Em órbita!

International Space Station Space Walk Astronaut

Quando pensamos em missões espaciais, temos tendência a pensar imediatamente em sofisticadas sondas a analisar outros planetas do Sistema Solar. No entanto, algumas das mais recentes novidades no sector do espaço têm vindo da nossa vizinhança. De facto, a órbita terrestre tem assistido a um constante fervilhar de actividades que se parece acentuar cada vez mais!

Ciência em Órbita da Terra

A órbita terrestre é actualmente o palco de numerosas actividades científicas e comerciais, com um enorme destaque para o uso de satélites. Segundo dados das Nações Unidas em Janeiro de 2021 tínhamos cerca de 7400 satélites em órbita, estando apenas cerca de metade deles ainda activos. Apesar da pandemia, o ano de 2020 trouxe um novo recorde de lançamentos com a adição de 1283 novos satélites, e uma importância crescente dos cubesats Estes representam a nova geração de satélites de pequena dimensão, permitindo assim a colocação simultânea de várias unidades em órbita com um só lançamento.

Neste campo, Macau começa também a marcar presença posicionando-se simultaneamente em duas frentes. Por um lado, a Universidade de Ciências e Tecnologia de Macau (MUST) associou-se às escolas de Macau numa competição de ciência popular que resultará no lançamento de um pequeno satélite. As 18 equipas que competiram na final apresentaram propostas de projectos desenvolvidas pelos alunos e focadas em áreas diversas, incluindo física, astronomia, biologia, meteorologia, energia, transportes ou protecção ambiental. O satélite irá desenvolver o projecto selecionado como vencedor. Por outro lado, e noutra escala, está confirmado o envio de uma constelação de satélites científicos de Macau nos próximos anos, que irão ter como principal foco o estudo do campo magnético terrestre. Estes novos dados estão também ligados a facetas mais aplicadas, incluindo a melhoria de sistemas de mapeamento, posicionamento, e de comunicações. Associado ao envio e análise de dados destes satélites, está o Centro de Dados de Satélites de Macau. Esta nova e sofisticada adição para o Laboratório de Referência Estatal para as Ciências Lunares e Planetárias está em fase de conclusão, prevendo-se a sua inauguração oficial para os próximos meses. A sua instalação no campus da MUST, em pleno Cotai e paredes-meias com os maiores casinos do território, tem um simbolismo adicional. Afinal de contas a tónica oficial em Macau é na aposta de projectos inovadores, como este, que contribuam para a diversificação da economia, e para a redução do peso do sector do jogo na nossa RAEM. É também mais um passo na afirmação de um cluster espacial em Macau.

Estações Espaciais

A gama de actividades científicas desenvolvida por satélites é relativamente limitada estando tradicionalmente ligada a processos mais passivos, como a recolha de imagens e medição de parâmetros variados, ou a actividades de detecção remota. Para experiências mais elaboradas, a actual plataforma por excelência é a estação espacial internacional (ISS). A ISS tem um papel vital ao assegurar a possibilidade de presença humana regular no espaço por períodos prolongados de tempo. Este tipo de plataforma e a ciência que desenvolve são essenciais para a preparação de uma eventual base lunar, ou de uma missão tripulada a Marte.

A China, infelizmente excluída por motivos políticos de ter acesso à ISS, acabou por optar por desenvolver e lançar a sua própria estação espacial. A Tiangong, cujos primeiros módulos Tianhe foram lançados em Abril deste ano, está agora operacional e acolhe desde Junho a sua primeira tripulação. A estação irá expandir-se consideravelmente em 2022, o que lhe permitirá acolher milhares de experiências científicas de investigadores de todo mundo, tal como divulgado na semana passada. Também aqui, Macau poderá beneficiar da sua ligação privilegiada à Agência Espacial Chinesa.

As Novas Fronteiras do Mediatismo?

Convém notar que as viagens humanas ao espaço não se restringem apenas ao uso de estações espaciais. No ano em que celebramos o 60º aniversário da histórica missão da Vostok 1, em que Yuri Gagarin se tornou o primeiro humano no espaço, o tópico está novamente na berlinda. Esta visibilidade adicional deve-se curiosamente a mediáticas viagens de curta duração e à expansão deste sector para áreas não científicas.

Muitos lembrar-se-ão do impressionante salto espacial de Felix Baumgartner em 2016. Patrocinado por uma popular bebida energética, o evento foi apresentado como uma nova fronteira para os desportos radicais. A arriscada façanha não parece ter trazido um grande impacto, para além de alguns minutos de publicidade para o patrocinador, mediatismo para o austríaco, e um record no Guiness.

À semelhança deste caso, as recentes viagens espaciais de Richard Branson e Jeff Bezos foram também bastante curtas, e bastante mediatizadas. Há quem coloque Branson e Bezos no mesmo saco que Baumgartner e veja as suas iniciativas concorrentes como reflexo de uma sede insaciável de protagonismo, ou até de uma vã necessidade de terem acesso a algo de verdadeiramente exclusivo e especial graças às suas fortunas. Na realidade, a aposta de ambos, bem como a do igualmente mediático Elon Musk, está a abrir o acesso ao espaço ao sector privado e a (re)lançar o sector do turismo espacial. Esta abertura é vista como essencial para optimização de processos, abaixamento de custos, e melhoria das tecnologias.

O acesso ao espaço deverá manter-se uma actividade reservada a milionários e bilionários no futuro imediato, mas estes são os primeiros passos para a sua democratização. As próximas décadas revelarão se o turismo espacial irá seguir os passos da aviação comercial que todos conhecemos, ou se iremos ter uma repetição da experiência falhada da aviação supersónica com o desaparecido Concorde.

André Antunes

Cientista

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Zona de partidas

FOTOGRAFIA HUGO PINTO

Depois de meses e meses vazio, com os anúncios do cancelamento dos voos a ecoarem nas salas de espera desertas, por estes dias, o Aeroporto Internacional de Macau está transformado num terminal de sentido único, uma porta de saída por onde têm passado, com bilhetes só de ida na mão, muitos que ajudaram a pintar a face internacional de Macau.

É um dos efeitos da pandemia de COVID-19 que se temem mais duradouros.

No átrio do aeroporto, as despedidas sucedem-se. As conversas — e os lamentos — repetem-se.

Artistas, executivos, professores, arquitectos, médicos, trabalhadores que asseguravam o funcionamento dos inúmeros bares, restaurantes e hotéis, que seguravam os lares de imensas famílias de Macau. Tantos outros.

Chegaram quando a cidade se transformava. Uns tempos antes e não havia oportunidades para todos. Para quase ninguém. Não havia postos de trabalho. Não havia procura.

Talvez volte a haver, mas é pouco provável que estes que hoje partem voltem amanhã. E que tragam o seu colorido com que cobriram Macau, o rosto que nos últimos anos se tornou facilmente reconhecível, mas que agora aparenta perder-se, indistinto.

É difícil, hoje, olhar para o Cotai e os seus palácios, os seus “resorts” que desafiam a imaginação, e pensar que, em 2008, quase não havia nada ali. Só na mente de uns quantos – poucos – visionários. Tal como era difícil, em 2015 ou 2019, imaginar que um dia não muito distante ia ser raro avistar um visitante que fosse na “capital mundial do jogo”.

À medida que os turistas voltam a encher os hotéis e os casinos, no entanto, muitos dos trabalhadores desses empreendimentos não resistem às mudanças e às consequências de meses e meses de vazios. Forçados ou por opção (ou por opções forçadas), vão, em massa, deixando Macau, uma cidade habituada a êxodos, ciclos de partidas que prenunciam, acompanham e fecham fases de indefinição e redefinição. Como aconteceu tantas vezes.

Cada vez mais integrada regionalmente e cada vez menos dependente — mais desligada — do resto do mundo, cada vez menos internacional, Macau prepara-se para uma nova transformação. Mas esta tem pouco a ver com as anteriores. Sobretudo, na lógica, que parece inverter o sentido que até aqui norteou o desenvolvimento do território: o crescimento. O céu era o limite. E agora?

Eterna cidade sem interior, desprovida de “hinterland”, acostumada à ausência de uma fuga, um escape, Macau vai-se estendendo para lá dos seus limites, mas num processo inverso, em que essas linhas se vão esbantendo e um outro interior — uma enorme massa continental — se adentra no seu diminuto espaço. E nem tudo é simbólico.

Pode ser temporário (ainda que, por estes dias, tal tenha sabor a definitivo) — quer-se acreditar que sim —, mas parece restar pouco do “centro internacional de turismo e lazer”.

Por causa da pandemia, o próprio “internacional” que aparece neste epíteto mingua de mundial e de global além da doença. Mas o resto do mundo, de forma desigual, vai recuperando, a custo, antigas ligações. Vai, lentamente, voltando à “normalidade”. Às vezes com fracos resultados que redundam em passos atrás. Mas tenta-se. Faz-se um esforço. É o que se pede.

Praticamente intocada pelo perigo, contudo, Macau insiste numa política de portas fechadas, que, quando se abrem, só permitem uma direcção.

A expansão que fez parte dos últimos anos e que os tornou “dourados” — literalmente e em muitos outros sentidos — cedeu lugar à contracção, uma recessão que dos números rapidamente passou aos espíritos. A dimensões menos concretas.

Os sinais de recuperação vão acontecendo, mas as expectativas habituaram-se a revisões em baixa. A horizontes de vistas não muito largas. É tudo ainda muito difuso. O olhar pouco alcança além das incógnitas. Habitua-se a perspectivas cabisbaixas.

Também este cenário não é desconhecido em Macau. Muitos guardam ainda duras memórias das crises dos anos 1990 e do início da década de 2000. Ou de 2008 e 2009, quando até o Venetian esteve para não acontecer. O futuro tremia, ignorando que tudo ia passar. Valeu a perseverança dos tais (poucos) visionários.

É preciso, todavia, recuar séculos para vermos Macau cair de alturas mais elevadas. Mas também aqui o passado e as suas lições podem servir de consolo.

De cada vez que foi desfeita, a cidade refez-se. Nunca foi fácil, mas nada teria sido possível sem que lhe tivessem aberto as portas. Sem que Macau ostentasse o rosto aberto e acolhedor que a distinguia de tudo à volta. O resto, como se costuma dizer, é história. Convém não esquecer.

Hugo Pinto
Jornalista

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A rua deles

Porto Interior

Se calhar, já foi há muitos anos, embora me pareça que não, que o tempo não passou. Só sei que o tempo passou porque tudo mudou. Embora tudo mude depressa de mais: os prédios nascem como cogumelos e os olhos que ontem liam certas letras hoje lêem outras leis. Mas não interessa.

O que interessa é que ainda sinto o cheiro a tarde quente de Verão, mesmo sendo Primavera. Todos sabemos que o Verão se antecipa que nem um doido: discorda profundamente da etiqueta que lhe arranjaram, um espaço temporal sem qualquer sentido. Era uma Primavera de Verão e eu ali sentada, naquela sala, num piso em que se via a rua, espantada porque cheirava a verde e ouvia pássaros no meio do betão, uma casa com vista para o Palácio – que, por esta altura, de palaciano nada tem.

Tive a sorte de ele querer falar comigo. Ligava o gravador e deixava-o falar. Ele contava-me histórias de outros tempos, os tempos em que eu não existia, e eu ouvia, e o gravador ouvia também. E a tarde quente passava assim: aquela memória pontuada pelo lamento da mudança célere, a mudança que a mim ainda não me fazia confusão.

Foi com ele que percebi o quão fantásticas podem ser as vidas que resultam de vidas inesperadas. Tive sorte. A minha árvore genealógica faz-se sem qualquer encanto: avô de uma aldeia casa com avó de outra aldeia, a uma distância de cinco quilómetros; avó de uma aldeia casa com avô de outra aldeia, com um percurso a cavalo de uma meia hora, talvez um pouco mais. Não descobri nenhum bisavô de origens exóticas, nem um trisavô aventureiro. Tudo dali, do outro lado da montanha, onde ninguém chora.

Ele não, ele não era assim: naquele corpo já cansado cruzavam-se ruas de muitas terras distantes que tinham ido desembocar a uma só. Na língua que lhe disseram para falar na infância – embora não fosse a única – arranjou uma forma de se definir. Mátria. Pátria. Ele sabia quem era, apesar de serem anos em que a identidade era assunto delicado. Talvez continue a ser. Outras pessoas têm outras definições, igualmente válidas, porque só cada um sabe quem é.

Para quem se interessa pela história das pessoas – a história que me interessa – Macau é uma cidade única. Não me canso de repetir. E também não me canso de lembrar que houve um dia em que, quem mandava, dizia que ninguém era de Macau, porque Macau era de toda a gente. No equilíbrio de então, o jogo era simples: não andavam todos a correr atrás do mesmo, aniquilando-se. Cada um escolhia o que queria, com algum respeito pelo companheiro do lado.

Macau não é de ninguém, porque é de toda a gente. Houve quem me tivesse contado que, afinal, as primeiras famílias da terra não andavam à pesca, mas sim a cuidar da terra. Só depois dos agricultores é que chegaram os pescadores. E depois o resto já sabemos mais ou menos: uns quantos séculos de gente a chegar de todos os lados, gente a ficar, gente a ter filhos, gente a partir, gente, pessoas, pessoas de todos os sítios, das Américas às Índias, de outras Ásias, das várias Europas também. O mundo todo ali.

Os macaenses. Os macaenses, explicamos nós a quem chega ou a quem está longe, não são todos os habitantes de Macau, nem as coisas de Macau. Os macaenses são os que são de Macau, aqueles que herdaram o que mais ninguém tem: a longa e fascinante história da cidade. Os macaenses são os únicos que percebem todos os lados da equação, porque fazem parte de todos os lados da equação. Numa terra que não é de ninguém, porque é de toda a gente, eles são a excepção: a terra é deles, muito deles, porque são aquilo que faz da terra ela ser diferente do resto. Depois, riem-se deles próprios – de todas as suas características – como ninguém. Ninguém tem a capacidade de se caricaturar como os macaenses. Acto de coragem maior. De inteligência também.

Regressei às minhas tardes de Verão que era ainda Primavera no momento em que li, várias vezes para perceber bem, um texto recente sobre macaenses. Não é um texto sobre identidade, não é um texto sobre história – é um texto de um jornal. Há quem agora considere que os macaenses, outrora úteis intermediários, deixaram de perceber onde estão e que os outros – seres indefinidos – já não os apreciam como antigamente. Li várias vezes para perceber bem, mas não percebi: não sei o que é isso da utilidade das pessoas, todas juntas com um rótulo a apertá-las bem apertadinhas.

A única coisa que eu sei é que Macau é como as pessoas: não há duas ruas iguais, nem sequer parecidas, na sua labiríntica construção. Fez-se pedra após pedra, tijolo vermelho e tijolo cinzento, grades nas janelas e janelas sem grades, e nem o betão lhe estragou a diferença, apesar de lhe ter quebrado um certo encanto. As pessoas da terra também são assim: não há betão capaz de cobrir a rua onde foram desembocar.

Isabel Castro

Jornalista

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O ar dos tempos

FOTOGRAFIA HUGO PINTO

Em Macau, está-se sempre a regressar ao passado. Mesmo que disso não demos conta. Ou assim se finja. É como se fosse uma inevitabilidade: ele encontra sempre forma de vir ter connosco. Às vezes, sentimo-lo a caminho; outras, aparece quando menos se espera.

Só podia ser assim numa terra com tantos pretéritos, uns mais perfeitos do que outros. Não é exclusivo de Macau. Que o digam Hong Kong. Ou a China que ambas acolhe.

Uma constante: de tempos a tempos, fecham-se as portas dos limites, os ventos sopram mais fortes, os bambus dobram-se, os ombros encolhem-se, diz-se mais “adeus” do que antes se dizia “bem-vindo”. É a vida em terra de tufões. Espera-se que a tempestade passe porque a seguir vem outra.

Nesta encenação de um guião que se vai difundindo, mais do que se repetirem episódios, quadros, cria-se, sobretudo, um ambiente. Não há uma única cena em particular, ou uma especial sequência. As histórias viajam de um sítio para o outro. Entrelaçam-se. Contagiam-se. Tornam-se uma só.

Não é preciso ir muito longe. Nem no tempo, nem no espaço. Qual destino comum, partilha-se um futuro e, por isso, obriga-se a um determinado presente. São as condições de um tempo que dispensa o passado, simplesmente porque se dispõe a repeti-lo. Como se não houvesse memória. Recorrentemente. Dacolá para ali, dali para aqui.

No ar dos tempos, em 2019, uma citação circulou intensamente nas redes sociais do outro lado do Delta do Rio das Pérolas. Recentemente, o ar dos tempos levou-a a aparecer num artigo de opinião num jornal de língua chinesa de Macau. É atribuída a Platão, o filósfofo grego que além dos ombros também tinha as costas largas.

Os verificadores de factos da Universidade de Hong Kong já esclareceram que o autor de “A República”, considerado por Karl Popper como hostil a uma sociedade aberta e um proponente do totalitarismo, não tem nada a ver com aquela passagem que é sobre a liberdade de expressão e a sua repressão. Segundo a mesma fonte, a origem, afinal, não anda muito longe daqui. Mas ainda é necessário, por enquanto, atravessar fronteiras.

Em princípio, a questão da procedência das palavras não é tão importante quanto o seu significado, mas ajuda saber que quem as proferiu tem um saber de experiência feito e uma argúcia que ilumina as trevas sem, contudo, as eliminar. Até porque, como o próprio autor delas explica, “não há fim para a perseguição e supressão da expressão por um poder arbitrário sem controlo”.

A citação não é exactamente igual ao que escreveu, em 2015, este professor de Direito Constitucional e defensor dos direitos humanos, que viria a ter, cinco anos depois, os seus problemas com a lei (ele diria, com certeza, que foi mais ao contrário). O espírito (da citação), todavia, é o mesmo.

Ei-la: “Se as críticas severas desaparecessem por completo, as críticas suaves tornar-se-iam severas. Se mesmo críticas moderadas não forem permitidas, o silêncio seria considerado malicioso. Se o silêncio já não fosse permitido, seria um crime elogiar inadequadamente. Se apenas uma voz pode existir, então a única voz que existe é uma mentira”.

Tirando a última frase – foi adicionada à citação em 2020, já o ar dos tempos ia-se adensando – o resto corresponde, mais coisa, menos coisa, ao texto que inspirou o excerto viral, que tem, ainda assim, o mérito de ir mais longe na explicação da lógica que subjaz às campanhas de silenciamento.

Uma das particularidades destas operações é que não se desenvolvem sozinhas. Precisam não só de quem as engendre e as ponha a funcionar, como também contam com a colaboração, muitas vezes inadvertida, de quem acaba por lhes conceder a autonomia para se desenvolverem em toda a sua plenitude.

Por exemplo, aqueles que se espantam por vozes tidas por “moderadas”, “racionais”, “objectivas”, “neutras” e outras do género serem também visadas como alvos, à semelhança das que são entendidas como “radicais” ou “extremistas”.

Acontece que não só os termos têm inerente uma enorme carga relativa – a noção do que é radical ou extremista depende, necessariamente, de onde se situa o centro, que, por sua, vez, depende da delimitação do universo a que pertence –, como a distinção parece revelar duas expectativas que dir-se-iam falaciosas: quanto ao destino do discurso “radical” (estimado como inevitável acabar reprimido, como se estivesse a pedi-lo), e, outra, a de que o discurso “moderado” não desafia, nem ofende o poder.

Só que, quando a postura passa a ser mais importante do que o significado das palavras, a avaliação e o efeito da discussão assume outras dimensões. Além do mais, como se vai percebendo, os conceitos mudam. Mais rápido do que se espera.

Assim, o que hoje é visto como “moderado”, amanhã pode ser “radical”. Nem o silêncio se livra da suspeição. E o mesmo se diga dos elogios. Nunca são demais. Tal como a sua “sinceridade”.

Neste ambiente, o que está certo ou errado, diz este antigo professor, não é o que mais importa (até porque, está bom de ver, tão-pouco alguém, na verdade, poderá afirmar, com certeza, o que é que mais importa, pois isso pertence à exclusiva vontade do poder).

Neste ambiente, no entanto, não restam dúvidas sobre o que é o menos importante. Estamos conversados.

Hugo Pinto

Jornalista

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Novas Características do Multilateralismo da China

Dois importantes discursos – um proferido pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros da República Popular da China (RPC) Wang Yi a 3 de Julho no 9º Fórum Mundial da Paz realizado na Universidade de Tsinghua e outro proferido pelo Presidente Xi Jinping durante a videoconferência da Cooperação Económica Ásia-Pacífico (APEC) a 16 de Julho – revelaram as características abrangentes e as novas ênfases do multilateralismo chinês.

Antes de mais, Wang começou o seu discurso apontando para o desenvolvimento pacífico do Partido Comunista da China (CPC) – a primeira característica do multilateralismo chinês. Referiu-se ao discurso histórico feito pelo Secretário-Geral do CPC Xi Jinping a 1 de Julho, enfatizando que o CPC está profundamente preocupado com o “destino da humanidade humana”. Wang Yi salientou também que o CPC não procura o hegemonismo e a expansão enquanto promove a paz mundial.

Em segundo lugar, de acordo com Wang, o CPC insiste nos princípios de justiça, justiça, promoção da “liberdade e libertação” do ser humano com tratamento igual para todos os países, independentemente do seu tamanho ser grande ou pequeno, se o seu poder é forte ou fraco, e se a sua riqueza é pobre ou rica. Mais importante, Wang disse que a China se opõe não só à intervenção estrangeira nos assuntos internos de um país, mas também à utilização do poder e do poder para explorar os Estados fracos.

Em terceiro lugar, o Ministro dos Negócios Estrangeiros chinês salientou que, nos seus 100 anos de desenvolvimento, o CPC tem insistido nos princípios da cooperação mútua, na situação vantajosa para ambas as partes e na estratégia aberta de colaboração com outros países do mundo. Como tal, a China tem vindo a adoptar o princípio da colaboração mútua para eliminar confrontos e para substituir qualquer jogo de soma zero por benefícios mútuos. Wang acrescentou que as tensões, conflitos e turbulências no mundo são atribuíveis à mentalidade de jogo de soma zero e ao unilateralismo, o que é contrário ao caminho da “paz permanente e segurança mútua” (Wen Wei Po, 4 de Julho de 2021, p. A14).

Em quarto lugar, Wang Yi apelou a todos os países do mundo para construir uma “Grande Muralha da Imunidade”, abandonando os preconceitos políticos, adoptando o princípio de proteger a saúde pública da humanidade, e perseguindo a ideia de tratar as vacinas como bens públicos para impedir a propagação da Covid-19 e dos seus vírus mutantes. Do mesmo modo, no que diz respeito às alterações climáticas, a China esforça-se por alcançar a neutralidade do carbono antes de 2060. Wang advertiu todos os países do mundo para lidarem com a ameaça de segurança não convencional do terrorismo, extremismo, e a ligação triangular entre acções extremistas, nacionalidades e religiões. De facto, os pontos de Wang foram reiterados pelo Presidente Xi Jinping quando este último proferiu o seu discurso na videoconferência da APEC a 16 de Julho. O Presidente Xi acrescentou que a China iria fornecer mais vacinas e ajuda económica aos países em desenvolvimento nos próximos três anos.

Em sexto lugar, Wang salientou a necessidade de paz e estabilidade interna através da procura de soluções políticas. Os exemplos que deu incluem o Afeganistão e a Birmânia, onde o diálogo interno entre os grupos em conflito é essencial. Sobre a questão do Afeganistão, Wang apelou aos EUA para que assegurem uma transição estável e pacífica. Sobre a Birmânia, disse que a China apoia a Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) para promover uma abordagem de “aterragem suave” para fazer face à turbulência interna e que medidas anti-Covisão e ajuda económica deveriam ser providenciadas. Relativamente às relações entre a Palestina e Israel, Wang Yi disse que ambas as partes deveriam retomar o diálogo e as negociações. Sobre o desenvolvimento nuclear do Irão, Wang acreditava que os EUA deveriam retirar as suas sanções unilaterais. Em suma, o multilateralismo chinês caracteriza-se por uma ênfase no diálogo e negociações mútuas, em vez de recorrer a confrontos.

Em sétimo lugar, a China opõe-se à abordagem da Guerra Fria de avançar para uma perigosa tendência de confrontos separatistas. Wang Yi disse que um mundo dividido é obrigado a provocar catástrofes para a humanidade. Como tal, apelou aos países do mundo para que resistam aos confrontos entre blocos de poder, políticas de poder fortes e intervenções externas nos assuntos internos de vários países.

Em oitavo lugar, Wang desenvolveu a posição da RPC em relação a Hong Kong e Taiwan, dizendo que a China já não é o país fraco há mais de 100 anos. Disse ele: “Qualquer pessoa e qualquer força não pode subestimar a determinação resoluta e a forte capacidade do povo chinês para proteger a soberania nacional, a segurança nacional e o interesse do desenvolvimento”.

Nona, o Presidente Xi Jinping a 16 de Julho enfatizou que os países do mundo deveriam promover o comércio, o investimento e a liberalização económica em vez de construírem um muro para se protegerem a si próprios. Sublinhou também a importância da integração económica, da globalização, da abertura, da tolerância e do desenvolvimento equilibrado.

Décimo, o Centro de Estudos do Marxismo da Academia Chinesa de Ciências Sociais (CASS) publicou a 3 de Julho um Livro Amarelo sobre o “destino comum internacional”, dizendo que os países socialistas do mundo mostraram a sua excelência no processo de lidar com a turbulência global e a propagação do Covid-19. Mais significativamente, a liderança centralizada do CPC é fundamental na resposta da China socialista à turbulência global, enquanto os Estados socialistas do mundo deveriam resistir à chamada “aliança democrática” liderada pelos países ocidentais. Assim, subjacente ao multilateralismo chinês está um forte tom de mobilização do mundo socialista para resistir à “intromissão” da “aliança democrática” ocidental.

Os elementos-chave do multilateralismo chinês também puderam ser identificados a 6 de Julho, quando o Presidente Xi Jinping realizou uma conferência virtual com o Presidente francês Emmanuel Macron e a Chanceler alemã Angela Merkel. Ele disse aos líderes franceses e alemães que, em primeiro lugar, o CPC insistiu nos princípios da manutenção da paz, desenvolvimento, justiça, democracia e liberdade da humanidade para cooperar com a Europa. Em segundo lugar, o multilateralismo chinês deve ser mantido e reforçado.  Em terceiro lugar, a China está interessada em expandir as relações mutuamente benéficas com a França e a Alemanha. Finalmente, a construção da estabilidade e do desenvolvimento equilibrado é a relação de “grande poder” adoptada pela RPC. Segundo o Presidente Xi, a China dá as boas-vindas à França e à Alemanha para desenvolver ainda mais a África.

Claramente, os líderes da RPC têm vindo a expandir assertivamente o multilateralismo chinês a todos os países do mundo, envolvendo diferentes países desenvolvidos e ajudando os Estados em desenvolvimento a alcançar a paz e o desenvolvimento sustentável.

A 16 de Julho, quando o Presidente Xi foi acompanhado pelo membro do Comité Permanente do Politburo Wang Huning para visitar o Centro Central de Presentes e Cultura, que exibiu todos os presentes dados à China durante as visitas do CPC e dos líderes nacionais ao estrangeiro, salientou que todos estes presentes continham um valor histórico tremendo e um conteúdo rico. A razão é que o povo chinês estabeleceu laços emocionais estreitos e profundos com os povos de diferentes países. Estes presentes também simbolizaram os esforços feitos pelo CPC para lutar pelo progresso da Humanidade. O CPC, segundo o Presidente, continuará a construir novas relações internacionais, a promover o “destino comum para a humanidade” e a utilizar o Cinturão e iniciativas rodoviárias para desenvolver o desenvolvimento de alta qualidade do mundo. A exposição do centro mostrou 670 itens de presentes, 40 fotografias e 100 artefactos e documentos. A exposição foi dividida em três temas: “independência, autonomia, coexistência pacífica”; “cooperação aberta e desenvolvimento pacífico”; e “caminho comum e destino comum”. As observações do Presidente Xi e o conteúdo da exposição demonstraram que a China está agora a adoptar uma grande diplomacia de poder, enfatizando o multilateralismo e o desenvolvimento pacífico com todos os países do mundo.

Em conclusão, as novas características do multilateralismo chinês podem ser identificadas a partir das observações do Presidente Xi Jinping, do Ministro dos Negócios Estrangeiros Wang Yi e da significativa exposição das relações diplomáticas da China e dos presentes recebidos de vários países. Se a China está a tornar-se muito mais auto-confiante nas suas relações externas, o multilateralismo chinês é claramente uma nova ênfase caracterizada pelo desenvolvimento pacífico liderado pelo CPC; justiça e equidade nas relações internacionais da China; cooperação ganha-ganha; a busca de saúde pública global e desenvolvimento sustentável; o apelo a soluções políticas e diálogo em conflitos e disputas internacionais; a resistência ao confronto e oposição à intervenção estrangeira em assuntos internos; a insistência na protecção da soberania e segurança nacional; a promoção da liberalização e integração económica; e o apelo à solidariedade entre os Estados socialistas. Todas estas características são talvez um espelho da ascensão da China e da sua diplomacia de “grande poder”.

Sonny Lo

Autor e Professor de Ciência Política

Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Macau News Agency/MNA

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O Início da Educação Patriótica em Hong Kong

A exposição de sete dias das realizações centenárias do Partido Comunista da China (CPC) no Centro de Convenções e Exposições de Hong Kong Wanchai de 3 a 9 de Julho, imediatamente após a celebração do centenário do CPC em Pequim a 1 de Julho, marcou o início da educação patriótica na Região Administrativa Especial de Hong Kong (RAEHK).

A exposição foi co-organizada pelo Consórcio Cultural Bauhinia e pelo Museu Nacional da China com a colaboração do Hong Kong Constitutional and Mainland Affairs Bureau, da Bauhinia Magazine e do Hong Kong Wen Wei Ta Kung Media Group.

O conteúdo da exposição foi dividido em duas partes principais: a primeira que cobre a história da China e a ascensão do CPC, bem como as suas recentes realizações; e a segunda que se concentra no progresso científico e nas realizações da República Popular da China (RPC). Muitas escolas organizaram estudantes para visitar a exposição sobre o progresso científico e as realizações da China, enquanto muitos cidadãos individuais e grupos entraram na sala de exposições que retratava a história turbulenta da China e a ascensão do CPC, incluindo os heroicos guerrilheiros Dongjiang que lutaram contra os invasores japoneses no Sul da China durante a Segunda Guerra Mundial.

Várias características da exposição puderam ser observadas. Antes de mais, a história da China e as suas recentes realizações científicas e económicas foram retratadas não só no formato de quadros descritivos mas também sob a forma de Realidade Virtual. Foram mostrados modelos de aviões, tanques e porta-aviões para atrair o público jovem. Em segundo lugar, grupos patrióticos foram mobilizados para visitar a exposição, levando ao relato dos organizadores de que a exposição de sete dias atraiu 62.500 cidadãos. Terceiro, o conteúdo da exposição pode ser facilmente transformado em livro de texto e referências, tal como defendido por algumas elites patrióticas, para que as crianças da RAEHK possam compreender a história da China, a ascensão do CPC e as realizações da RPC de uma forma mais aprofundada e abrangente. Em quarto lugar, pelo menos 80 batedores de Hong Kong e os Cadetes do Exército de Hong Kong com idades compreendidas entre os oito e os vinte anos foram mobilizados todos os dias para actuarem como guias turísticos e manifestantes, explicando aos visitantes o conteúdo dos vários quadros de avisos. Como tal, a exposição serviu o propósito de educar os jovens de Hong Kong sobre a história da China, do CPC e da RPC. Em quinto lugar, um importante destaque da exposição foi um relato histórico detalhado da invasão estrangeira na China durante a dinastia Qing e de todas as indenizações relacionadas envolvidas – um relato detalhado que atraiu muitos visitantes para tirar fotografias. Em sexto lugar, a ascensão do CPC foi retratada de forma abrangente, incluindo a repetida cobertura televisiva das observações do Presidente Mao Tse Tung na tribuna de Tiananmen de que o povo chinês se levantou a 1 de Outubro de 1949.

Resta saber se algum museu no Distrito Cultural de Kowloon Ocidental irá talvez imitar esta exposição em grande escala no futuro, mas a extensão dos detalhes históricos, tal como mostrados na exposição de sete dias, foi, objectivamente falando, sem precedentes e impressionante na história da educação da RAEHK.

Mais importante ainda, a exposição foi acompanhada por outras actividades para promover a educação patriótica em Hong Kong.

Primeiro, grupos patrióticos liderados pela Força de Solidariedade da China Amorosa e pela Protecção de Hong Kong, juntamente com alguns ex-alunos da Universidade chinesa de Hong Kong, organizaram uma série de actividades educativas nacionais a 9 de Julho até ao final de Novembro. As actividades incluem a mobilização de crianças em idade escolar para cantarem o hino nacional da RPC, e para participarem nos trabalhos de arte criativa e nos questionários. Espera-se que 600.000 crianças em idade escolar sejam mobilizadas para participar nestas actividades de educação nacional. O presidente honorário do organizador, Yuan Mo, disse que o sector da educação, as empresas, grupos de jovens e organizações patrióticas apoiaram e participaram activamente nas actividades de “engenharia”, que visavam “promover o positivismo, apelar à geração jovem e recordar o impulso de Hong Kong (Ta Kung Pao, 10 de Julho de 2021, p. A8).

Em segundo lugar, a reforma curricular está a acompanhar as actividades educativas nacionais, para que o patriotismo seja incutido na psique de mais jovens. No início de Julho, o Gabinete da Educação emitiu dois briefs pedagógicos sobre “Hong Kong sob ‘um país, dois sistemas'”. O material didáctico cobriu dois aspectos importantes: o sistema político da RAEHK e o espírito do Estado de direito.

No currículo relativo ao sistema político de Hong Kong, são enfatizados seis pontos principais. Primeiro, os estudantes devem compreender que o poder de decisão do sistema político da RAEHK provém do governo central (Wen Wei Po, 9 de Julho de 2021, p. A7). Segundo, o Chefe do Executivo da RAEHK deve ser responsável perante o governo central do povo e a RAEHK, de acordo com a Lei Básica. Em terceiro lugar, o sistema político da RAEHK caracteriza-se pela sua natureza dirigida pelo executivo, pelos controlos mútuos e coordenação entre os poderes executivo e legislativo, e pela independência judicial. Quarto, os estudantes devem compreender os deveres e o funcionamento dos seguintes líderes e instituições: o Presidente do Supremo Tribunal, o Secretário Chefe da Administração, o Secretário Financeiro e os seus departamentos governamentais afins; a composição e os deveres da legislatura; e a composição e os deveres do poder judicial. Em quinto lugar, os estudantes precisam de compreender o princípio e a realização dos “patriotas que governam Hong Kong”, a tomada de posse do Chefe do Executivo e dos funcionários públicos, e a estipulação da Lei de Segurança Nacional sobre “patriotas que governam Hong Kong”. Em sexto lugar, os estudantes devem construir o valor de amar e acarinhar Hong Kong, respeitando e protegendo o sistema político da RAEHK sob “um país, dois sistemas”, e reconhecendo a sua identidade nacional.

Claramente, as características enfatizadas no currículo sobre o sistema político de Hong Kong, educação patriótica e identidade nacional são injectadas na pedagogia do ensino, para que tanto professores como estudantes compreendam o seu papel adequado na sociedade e política de Hong Kong.

Primeiro, grupos patrióticos liderados pela Força de Solidariedade da China Amorosa e pela Protecção de Hong Kong, juntamente com alguns ex-alunos da Universidade chinesa de Hong Kong, organizaram uma série de actividades educativas nacionais a 9 de Julho até ao final de Novembro. As actividades incluem a mobilização de crianças em idade escolar para cantarem o hino nacional da RPC, e para participarem nos trabalhos de arte criativa e nos questionários. Espera-se que 600.000 crianças em idade escolar sejam mobilizadas para participar nestas actividades de educação nacional. O presidente honorário do organizador, Yuan Mo, disse que o sector da educação, as empresas, grupos de jovens e organizações patrióticas apoiaram e participaram activamente nas actividades de “engenharia”, que visavam “promover o positivismo, apelar à geração jovem e recordar o impulso de Hong Kong (Ta Kung Pao, 10 de Julho de 2021, p. A8).

Em segundo lugar, a reforma curricular está a acompanhar as actividades educativas nacionais, para que o patriotismo seja incutido na psique de mais jovens. No início de Julho, o Gabinete da Educação emitiu dois briefs pedagógicos sobre “Hong Kong sob ‘um país, dois sistemas'”. O material didáctico cobriu dois aspectos importantes: o sistema político da RAEHK e o espírito do Estado de direito.

No currículo relativo ao sistema político de Hong Kong, são enfatizados seis pontos principais. Primeiro, os estudantes devem compreender que o poder de decisão do sistema político da RAEHK provém do governo central (Wen Wei Po, 9 de Julho de 2021, p. A7). Segundo, o Chefe do Executivo da RAEHK deve ser responsável perante o governo central do povo e a RAEHK, de acordo com a Lei Básica. Em terceiro lugar, o sistema político da RAEHK caracteriza-se pela sua natureza dirigida pelo executivo, pelos controlos mútuos e coordenação entre os poderes executivo e legislativo, e pela independência judicial. Quarto, os estudantes devem compreender os deveres e o funcionamento dos seguintes líderes e instituições: o Presidente do Supremo Tribunal, o Secretário Chefe da Administração, o Secretário Financeiro e os seus departamentos governamentais afins; a composição e os deveres da legislatura; e a composição e os deveres do poder judicial. Em quinto lugar, os estudantes precisam de compreender o princípio e a realização dos “patriotas que governam Hong Kong”, a tomada de posse do Chefe do Executivo e dos funcionários públicos, e a estipulação da Lei de Segurança Nacional sobre “patriotas que governam Hong Kong”. Em sexto lugar, os estudantes devem construir o valor de amar e acarinhar Hong Kong, respeitando e protegendo o sistema político da RAEHK sob “um país, dois sistemas”, e reconhecendo a sua identidade nacional.

Claramente, as características enfatizadas no currículo sobre o sistema político de Hong Kong, educação patriótica e identidade nacional são injectadas na pedagogia do ensino, para que tanto professores como estudantes compreendam o seu papel adequado na sociedade e política de Hong Kong.

Sonny Lo

Autor e Professor de Ciência Política

Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Macau News Agency/MNA

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Pequenos prazeres da vida

Há várias coisas na vida que nos dão prazer e nos trazem uma inexplicável sensação de bem-estar. Para mim, algumas dessas coisas são cheiros. Por exemplo o cheiro de um livro novo, cheiro de bolo ou pão acabado de fazer, cheiro a café logo pela manhã, cheiro a relva acabada de cortar, e cheiro a terra molhada. Este último tem muito que se lhe diga e é dele especificamente que vos vou falar.

Quando caem as primeiras gotas de chuva, sente-se normalmente um odor característico no ar. Este cheiro foi inicialmente descrito e estudado por cientistas australianos nos anos 60 do século XX. Nessa altura os cientistas deram o nome de petricor a este cheiro. Petricor é na realidade uma combinação de compostos químicos. Alguns destes compostos resultam de óleos produzidos por plantas, enquanto outros são produzidos por microorganismos que se encontram no solo, como é o caso das actinobactérias.

As actinobactérias são um tipo de micróbios que podem ser encontradas nos mais diversos tipos de ambientes, quer terrestres, quer aquáticos. São muito importantes para várias indústrias, como é o caso da agricultura. Esta importância deve-se à sua relevante contribuição nos sistemas de solos, visto que decompõem matéria orgânica de organismos mortos, gerando vários tipos de moléculas e compostos químicos mais simples. Estes compostos, vão por sua vez ser usados como substratos ou alimento por plantas e outros organismos, permitindo o seu desenvolvimento. Esta importante função de auxílio no crescimento das plantas é um papel também desempenhado por fungos, tendo ambos uma função complementar. As actinobactérias são muito mais pequenas que os fungos, mas quando presentes por exemplo no solo, formam também redes de filamentos ou micélio, tendo sido por isso confundidas durante bastante tempo com fungos filamentosos.

Uma das funções específicas de algumas actinobactérias é a fixação de nitrogénio (ou azoto), que é muito importante para as plantas e actua como fertilizante natural. Em troca, as actinobactérias têm acesso a sacarídeos (açúcares, celulose ou amidos), moléculas de carbohidratos que são o substrato ideal para o crescimento destas bactérias.

Outro composto que as actinobactérias produzem, especificamente as bactérias do género Streptomyces, é a geosmina. Este é o principal composto orgânico responsável pelo cheiro a petricor que facilmente reconhecemos quando caem as primeiras gotas de chuva. A origem da palavra vem do grego, em que “geo” significa terra e “osmi” significa cheiro. Em termos químicos trata-se de um álcool (com fórmula molecular C12H22O). E, embora seja predominantemente produzida por actinobactérias, existem outros microorganismos (inclusive alguns fungos e algumas algas) que produzem este composto.

A geosmina é um tipo de álcool cujas moléculas libertam um odor forte devido à sua estrutura química. Nós, humanos, somos especialmente sensíveis a este cheiro e conseguimos detectá-lo, graças aos neurónios receptores olfactivos que temos no cérebro e que são susceptíveis a estes estímulos sensoriais, mesmo quando a geosmina existe apenas em pequenas quantidades no ar. Curiosamente, nem todos os seres vivos conseguem sentir a presença de geosmina. Mas, há cerca de uma década, alguns investigadores descobriram que a mosca da fruta (de nome científico: Drosophila melanogaster) é igualmente sensível à presença da geosmina. O cheiro de geosmina afasta estas moscas que assim se afastam também de quaisquer materiais orgânicos, como fruta podre, deixando estes substratos disponíveis para as actinobactérias. No entanto a produção de geosmina atrai outros organismos que ajudam na propagação das actinobactérias. Estas produzem esporos para se multiplicarem e muitos dos organismos atraídos pela geosmina ajudam a espalhar e a dispersar esses esporos, levando-os muitas vezes colados a si.

O facto do cheiro de petricor ser mais notável quando a chuva começa a cair, tem a ver com a actividade das actinobactérias. Quando o solo está muito seco, esta actividade de decomposição é muito baixa, assim como quando há muita chuva e demasiada humidade. Mas, quando o solo está seco e começa a haver um aumento de humidade no ar e caem as primeiras gotas de chuva, as actinobactérias ficam muito mais activas e geram maior quantidade de geosmina, que é libertada para o ar sob a forma de aerossóis. Muitas vezes, este cheiro é arrastado pelo vento e há por isso muitas pessoas que detectam que vai chover antes da chuva começar.

A geosmina, pode, no entanto, acumular-se em produtos alimentares (bebidas, água de consumo, vinho, fruta, vegetais, …) e provocar alterações organolépticas (no sabor, cheiro, textura, …). Nestes casos, o cheiro pode tornar-se um pouco mais intenso e embora seja muitos agradável sentir este odor no meio de um jardim ou floresta, senti-lo na comida enquanto almoçamos ou jantamos não é tão simpático.

Mas, nada de alarmismos! A geosmina na nossa comida pode não a tornar tão interessante e menos saborosa, mas até à data não existem estudos que provem ou indiquem que é um composto perigoso para a nossa saúde. Este é um dos pontos em que a ciência pode investir um pouco mais de tempo, para termos a certeza de que não há nenhuma alteração no nosso organismo quando expostos a este composto, e de que não tem nenhum impacto negativo sobre a exposição combinada com outros compostos ou até com doenças e infecções. O que precisamos de ter em conta, é que se existe geosmina nos produtos alimentares, então estes podem estar contaminados com micróbios capazes de produzir este composto. E isso pode ser resultar na degradação dos produtos e até na sua contaminação com outros compostos que podem ser perigosos.

Mais uma vez conseguimos perceber por este exemplo o quão complexas podem ser as relações químicas e biológicas neste nosso planeta, e quanto ainda temos por descobrir. Vamos sempre ter muito mais por contar.

Marta Filipa Simões

Cientista

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Histórias improváveis

Do quarto onde tenho escrito estas crónicas vê-se uma casa como já há poucas. Uma vivenda entre prédios, com os seus dois andares, varanda comprida, janelas e mais janelas, portadas de madeira, um pátio ajardinado com uma árvore frondosa. Chama a atenção. Houve tempos em que não estava sozinha. Era uma entre muitas. Mas a discrição era enganadora.

Contruída nos anos 1920, nesta casa viveu, até ter ido lutar contra o invasor japonês, Ye Ting, um dos fundadores do Exército de Libertação Popular. A sua família ali ficou até 1942. “Desde então”, lê-se numa página oficial de informação sobre o património cultural de Macau, “a residência foi usada como base da causa revolucionária do Comunismo Nacional, passando mais tarde a ser um escritório da Associação Geral de Estudantes Chong Wa, e depois sendo adaptada para servir de creche da Associação das Mulheres de Macau”.

O quarto onde escrevo também tem a sua história. Faz parte do bloco residencial de 24 moradias para funcionários públicos entregues aos inquilinos durante as comemorações do 40.º aniversário da Revolução Nacional, “o grito de revolta varonil que, em 28 de Maio de 1926, o Exército Português soltou pela boca do grande Cabo de Guerra, marechal Gomes da Costa, em Braga, numa hora histórica em que o nosso país era dominado pela mais violenta demagogia, consequência lógica de um século de lutas fratricidas que enfraqueceram, internamente, o país”. Tinha sido a “gloriosa arrancada” a que se seguiu “o aparecimento de um homem providencial na cena política: SALAZAR”.

É o que se lê, assim com as exaltadas maiúsculas, em “Comemorações do 40.º Aniversário da Revolução Nacional” (1967), livro publicado pelo Centro de Informação e Turismo de Macau, onde se destaca como “o Governo da Província, conhecedor desta crise [de habitação] que pesava em cheio em muitos dos seus funcionários, procurou imediatamente tomar as necessárias medidas para debelar uma situação deprimente”. Assim na metrópole e contra trapalhadas, como no ultramar e contra os problemas do imobiliário. O providencial homem tudo resolvia.

As histórias que nesta esquina se cruzam, e que se passaram ao longo desta rua (até o nome dela, “a do floreiro”, já deu uma crónica de Manuel Vicente), são, para mim, uma constante lembrança da improbabilidade que é esta cidade. A improbabilidade de cruzar histórias que correm paralelas, em mundos diferentes, às vezes avessos. Às vezes ao virar da esquina. No outro lado da rua. E deste milagre que desafia leis (da física e das que se inventem), surge a glória de Macau – de um sítio único. Como nenhum, um espaço simbólico, mais do que geográfico.

Como poucas, Macau foi uma cidade imaginária. Uma cidade de possibilidades. Mais de se poder do que de poder (que eram múltiplos e se equilibravam, às vezes mal, na mesma assoberbada balança). Onde triunfou, quase sempre, um peculiar “laissez faire, laissez passer”. Uma cidade de verbos, mais do que substantivos. De opções, hipóteses. Alternativas. Dependentes apenas do quão longe estava disposto a ir quem pensava. Mesmo que não se saísse do etéreo mundo das ideias, havia esse ar (que dava para meditar e respirar).

Mas tudo se foi delimitando num cerco cada vez mais apertado. Simultaneamente, medrou uma mentalidade própria de quem viu muitas vezes as portas fecharem-se como muralhas, acabando naquilo que, nos anos 1950, alguém definiu como uma das “servidões de Macau”.

Ao longo da história, a população (há muito uma maioria imigrada, indiferente à história e à memória da cidade), aprendeu a acomodar-se nos interstícios que sobravam, nos silêncios que eram pausas de marchas que se tornaram inexoráveis. Crise atrás de crise, imposição atrás de imposição, incerteza atrás de incerteza. E a indefinição perante dúvida: ficar ou partir? A resposta a adiar-se, porque há sempre um novo ponto de não retorno. Um novo limite. Uma nova linha vermelha.

Mas mais reveladora do que o somatório de quantos partiram ou de quantos ficaram é a conta de subtrair que calcula o que se vai perdendo e o que se vai abdicando.

Sim, a vida continua. Os negócios vão continuar a fazer-se e a grande ideologia vai fazer mais sentido do que nunca, até porque obedece ela própria à lógica concreta e material da acumulação: “ser rico é glorioso”.

A cidade é que vai ser outra.

No seu célebre livro “Cidades Invisíveis” (1972), Italo Calvino põe Marco Polo a descrever uma “cidade modelo” que é “feita apenas de excepções, exclusões, incongruências, contradições”. Voltando-se para o imperador Kublai Khan, o viajante Marco afirma: “Se uma cidade assim é o que há de mais improvável, diminuindo o número dos elementos anormais aumenta a probabilidade de que a cidade realmente exista. Mas não posso conduzir a minha operação além de um certo limite: obteria cidades verosímeis demais para serem verdadeiras”.

Segundo Calvino, “as cidades visitadas por Marco Polo eram sempre diferentes das imaginadas pelo imperador”, mais preocupado com um modelo que “contém tudo o que vai de acordo com as normas”.

Macau, primordial porto interior, protecção contra guerras e tufões, foi abrigo de incontáveis viajantes. A mais improvável e real das cidades.

Aos seus senhores, por muito efémeros e ambíguos que fossem, a Macau feita de excepções sempre demonstrou uma indulgência cheia de astúcia e centrada no interesse próprio. Esse sentimento, entretanto, transformou-se numa aquiescência própria de quem se esqueceu de si.

É uma espécie da renúncia que se narra em “The Fat Years” (2011), a distopia de Chan Koonchung sobre esses “anos gordos” em que, depois do colapso da economia global, apenas a China escapa intocada, projectando-se como terra de felicidade (qualquer semelhança com a realidade é uma feliz coincidência).

Por outro lado, este livro é também sobre a importância de recordar o passado (ao qual misteriosamente lhe falta um mês), sobretudo quando diante de um poder absoluto que detém, igualmente, as chaves do futuro – algo terá de ser sacrificado.

Usando os conceitos de Lu Xun, o pai da literatura moderna chinesa, Chan Koonchung coloca uma questão sempre pertinente: “Entre um bom inferno e um falso paraíso – qual escolheria?”

A resposta, receio, é demasiado provável para ser verdadeira.

Hugo Pinto

Jornalista

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Um discurso histórico com implicações para Hong Kong, Macau e Taiwan

O discurso proferido pelo Presidente Xi Jinping durante o centenário da criação do Partido Comunista da China (CPC) a 1 de Julho de 2021, teve profundas implicações para o desenvolvimento socioeconómico e político das regiões administrativas especiais de Hong Kong e Macau.

Antes de mais, o Presidente Xi, que é também Secretário-Geral do Partido e Presidente da Comissão Militar Central, salientou que o CPC levou a China a “estabelecer plenamente uma sociedade xiaokang (uma sociedade próspera)” e que está empenhada em construir a República Popular da China (RPC) num “país socialista, modernizado e poderoso nos segundos 100 anos”. Esta é a “grande honra” não só do povo chinês mas também do PCC.

O Presidente Xi insistiu no tema do nacionalismo chinês, enfatizando que, com 5.000 anos de civilização, a China sofreu humilhações nacionais após a Guerra do Ópio de 1840. Como tal, a realização do “renascimento chinês” é o “maior ideal do povo chinês e da nação chinesa”. O Presidente Xi invocou o sentimento nacionalista histórico do povo chinês referindo-se à forma como o povo chinês lutou pela sua sobrevivência nacional, desde a rebelião de Taiping à reforma dos Cem Dias, e desde a rebelião de Boxer até à revolução de 1911. No meio destes difíceis caminhos de modernização, o CPC emergiu, graças à significação do Marxismo-Leninismo. Elogiou todos os anteriores líderes chineses que adaptaram o marxismo às circunstâncias chinesas, e que desenvolveram ainda mais o CPC, incluindo Mao Tse Tung, Deng Xiaoping, Jiang Zemin, Hu Jintao, Zhou Enlai, Liu Shaoqi, Zhu De e Chen Yun.

Ideologicamente, o Presidente Xi colocou a ênfase na necessidade de persistir na crença no Marxismo-Leninismo, no Pensamento de Mao Tse Tung, na Teoria de Deng Xiaoping, na Teoria das Três Representações, e na Perspectiva Científica sobre o Desenvolvimento, e de implementar plenamente o Pensamento sobre o Socialismo com Características Chinesas para uma Nova Era. Ele observou que o marxismo chinês teria de ser mais desenvolvido no século XXI.

Sobre o papel do CPC, o Presidente Xi observou que o Partido realiza o renascimento chinês, solidifica o povo chinês, liberta os seus pensamentos, alcança o grande sucesso da política de porta aberta e da modernização socialista, bem como da construção. Disse ele: “Sem o CPC, não haveria a nova China e não haveria a renascença chinesa”. O CPC coordena “todos os interesses das nacionalidades” em todo o país. Tem de “elevar persistentemente os padrões da governação científica do Partido, do governo democrático, da implementação da lei e do pleno desenvolvimento da coordenação do Partido e da provisão de liderança central”.

O Presidente Xi acrescentou que embora o Partido represente “os interesses fundamentais do povo”, não representa nenhum grupo de interesses ou estrato privilegiado. Como tal, “qualquer tentativa de separar o CPC do povo chinês e de tornar as suas relações conflituosas é susceptível de falhar e está destinado a ser rejeitado por 95 milhões de membros do CPC”.

O Presidente Xi salientou a importância de ter um exército forte para garantir a segurança nacional. O Partido deve liderar e instruir os militares, enquanto que a China deve insistir no caminho de militares fortes com características chinesas.

Por outro lado, a China, segundo o Presidente Xi, ergue a bandeira da “paz, desenvolvimento, cooperação e mútua situação vantajosa para todos” e adopta a política externa de “independência, autonomia e paz”. A política externa da RPC é caracterizada pelo seu caminho de desenvolvimento pacífico e pela construção de novas relações internacionais, bem como “a construção do destino comum da humanidade”. Como tal, a iniciativa “Faixa e Rota” pode proporcionar um desenvolvimento de alta qualidade e novas oportunidades para o mundo através do novo caminho de desenvolvimento da China.

Finalmente, o Presidente Xi salientou que para unificar o povo chinês dentro e fora da China, o CPC deve colocar o seu trabalho de frente unida no topo da sua agenda, consolidando todas as forças e alcançando o objectivo do renascimento chinês. Para lutar pelo sucesso, o Partido deve inculcar uma forte consciência política de governar a si próprio de forma eficaz e assertiva, erradicando “todos os vírus que corroem a saúde e a pele do CPC”. Nestas circunstâncias, o Partido “não mudará de forma alguma a sua qualidade, cor e sabor”, ao mesmo tempo que se torna “a forte liderança do núcleo” no caminho do desenvolvimento do socialismo de estilo chinês.

Sobre a questão de Hong Kong e Macau, o Presidente Xi salientou que devemos “implementar com precisão os princípios de ‘um país, dois sistemas’, ‘povo de Hong Kong governando Hong Kong’, ‘povo de Macau governando Macau’, um elevado grau de autonomia e a jurisdição abrangente das autoridades centrais” sobre as duas cidades. Além disso, tanto Hong Kong como Macau devem implementar “o sistema jurídico e o mecanismo de implementação da protecção da segurança nacional [da China] e da soberania nacional, da segurança, do interesse do desenvolvimento e da prosperidade e estabilidade a longo prazo” dos dois lugares.

Sobre Taiwan, o Presidente Xi disse que resolver a questão de Taiwan e realizar a reunificação nacional são a missão histórica do CPC e a esperança comum do povo chinês. Contudo, os princípios de uma China e do “consenso de 1992” devem ser mantidos para promover a reunificação nacional. O povo chinês, segundo o Presidente Xi, tem de esmagar qualquer tendência separatista em Taiwan. Disse ele: “Ninguém pode subestimar a forte determinação, vontade persistente e forte capacidade do povo chinês para proteger a soberania nacional e a integridade territorial”.

Globalmente, o discurso histórico do Presidente Xi tem profundas implicações para o desenvolvimento socioeconómico não só de Hong Kong e Macau, mas também de Taiwan.

Antes de mais, com a promulgação da lei de segurança nacional em Hong Kong no final de Junho de 2021, a sua plena implementação é uma obrigação. Como tal, o povo de Hong Kong deve compreender o significado da implementação da “jurisdição abrangente” da China sobre a região administrativa especial. Isto significa que o povo de Hong Kong deve apoiar o CPC, apreciar a sua enorme contribuição tanto para a China como para o “um país, dois sistemas”, e respeitar a segurança nacional, a soberania e o interesse de desenvolvimento do governo central.

Da mesma forma, o povo de Macau, que já compreendeu e respeitou plenamente a “jurisdição abrangente da China”, deve proteger os interesses do governo central.

A situação de Macau é muito mais estável socialmente do que em Hong Kong, onde a sociedade foi envolvida em instabilidade e violência na segunda metade de 2019. É previsível que o Artigo 23 da Lei Básica venha a ser legislado e promulgado em Hong Kong nos próximos anos, tal como o novo Secretário para a Segurança mencionou recentemente. Em Fevereiro de 2009, a Assembleia Legislativa de Macau já tinha legislado sobre a Lei de Segurança Nacional.

Nas circunstâncias de proteger plenamente os interesses de segurança nacional do governo central, Hong Kong e Macau poderão usufruir de todos os privilégios, benefícios e apoio da pátria. A integração de Hong Kong e Macau na área da Grande Baía vai ser acelerada e trazer mais benefícios económicos e prosperidade às duas cidades nos próximos anos, especialmente quando o Covid-19 estiver sob controlo e como se desvaneceria gradualmente.

Sobre a questão de Taiwan, as autoridades centrais têm mantido consistentemente os princípios de uma China e o consenso de 1992. O desafio é saber se as autoridades de Taiwan respeitam a linha de fundo das autoridades centrais da RPC. Dado que a legitimidade do desempenho da actual administração de Taiwan já está comprometida pela rápida disseminação do Covid-19 e suas variantes, resta saber se o Kuomintang (KMT) – o longo rival do CPC no continente até 1949 – testemunharia o seu ressurgimento antes das eleições presidenciais de 2024 em Taiwan. Se o KMT tiver a possibilidade de regressar ao poder em Taiwan, uma outra cooperação CPC-KMT seria não só uma probabilidade mas também um potencial avanço na realização da visão do Presidente Xi de reunificar Taiwan nos próximos anos. Por outras palavras, as interacções dinâmicas entre a RPC e as autoridades de Taiwan, especialmente as elites do KMT, serão o indicador mais importante de como o CPC tentaria realizar a sua missão não cumprida.

Em conclusão, o discurso histórico proferido pelo Secretário-Geral do CPC e pelo Presidente da RPC Xi Jinping tem implicações políticas significativas para Hong Kong, Macau e Taiwan. Uma vez que o CPC está a entrar nos seus segundos 100 anos, a manutenção da prosperidade e estabilidade de Hong Kong e Macau, por um lado, e a missão de reunificar Taiwan, por outro, serão colocadas no topo da agenda do Partido, porque a esperança do falecido líder chinês Deng Xiaoping de que o “Um País, Dois Sistemas” em Hong Kong e Macau proporcionaria um quadro para a China reunificar Taiwan continua a ser uma missão não cumprida.

Sonny Lo
Autor e Professor de Ciência Política
*Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Macau News Agency/MNA

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Terra de jogos

Passados os tempos negros da II Guerra Mundial e no meio da turbulência regional que ficara da redefinição que novas eras trouxeram, em Macau procurava-se um renascimento. Havia obras de embelezamento pela cidade, projectos sem fim, mas pedia-se mais. Até porque enlevar o espírito era política de Estado.

Eram, pois, “dois nobres objectivos” os que se apresentavam com os Jogos Florais do Ultramar, ideia lançada em Novembro de 1950 no terceiro número da revista Mosaico: “tornar mais íntima e perfeita a unificação espiritual do Império Português e ampliar, com novos temas, a literatura portuguesa contemporânea”.

A ideia fazia jus a uma publicação que pretendia “alcançar o objectivo supremo de dignificar a Pátria portuguesa e promover o progresso deste torrão português”, como escreve, no número inicial da Mosaico, o omnipresente Pedro José Lobo, aqui na qualidade de presidente do Círculo Cultural de Macau, a entidade “progenitora” da revista mensal e trilingue, que se publicou por oito anos. Alinhada com os ditames do regime, era também uma iniciativa que procurava aproximar do centro um território na periferia.

A proposta de um “certame regular” surgia inspirada nos “Jogos Florais da Primavera da Emissora Nacional”, meio que António Ferro tinha classificado como “o mais poderoso instrumento de propaganda directa que existe no nosso país”. O director do Secretariado de Propaganda Nacional, a quem chamaram “inventor do salazarismo”, sabia do que falava.

Seguindo a chamada “Política do Espírito”, Ferro foi o grande dinamizador da cultura do Estado Novo. O objectivo era chegar a “uma determinada imagem-tipo do ‘ser português’, que é construída a partir de uma gama de referências da chamada ‘cultura popular’, e reelaborada dentro do ideário do regime”, segundo Heloísa Paulo, autora de “Vida e Arte do Povo Português: uma visão da sociedade segundo a propaganda oficial do Estado Novo” (1994). De acordo com a investigadora, “a intenção é retratar a ‘alma portuguesa’, dando corpo a um ideal de ‘Lusitanismo’, que agrega desde o ‘aldeão’, o ‘campino’ ao ‘colono de África’ ou ao ‘marinheiro dos Descobrimentos’”.

Por mais imorredouros que fossem considerados, estes arquétipos faziam parte de uma galeria que não dispensava uma actualização, que desse, ela própria, conta do dinamismo e desenvolvimento que o regime supostamente favorecia.

“O panorama intelectual e moral das colónias está hoje mudado completamente”, lia-se na edição da Mosaico que lançou a ideia dos Jogos Florais do Ultramar, num texto assinado por Manuel Maria Pimentel Bastos, defensor da proposta juntamente com Hernâni Anjos (ambos militares oficiais destacados em Macau, homens de letras e sócios fundadores da revista).

“[C]ada uma com a sua mentalidade, os seus anseios, as suas tendências definidas, embora ligadas à influência da Mãe-Pátria”, afirmava Pimentel Bastos, “em todas as colónias se encontram agora pensadores de nomeada, artistas e escritores de inegável valor, que representam, cabal e perfeitamente, o estado de adiantamento cultural e o nível da intelectualidade atingidos no capítulo das manifestações do espírito”.

Para este capitão do Exército, já não fazia sentido a imagem do Ultramar como “a dolorosa terra de trabalhos e canseiras onde o português apenas se demorava o tempo necessário para auferir meios de fortuna e regressar, afobado, à Metrópole”.

Havia que contrariar esta representação que se fixara como estigma e que resultava também do esquecimento e indiferença (de que muitos se queixaram na imprensa de Macau das primeiras décadas do século XX) a que os assuntos ultramarinos eram genericamente votados na metrópole.

Este tema voltaria a ser chamado à atenção, em 1955, por Henrique de Senna Fernandes, no primeiro número de “Temas Ultramarinos”, editado pelo Centro Universitário de Coimbra: “É preciso acabar com essa figura tradicional de metropolitano amargurado, que vai para o Ultramar como se fosse cumprir castigo, ansioso por regressar mal lhe soprem os ventos da fortuna, como se a terra para onde vai, mais não fosse que terra para extrair proventos e não para amar”.

Eram apelos que se encaixavam na “mística imperial”. Afinal, do Minho a Timor, era tudo “terra portuguesa”, pelo que não fazia sentido o lusitano não se sentir em casa em qualquer parte desse universo. 

Como pedia Pimentel Bastos, “é indispensável, imperiosamente necessário que as colónias todas deste Portugal enorme, braços lançados a abraçar o mundo, se liguem mais fortemente pelo Pensamento, pela sinceridade e pelo coração”.

À conta de histórias e poemas, os Jogos Florais seriam, assim, “uma contribuição não pouco importante para o estreitamento da unificação do espírito do Império, numa mais íntima coesão, por meio do verbo, por uma simbiose mística de todas as almas que vivem e sofrem e amam por cidades e por sertões”.

Por outro lado, “seria até talvez um dos meios de fugirmos a certas influências da cultura estrangeira, que, por vezes, são mais prementes do que desejaríamos”. Era forçoso, por isso, que não se abandonassem “os ditames e a orientação da cultura pátria” antes de as colónias exprimirem “o seu pensamento e manifestar as suas tendências”.

Mas havia ainda um outro significado especial nesta iniciativa. Conforme sublinhava Pimentel Bastos, “é daqui, de Macau, da mais longínqua irmã duma Família de oito, que sai o grito de chamada, deste lugar onde está actualmente mais na iminência de ser posto à prova o valor da raça secular que soube atravessar todas as crises e saberá também debelar esta, como sempre, com a galhardia e a firmeza que a caracterizam”.

Era de forma velada que se fazia referência à realidade da recente, mas já complicada convivência com o vizinho regime comunista, instalado no poder da China havia pouco mais de um ano. Meses antes, estalara a Guerra da Coreia. Sobre este(s) assunto(s), o tenente Hernâni Anjos, nas páginas da mesma edição da Mosaico, também não se alongava: “É dum ponto da presuntiva linha do bloco ocidental – onde o Homem que é livre se confina – que, veementemente, lançamos o nosso entusiástico apelo a todo o Império”. E mais não se dizia.

Apesar dos argumentos que se declaravam plenos de importância, dos Jogos Florais do Ultramar não voltou a haver notícia. Mas confirmou-se a aproximação de uma crise. A “iminência” durou dois anos a atingir directamente Macau, no centro da acusação dos Estados Unidos, Reino Unido e França sobre violações ao embargo comercial contra a República Popular.

Sob a pressão internacional, a questão levou a pequenos conflitos na fronteira das Portas do Cerco, entendidos como provocações e avisos, que terminaram após negociações, nas quais se destacou Pedro Lobo.

A resolução da disputa sem que houvesse males maiores levaria o encarregado de negócios da missão britânica em Pequim, J.C. Hutchinson, a comentar que “os portugueses parecem ter mantido com sucesso a sua imunidade comparativa contra graves repercussões em relação a Macau, o que tem sido uma curiosa característica tradicional da história chinesa durante gerações”. Nada de novo. Para uns, jogos de guerra; para outros, jogos florais. Não era preciso mudar uma vírgula.

Hugo Pinto

Jornalista

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