade e interesse.

Este ano os dirigentes parecem não ter aprendido com os erros do passado. As desculpas são sempre as de mau pagador. A dificuldade na marcação de campos, a gestão das datas e dos relvados disponíveis (que são tantos…) com o Instituto do Desporto. Para mim, e tenho a certeza que para muitos, não servem.

Com este tipo de trabalho, agora reconduzido para mais um mandato, não vale a pena investir mais. Não vale a pena querer catapultar o futebol local com jogadores de qualidade e tentar imprimir mais competitividade.

Com esta organização, que nem o sorteio e a data oficial do arranque do campeonato consegue oferecer com tempo adequado aos clubes para se prepararem, não há Liedson que resolva o futebol em Macau.

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2014 – Um Ano de Acção Directa Bem Sucedida  

Jason Chao*

Em 2014, celebramos o sucesso de acções directas que contribuíram para mudanças políticas em Macau. Em sentido contrário, as acções políticas têm-se mostrado impotentes. A acção directa é definida como “empreender acções imediatas para resolver problemas sociais, ao invés de aguardar que o façam os representantes do Governo” – uma conceptualização breve e fácil de entender com que me deparei na visita a uma exposição de objectos relacionados com a acção directa no Victoria & Albert Museum, em Londres, em Setembro deste ano.

Edifício Sin Fong

Os moradores do edifício Sin Fong levaram à prática a ideia de ocupação das ruas um pouco antes dos manifestantes de Hong Kong. Acredito que por terem ocupado a zona sul da Avenida do Almirante Lacerda, e depois de estarem impedidos de entrar nas suas casas por mais de um ano, os moradores do prédio obtiveram a simpatia pública. Num desenvolvimento dramático dos eventos, a associação de beneficência Tong Sin Tong, conduzida pelo irmão de Chui Sai On, Chui Sai Cheong, e pela associação de conterrâneos de Jiangmen, prometeu publicamente suportar os custos da construção do edifício. Apesar de o público ter ficado chocado com o modo simples e eficaz de resolver o problema com dinheiro, os moradores do Sin Fong mostraram-se satisfeitos e felizes aguardando pela reconstrução. Admito que quem assiste aos noticiários possa ter ficado perturbado com a inconsistência entre o apelo inicial para que o Governo assumisse responsabilidades e dispersão final com a promessa de compensação pelos custos de construção. No entanto, acredito que no mundo das acções directas a adesão a um princípio em particular ou a um conjunto de valores é simplesmente demasiado exigente para aqueles que não são activistas ou políticos. O resultado da ocupação foi certamente um sucesso de um ponto de vista pragmático.

Regime de garantias para os principais cargos

É frequente os activistas e agentes políticos exporem problemas de propostas de lei que aguardam aprovação. A sub-representação da população na Assembleia Legislativa – com menos de metade dos seus membros eleitos directamente – é, por um lado, uma das causas. Mas, ainda assim, se apenas os deputados eleitos pela via directa votassem, o já famoso regime de garantias para os principais cargos teria sido aprovado sem que 20 mil pessoas saíssem para as ruas. Recordando o que sucedeu em Maio, diria que ocorreu uma série de coincidências. O Movimento Girassol, em Taiwan, terá provavelmente revelado aquilo que pode ser alcançado através da acção directa. O jornal Oriental Daily, em Hong Kong, fez manchete com o regime de garantias por várias ocasiões ao longo de três semanas – note-se embora que a sua posição mudou sob influência política. Além disso, várias figuras pró-sistema e excessivamente confiantes fizeram, sucessivamente, declarações disparatadas de apoio à proposta de lei.

A proposta, por si, mostrou-se também bastante problemática. As condições feitas à medida exibiram vergonhosamente a dimensão da ganância dos principais dirigentes do Governo. A imunidade que, por outro lado, “legalizaria” a corrupção, os altos valores de compensação considerados desadequados para a competência dos titulares dos principais cargos e o retomar de uma pensão vitalícia abandonada há vários anos na Administração Pública foram factores que, conjugados, motivaram fortes críticas de diferentes sectores da comunidade com as suas respectivas preocupações.

Pessoalmente, considero que não há forma de assinalar o 15º aniversário da RAEM de forma mais brilhante do que com a grande manifestação de Maio contra o regime de garantias. Poucos terão antecipado tão forte oposição pública a uma proposta legislativa sem impacto directo naqueles que se manifestaram. Sob enorme pressão, Fernando Chui arriscou embaraçar os seus aliados com o anúncio de retirada de proposta.

O referendo civil

Sem a participação de 8688 votantes no referendo civil, a alegação dos apoiantes de Fernando Chui segundo a qual este é “largamente reconhecido pela sociedade” teria permanecido incontestada. Vejo esta votação como uma forma de expressão para a qual dificilmente encontro alternativa mais pacífica. Era difícil imaginar que uma votação sem efeitos legais mas com garantias de fiabilidade e iniciada pela sociedade civil assustasse tanto Fernando Chui e o Governo chinês. Imagino que temessem que a oportunidade de votar em eleições simuladas, sendo que à maior parte dos cidadãos é negado o direito de participar em eleições reais, estimulasse a vontade da população em obter direito de voto.

Tanto quanto sei, os profissionais da área do Direito ficaram revoltados com a não-decisão a que chegou o Tribunal de Última Instância numa questão de alta sensibilidade política e com o subsequente abuso de poderes descontrolado por parte das autoridades. Ao desafiarmos corajosamente ordens prejudiciais ao Estado de Direito, foi protegida a privacidade dos participantes no referendo civil. O sucesso do referendo civil deve-se àqueles que nele participaram na circunstância de uma série de tentativas por parte das autoridades de espiar a lista dos nomes de quem votou.

Violência doméstica como crime público

No ano passado, a posição do Governo sobre a violência doméstica mantinha-se muito forte a favor da classificação de crime semi-público em nome da “harmonia familiar”. Tanto a polícia como os procuradores do Ministério Público se mostraram aparentemente relutantes em comprometerem-se com uma intervenção obrigatória para castigos corporais “leves e pouco frequentes” largamento infligidos a crianças por pais fieis à tradição chinesa. Os esforços incansáveis do grupo pela classificação da violência doméstica como crime público em consciencializar a população e reportar a situação às Nações Unidas, em Genebra, acabaram por forçar o Governo a comprometer-se com uma lei que assegure melhor protecção dos direitos humanos.

Devo criticar o facto de a proposta falhar em garantir igualdade para a comunidade LGBT. Porém, de acordo com a Direcção dos Serviços para os Assuntos de Justiça, o âmbito de protecção da lei irá abranger casais heterossexuais não casados ou em união de facto. É algo de realmente raro que grupos da sociedade civil isoladamente sejam capazes de obrigar o Governo a rever radicalmente uma proposta de lei.

Serviços médicos no exterior para Chan Pou U

Chan Pou U, um estudante que sofria com dores devido a uma fractura no cóccix, viu ser-lhe recusado reencaminhamento depois de não ter reagido a tratamentos administrados por médicos locais ao longo de anos. Em vez disso, os médicos locais aconselharam Pou U a consultar um psiquiatra devido à dor que este sentia. Com o apoio da Consciência de Macau, o caso de Pou U foi tornado público e foi angariada uma centena de milhares de patacas, permitindo que Pou U fosse admitido no Queen Mary Hospital para mais exames. Os Serviços de Saúde de Macau acabariam por convidar médicos do QMH a observarem Pou U e, surpreendentemente, aprovaram o seu tratamento em Hong Kong. Trata-se de mais um caso raro em que as autoridades de saúde locais foram desafiadas com sucesso, naturalmente, ao fazer-se intervir uma autoridade médica de Hong Kong. Sem a simpatia daqueles que participaram na campanha de donativos, que na sua maioria não conheciam Pou U, não teria havido para este uma réstia de esperança.

Trabalhemos em prol de uma sociedade civil dinâmica

Assistimos a situações bem sucedidas de acção directa em lugar da acção política este ano. Não sabemos se este padrão se irá manter nos anos que se seguem. Espero que os intelectuais e activistas envolvam o público de forma mais activa na política e nos assuntos comunitários para que a sociedade civil possa desenvolver-se.

*Activista e líder do grupo Consciência de Macau

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Mais amor, por favor

Lou Shuo

Não estou a exagerar. Mas não me consigo recordar desde quando, quase todas, todas as conversas do dia-a-dia com as minhas amigas em Macau, sejam chinesas, sejam estrangeiras, começaram a ser envolvidas com um único tema cliché: a procura do amor.

Em muitos lugares públicos das metrópoles no Brasil, encontram-se posters nos quais que estão escritas as palavras “Mais amor por favor”. Estão nas paredes dos edifícios, nas paragens de autocarros, etc. A intenção de tal slogan, criado em 2009, é simples: alertar as pessoas sobre a relevância de amar.

É um pouco difícil perceber que, no caso da América do Sul, naquela terra do samba e do carnaval, onde até o ar cheira a paixão e a sensação, as pessoas sentem falta de amor e de atenção. Mas em Macau, esta cidade oriental pequenina, talvez a “queixa” de falta de amor seja mais fácil de entender.

Macau, enfim, para muitas pessoas que habitam aqui é um ponto de passagem. Este é um dos sítios com maior densidade populacional do mundo e, ao mesmo tempo, possui mais de 150 mil de trabalhadores não residentes. A necessidade de mão-de-obra em quase todos os sectores desta cidade que ainda está a crescer economicamente é uma fonte eterna de atracção para as pessoas de fora.

Assim, um monte de trabalhadores com experiências de vida diversificadas vieram e pararam nesse território, para a construção de uma nova vida. Admito que a conquista de um salário alto e de um estatuto social elevado nessa cidade parece algo muito fácil para as pessoas que têm uma boa educação, ou com domínio de bilinguismo. No entanto, como está a situação da aquisição de amor nesta cidade?

Os problemas das minhas amigas relativamente ao amor revelam a dificuldade pressentida na questão em cima. Provavelmente, quando as necessidades materiais das pessoas são mais facilmente satisfeitas, a vontade de distribuir amor e carinho a outrem torna-se mais rara. As pessoas simplesmente ignoram o valor de amar.

A resposta a tal questão também não surge nada positiva se consultarmos os resultados do mais recente índice da felicidade de Macau, que nos mostram que mais pessoas casadas na região estão infelizes em comparação com os solteiros – ao contrário da situação em Hong Kong e em muitos lugares do mundo.

Como o cantor de hip-hop Criolo canta, “Não existe amor em SP”. Actualmente, em Macau, a existência de tal factor também parece estar esquecida pelas pessoas com o passar do tempo e com o desenvolvimento urbano. O amor nesta cidade é como uma superstição para a maioria.

O sector do jogo é a base da economia desta cidade, mas, acredito que as emoções e os sentimentos das pessoas de Macau não têm nada que ver com a simplicidade de uma aposta na mesa do jogo. Afinal, peço mais amor em Macau, por favor.

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Em natalício

Filinto Elísio

Escritor

Macau

Chego num fim-de-semana a Macau. A azáfama do jogo, condicionada pela chegada do Presidente da República Popular da China Xi Jinping para as comemorações do 15° aniversário da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM). Pergunta-se, nas ruas apinhadas de gente, pela língua portuguesa. Por gente amiga em terra estranha, como teria dito Camões, quando cruzou o Rio das Pérolas. Um encontro com o médico cabo-verdiano José Gabriel, amigo de longa data, numa livraria portuguesa, é um bálsamo para assaz interrogação. A cachupada que se seguiu na antevéspera de Natal, em bonita convivência com os médicos cabo-verdianos e promotores de uma associação cultural, foi motivo para falarmos da erupção vulcânica no Fogo, do atual cenário político e de, algo mais importante, sobre o que já não queremos para Cabo Verde. Prevaleceu ali, sob o diáfano “céu de Veneza” de um dos hotéis-casinos, algo no ar…

Pequim

A véspera do Natal passei-a em Pequim. Num restaurante indiano, em convívio  entre familiares e amigos. Éramos oito. De países diferentes: Cabo Verde, Croácia, Benin, Camarões, Brasil e Bolívia. Foi um momento sublime, tão multilingue e multicultural, quão intergeracional. Sendo ali o “kota de serviço”, mas recusando a ideia do patriarca, quis entoar para os convivas o “With a Little Help From My Friends”, música com que Joe Cocker fez estremecer Woodstock,  em 1969. Não o fiz, pois nem todo o ímpeto merece palco, mas fiquei convencido que esses estudantes, amigos do meu filho, já não queriam o “jingle all the way/oh what fun it is to ride/in a one-horse open sleigh”, que o homem de Calcutá reservara para o nosso jantar.

Tianjin

À porta do hotel, em Tianjin, mais precisamente no jardim que se prolonga para a beira do rio, dois grupos de pessoas faziam exercícios. O primeiro grupo, mais ruidoso, dançava o La Bamba, em chinês e em ginástica rítmica. O segundo grupo, mais silencioso e contemplativo, fazia os lentos movimentos de Tai Chi. De repente, as duas China (ou se calhar mais até, já que imperceptíveis) se encontram.

Ternura

Se há palavra que me encanta é a ternura. Um argentino, Che Guevara, de quem muito gostava (e ainda gosto), por todas as razões e mais uma, teria dito: “Hay que endureserse, sin jamas perder lá ternura”. Outro argentino, o Papa Francisco, por quem devoto respeito e simpatia, afirmou, agora na missa  Urbi et Orbi (para a cidade e para o mundo): “Como o mundo precisa de ternura hoje!” Um pouco, por todo o lado, andamos carentes de ternura. Entre nós, na família, na sociedade, na política e no que mais se queira, sobra em crispação o que falta em cordialidade, como sobra em maledicência o que falta em serenidade. Também nós, sem que tenhamos de expor a nossa falsa morabeza (só “blue”, dir-me-ia Pranchinha), precisamos trabalhar esta “Alzheimer espiritual”.

Tangerina

As pessoas só podem dar o que têm. Tão simples como isso. Os budistas defendem que a macieira não pode parir tangerinas. Sem ser budista, isso já o sabia. Assim como a pessoa recalcada, traumatizada e infeliz não pode transmitir bem-estar aos demais. Nesse sentido, permitam-me que vos diga que tive uma infância bonita. Os meus pais arranjaram tempo para o amor, o lúdico e a educação. Tempo para o diálogo. À mesa da nossa casa, havia sempre argumentação e humor, troca de ideias e nenhum domínio da razão. Por isso, não pretendo ser dono da verdade, nem quero perder a tolerância. Tão pouco, embora sartreano, seja o outro esse inferno. Em verdade, mantenho-me em ternura para com o outro.

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“Dê cá um bacalhau!”

[Água mole em pedra dura]

Catarina Mesquita

O avião descolou à hora combinada e o Presidente nem ficou para ver o fogo de artifício que à noite iluminou o céu de Macau. Mas até o cheiro da pólvora da celebração dos 15 anos de transferência de soberania já se evaporou no ar.

Na rápida visita de médico, o Senhor Presidente fez o diagnóstico a Macau: a região tem uma saúde que deve ser vigiada. Deve alimentar-se os mais novos com uma educação patriótica, manter uma harmonia social e diversificar a economia para que Macau possa viver uma longa e próspera vida como fez nos últimos 15 anos.

Nós que escrevemos, lemos e falamos português sentimos os ânimos a acalmar e é altura de regressar a casa temporariamente ou de celebrar por cá, tentando fazer filhoses com canela a preços de ouro, vinho português e bolos-reis encomendados.

Em breve, portugueses que somos, estaremos sentados à mesa e com sorte a saborear um belo prato de bacalhau, associando o peixe à tradição.

Todos os anos a minha dúvida resiste: porque é que um peixe que nem é pescado nas costas portuguesas é símbolo da nossa identidade? Enfim, globalizações! Mas é curioso saber que o bacalhau seco se globalizou principalmente por ser um peixe fácil de levar na mala.

Recordo-me de um ano em que fui passar o Natal aos Estados Unidos da América. Tal como eu, no voo, iam centenas de portugueses visitar os familiares. Na altura ainda não havia regras de segurança apertadas como hoje e ainda se podia levar um garrafãozinho de cinco litros na bagagem de mão. Na minha memória ficou gravado o momento em que, quando surgiu o sinal de apertar os cintos na aproximação a Boston, grande parte dos passageiros se levantou e começou a pegar nos sacos prontos para sair do avião. Mas o mais engraçado não é constatar que tantas pessoas viajavam de avião pela primeira vez e que não sabiam que ainda faltavam pelo menos trinta minutos para terminar a viagem transatlântica. O mais curioso foi mesmo o cheiro que saía das cabines onde estavam guardadas as bagagens de mão: vinho e, claro, bacalhau.

E foi aí que descobri que estejamos onde estivermos a tradição é levada ao seu mais alto nível. Natal sem bacalhau não é Natal. Português que não come bacalhau não é português… ou não fossemos nós os consumidores de 25 por cento do consumo global da espécie de peixe.

Agora que o apetite chega mais voraz do que em qualquer outra altura do ano, de mim ficam os votos de Feliz Natal e de Xi mensagens, avisos ou incentivos dependendo de como os quisermos interpretar.

A verdade é que nesta visita tão rápida do Presidente não houve tempo para que o Senhor Xi pudesse ouvir o tanto que ainda lhe havia para contar e até lhe estendermos a mão e, à boa moda portuguesa, pedirmos: “dê cá um bacalhau”.

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Macau, 15 anos

Editorial

Maria Caetano

O poema de Adé reza, em jeito efectivo de oração, que esta nesga de terra foi algures no tempo abençoada pelo criador. O seu mito fundador, A-Ma, é também o de uma história de protecção maternal. A baía exterior de Macau é uma ravessa segura e o seu porto interior é lugar de descanso das embarcações, onde a água apenas sobe, sem bater com violência. Na história, Macau acolhe e refugia, abraça e harmoniza. Na sua imagem internacional, Macau é – ou era pelo menos até há pouco tempo – fenómeno de prosperidade inédita por ser vista como a única economia sustentável e sustentada numa única actividade económica.

A mitologia de Macau é a de um abrigo onde tudo se resolve prodigiosamente bem, e até as peças dilatam e se encolhem para encaixar em lugares de mau recorte. É o local onde os jornais poderão arriscar um dia a manchete “Está tudo bem” ou “Não se passada nada”, sem serem execrados pela opinião pública no dia seguinte – porque o mito envolvente sempre acalentou esta bela ideia de um silêncio conveniente e confortável.

Nos últimos dias, e com a aproximação do aniversário da RAEM, os seus infatigáveis balanços, estamos a ser inundados com mil ideias que desafiam a mitologia de Macau. Podemos continuar a repeti-la, mas já custa um bocadinho fazê-lo sem afastar o olhar, coçar o nariz, sem denunciar que não acreditamos muito no que estamos a dizer. Está quase tudo em cima da mesa, o que está mal, à vista de todos.

O que podemos exigir, hoje, de nós e dos outros, sem cair na tentação de um desembaraço fácil dos problemas herdados, que como que não nos pertencem? Como não nos esgotarmos com um mutismo envergonhado e desistente? Como continuar a sentir uma empatia em relação ao que procede de nós, mas com que não nos identificamos? É o desalento de uma má obra, que não podemos arrasar e que nos sobreviverá. E da imensa tarefa de consertá-la.

O que sinto de quem aqui vive, de uma forma geral, é uma forma afectuosa de dizer ‘Macau’ – até RAEM, essa sigla que se apoderou dos discursos e dos corações, por arrasto e equivalência. A gente diz Macau, sobretudo estando fora, e sorri por dentro – acho eu. “Amar Macau”, parangona oficial, não está em causa. O que há é outro mito, o de Macau e dos seus vilões, a íntegra e os desonestos, num retrato onde se calhar não nos pomos no quadro – digo eu que, pelo sistema não participado em que habitamos, tendemos a não nos pôr no quadro das responsabilidades.

Mas, enfim. Queria dizer: amar Macau não é difícil. O que é difícil, suponho, é amar as pessoas. Lembro-me de ouvir de um arquitecto de Macau, Manuel Vicente, numa entrevista, uma coisa que ficou cá comigo com esta forma: para fazer alguma coisa boa é preciso gostar um bocadinho das pessoas para as quais fazemos essa coisa. Se não, saem-nos coisas sem alma. O arquitecto falava de habitação pública, como a de Seac Pai Van, ontem visitada por Xi Jinping, o Presidente, que está em visita a Macau. É preciso ser um bocado moralista para pôr o tom aqui, e isso não faz mal. Mas é preciso gostar das pessoas para se gostar seriamente de Macau.

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Bem-vindo Senhor Presidente

Editorial

Maria Caetano

A vinda do mais alto chefe da nação a este reduto híbrido da China é uma coisa exaltante. Estamos em pulgas, mesmo que na antecipação de meros dois dias em que a chefia do Conselho de Estado se inteira do andamento de um dos seus mais longínquos territórios, e as mensagens sucedem-se freneticamente nos telefones dando conta dos últimos detalhes do protocolo oficial. Tudo parece majestático e distante, rígido como se supõe na ocasião, e aspiramos ao que vai existir brevemente com um leve receio de ser deixados apenas com um travo de rolha na boca depois da festa.

O que terá Xi para dizer a Macau? Qual a substância das palavras protocolares a aguardar e a tábua hermenêutica adequada para a ocasião? O que será a prenda de aniversário desta RAEM que anda a acordar sóbria nos últimos meses após uma longa embriaguez de excêntricos resultados de jogo e que pressente em cada dirigente central uma admoestação contra o vício, a corrupção e o monolitismo da sua economia?

Macau é, afinal, uma região bem comportada, mas demasiado pândega e dada a excessos em after hours. E nenhum panda, qual figura de pelúcia, aconchegará os terrores nocturnos – o trambolhão das receitas, a suspensão dos novos projectos de jogo, postos de trabalho afectados, remunerações estagnadas, menos despesa pública, menos obras e distribuição, o cheque, o cheque, e nós a braços com a inflação que sobejou, com os imóveis empolados? Suores frio, pesadelo.

Das ocasiões sempre distantes, esta será porventura uma das mais distantes. Para quem lê e não vê, fica para conhecimento que na recepção ao Presidente os jornalistas são convocados a levar cada um o seu escadote. Isto diz bastante, embora não diga tudo, da ocasião. A ambição é por ora anotar o seu discurso, ao longe e munidos de teleobjectiva, e seguir-lhe os passos numa volta pela cidade, vê-lo em palco a dar posse aos novos governantes da RAEM – que podem aspirar a apertar-lhe a mão. Perguntar depois ‘como foi, o que disse?’.

Recordo-me da visita do antigo primeiro-ministro Wen Jiabao e dos suas fugas ensaiadas ao protocolo nos quais os vimos fazer tai chi na Fortaleza do Monte e a responder a perguntas dos jornalistas numa conferência de imprensa final de balanço. E, mesmo que todas as perguntas fossem escolhidas a dedo e Xi escolhesse o golfe de Coloane, eu gostava de o ver em carne e osso a interagir e falar sem um discurso afinado. Gostava que, nós que tanto sondamos os misteriosos desígnios de Pequim para Macau, pudéssemos abertamente expor as dúvidas que nos vão na alma.

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O que é Macau sem as suas fronteiras?

Patrícia Silva Alves

Praticamente desde que me conheço que não sei o que é uma fronteira. Para mim, ir a Espanha sempre foi tão simples como pegar no carro, andar lá dentro muitas horas e, de repente, começar a ouvir locutores espanhóis na rádio e ver campos que sempre me pareceram mais verdes. O meu conceito de fronteira era a placa que dizia “España” e que eu via a mais de cem quilómetros por hora. Atravessar para o lado de lá demorava um segundo e eu tinha de estar atenta para o ver – podia mesmo perder o momento. Para quem, como eu, foi criado numa Europa onde se circula livremente, o conceito de fronteira quase não existe: a distância entre dois países depende apenas da nossa vontade de lá ir.

Vim para Macau com uma vontade enorme de conhecer a estranha China. Se fosse possível tinha saído do aeroporto e ido imediatamente a Zhuhai, a Pequim, a Xangai, a todo o lado (estou sempre a mudar as preferências de cidades).

E eis que, aterrada aqui, me deparo com um cenário saído de um livro de Alves Redol: nunca estive tão longe de casa e, ao mesmo tempo, nunca me senti tão na aldeia. Para ajudar a compor a minha imagem mental, Macau até tem as vizinhas montanhas da China. Aqui eu não sabia o que existia para lá da montanha porque não podia ir lá. Afinal, precisava dessa coisa que só raramente vi no passado: um visto. A China estava tão longe, sentia. E com sarcasmo pensava que só me faltam as ovelhas e um rio cristalino para viver na rural Vila Franca de Xira de Redol.

Para além da distância burocrática, quanto mais me embrenhava na actualidade local, mais o fosso aumentava. Sei de cor todos os secretários de Macau e os principais problemas daqui. E ali de Zhuhai, que sei eu? Quase nada. Apenas que as casas são mais baratas; que em breve os preços vão subir e que tem um salão aeronáutico internacional. Quanto mais tempo aqui passo, mais o rio das Pérolas me parece mais largo.

À distância dos meses percebo as razões políticas e históricas que justificam o fosso entre os dois lados, mas a verdade é que aos olhos de quem chega – aos meus, pelo menos – isso não fazia sentido. A mensagem que me foi logo passada dizia algo como: “As pessoas do outro lado são diferentes”. Não são de carne e osso, pensava eu?

Hoje, quando este jornal estiver nas bancas, será o primeiro dia que Macau e a China Continental vão estar ligadas 24 horas por dia. Não sei o que isso vai mudar em Macau – se nem consigo entender o presente que me rodeia, nem me atrevo a imaginar o futuro. Mas, no entanto, sei que ao longo da história Macau sempre foi conhecido por ser o porto de abrigo de tudo e todos que acabaram por fazer desta terra uma excepção: um sítio onde se podia fazer às claras tudo o que era proibido noutros locais, onde o mundo cintilante dos casinos existia ao mesmo tempo que a China se afundava na miséria e que era tão internacional nas gentes como a China era monocromática no seu verde caqui e vermelho sangue.

Uma das leituras mais interessantes que me deram sobre o afastamento entre os dois lados é de que Macau sempre foi a segunda vida para quem foge do passado. Milhares viajaram para esta terra sem querer olhar para trás. Fugiam da pobreza, da perseguição chinesa, das convulsões políticas nos países asiáticos vizinhos ou somente à espera de ter uma vida melhor.

Não sei o que vai mudar agora que esta terra é cada vez menos a excepção – o que seria de Macau se as leis e os hábitos tivessem sido iguais a todos os outros? Parece-me que Macau se tornou Macau por causa das suas fronteiras rígidas. Esta terra sem elas vai ser, sem sombra de dúvidas, diferente. Resta esperar para ver em que sentido. O que há, afinal, do outro lado das montanhas?

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Dias de espera

Sandra Lobo Pimentel

Macau, 17 de Dezembro de 2014. O final de cada ano remete, quase sempre, a uma realidade adiada para o início de mais 365 dias. Há sempre aquela sensação de adiamento, de protelar decisões e acontecimentos para o novo ano, como se fosse retirado peso e capacidade de execução a cada dia do fim e proporcionalmente acrescentado a cada dia do início (era bom…).

Aqui não tem sido diferente, mas caminhando para os últimos dias de 2014, Macau parece estar mais à espera do que o habitual nesta época em que finda qualquer coisa para começar outra.

Hoje, esperamos a tomada de posse do novo Governo da RAEM. E à semelhança do que, provavelmente, sucedeu em 1999, a expectativa é grande e maior que em outros finais de ano.

Isto porque o elenco governativo é novo. Espera-se algo dos novos secretários que, nos últimos anos, não se logrou esperar dos antigos. Espera-se pelas equipas que vão constituir, pelos anúncios de saída dos que já são bem conhecidos pelo bom ou pelo mau que fizeram à frente dos seus cargos.

Também se espera pelas medidas que aí vêm, por algo, porventura, diferente que tenham para apresentar. Espera-se pelas caras novas, pelos problemas e pelas soluções.

Passando em revista a imprensa destes dias, concluímos que há outras esperas. Os aposentados esperam por Lionel Leong para resolver o caso da perda do subsídio de residência; os trabalhadores esperam que a comissão da Assembleia Legislativa e o Governo se entendam na aprovação do salário mínimo; a Associação Novo Macau espera pela retoma do assunto “sufrágio universal”; espera-se pela proibição total de fumo nos casinos. Nos dias que correm, Macau espera pelos feriados que aí vêm e até espera pela vinda do Liedson…

Se me permitem alguns desejos de aniversário da RAEM, espero que a Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego reformule as rotas de autocarros. E isto só para pedir um… Gostava até que o novo secretário fizesse algumas viagens para perceber a total anarquia em que algumas linhas funcionam e que nos ajude a entender as opções de percurso e horários que deixam tantas pessoas nas horas de maior tráfego a ver passar autocarros sem conseguirem apanhar um.

E nesta espera se esvaziam estes dias do fim do ano. Como se nos pudéssemos dar ao luxo de desperdiçá-los. É preciso que, em muitos destes casos, não em todos, a espera não seja infinita e que, desde o primeiro momento, se sinta algum pulso e vontade de colocar em marcha novos planos.

O presidente da assembleia-geral da APOMAC dizia que o Governo precisa de “imaginação” para dar solução a algumas questões. Talvez seja uma palavra acertada para alguns dos problemas que Macau enfrenta. Esperemos então. Mas não muito.

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A razão para ficar na China

Lou Shuo

O filme iraniano “A Separação” começa com uma cena assim: os dois personagens principais estão sentados em frente a um juiz no tribunal que decide o seu divórcio, e dá-se início a uma discussão interminável sobre as razões da separação. Basicamente, a mulher quer sair do país a pensar no futuro da sua filha, e o homem quer ficar. Enquanto o homem pede à mulher um motivo que o convença de emigrar em face das circunstâncias do país, a mulher responde: “E agora dá-me uma razão sobre porque devemos ficar aqui”.

Brilhante pergunta: porque devemos ficar aqui? No filme, apesar de este me permitir uma breve visão sobre a vida “misteriosa” do religioso povo do Irão, a origem do debate entre o casal, em relação do dilema de sair do seu país, também me impressionou muito.

No entanto, o meu país, que está cheio de oportunidades de trabalho e se tornou quase um destino do sonho para muitos ocidentais de hoje, está a enfrentar o terceiro grande fluxo de emigração após a abertura económica. Até o final do ano passado, o número total de emigrantes internacionais da China atingiu nove milhões de pessoas – é o quarto país que “mais “exporta” população no mundo.

O número não é nada chocante quando pensamos no total da população chinesa, mas o facto está lá: muitos chineses estão a querer sair do seu território e muitos jovens estão a quer deixar a China para trás. E o que me chama mais atenção é que a intenção de muitas dessas pessoas não é voltar depois, é sair da China de vez.

É fácil perceber que os novos-ricos chineses querem uma nova nacionalidade e um novo ambiente de bem-estar para os seus filhos, enquanto os estudantes e os jovens chineses têm a ambição de obter um novo passaporte que seja mais “útil” e “viável”.

No meu caso, nunca senti tão grande vontade de não ser chinesa, excepto daquela vez em que na passagem da imigração para entrar na Europa, este ano, a polícia me tirou da fila de repente para um “interrogatório” sério no gabinete. Só me deixaram ir embora após várias perguntas sobre a minha formação e sobre os detalhes da minha viagem.

Lembro-me que na mesa do almoço, há poucos dias, os meus colegas de trabalho comentaram que, tanto para os portugueses quanto para os brasileiros, depois de saírem dos seus países, a vontade de voltar é algo que sempre bate nos seus corações. A sensação da melancolia e da saudade também é um laço invisível ligando as pessoas com a sua terra-natal.

Na cultura chinesa, a tradição do retorno à própria terra e o conceito de “família” e de “nação” também são considerados importantíssimos. Mas é um facto triste que muito jovens chineses estão mesmo a esforçar-se para tirarem um novo documento de identidade com a intenção de saírem da China permanentemente.

Sempre há uma razão para uma partida, sem falar da partida da própria pátria. A China está forte no sentido do seu poder nacional e a ganhar elogios do mundo em relação ao seu PIB. Mas que poder tem de reunir, agradar e satisfazer o seu próprio povo? Assim como na questão colocada pela mulher do filme, a China parece também estar a precisar de uma razão em para fazer frente ao actual grande fluxo da emigração – simplesmente, uma razão para o seu povo ficar ou voltar ao país.

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