Os notáveis do Estreito

 

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A respeito de Singapura, o saudoso monsenhor Manuel Teixeira, incansável compilador da memória lusitana no Oriente, com a exuberância e o exagero inerentes à sua personalidade, dizia-nos que “os apelidos Sousa e Pereira predominam por tal forma que se diz que, atirando-se uma pedra ao ar nesta cidade, irá cair sobre um Sousa ou um Pereira”. Na toponímia da cidade-estado há, de facto, a De Sousa Street, em memória do abastado comerciante Manuel de Sousa, detentor da empresa Aitken, De Sousa & Co, isto para além das conhecidas D’Almeida Street e Almeida Road, e as menos calcorreadas Desker Road (em nome do malaqueiro André Filipe Desker) e a Ennes Street, em memória do bispo de Macau, Dom Bernardo de Sousa Enes.

Outro dos notáveis de Singapura foi António Feliciano Marques Pereira, cônsul de Portugal no Sião, que, em 1875, ficou também com as dependências consulares de Malaca e Singapura. Chegou a Macau em 1859, onde se casou e se viria a notabilizar como escritor e investigador histórico. Apaixonado pelo jornalismo, que exercera em Lisboa, foi redactor do Boletim do Governo de Macau, de 1860 a 1862, e fundou e dirigiu o semanário Ta-ssi-yang-kuo, que se publicou em Macau de Outubro de 1863 a Abril de 1866. Foi autor de vários livros e, a nível administrativo, exerceu o cargo de superintendente da emigração chinesa e de procurador de assuntos sínicos. Foi ainda nomeado secretário da missão diplomática à corte de Pequim, da qual era chefe o governador de Macau, Isidoro Francisco Guimarães, e, dois anos mais tarde, deslocar-se-ia de novo a Pequim, desta feita numa missão chefiada pelo governador Coelho do Amaral. Escreve a seu respeito o padre Manuel Teixeira: “Em 1869, demitiu-se do cargo de procurador de negócios sínicos para se defender das graves acusações que lhe eram assacadas pelo redactor do Echo do Povo.”

Outro diplomata com ligações a Macau foi Melécio Joaquim Vieira Ribeiro, que era, aliás, “filho da terra”. Nascido em 1839, Melécio exercia as funções consulares de Portugal em Saigão quando, em Abril de 1878, “o cônsul do Sião e dos Estreitos de Singapura e Malaca e suas dependências, António Feliciano Marques Pereira, declarou que, tendo de ir gozar licença durante seis meses, Melécio Ribeiro continuava encarregado do consulado geral dos estreitos e Joaquim Vicente de Almeida, do consulado de Sião”.

Este rodar de cadeiras nos cargos diplomáticas está bem patente na correspondência recebida das colónias e compilada no Fundo do Conselho Ultramarino, onde se encontra reunida documentação de várias instituições da administração central que superintenderam na gestão do império colonial português. Assim: dá-nos conta da “necessidade de um agente consular em Singapura”, em 1834; da “transferência do consulado português no Sião para Singapura”, em 1870; da “nomeação do cônsul de Portugal no Sião”, em 1873; e da “viagem do governador de Macau a Saigão, Banguecoque e Singapura”, em 1878.

Também houve quem a Singapura fosse apenas para ser sepultado. Foi o caso de Januário Agostinho da Silva, reputado comerciante da praça de Macau que integrava o governo aquando das lutas entre absolutistas e liberais, tomando claro partido pelos primeiros. Em 1835, partiu de Macau para Bombaim no brigue Caçador, de que era proprietário e capitão. Faleceu no regresso, estando hoje sepultado no Fort Canning.

Cláudio António da Silva é outro dos notáveis filhos da terra do Estreito. Nascido em Macau em 1860, ocupou o cargo de director do jornal Singapore Free Press, superintendeu a imprensa nacional do governo local ao longo de quase uma década e ainda dirigiu a gráfica C.A. Ribeiro & Co. Ltd. O seu quarto filho, Cláudio Henrique da Silva, era considerado um dos melhores advogados da cidade, tendo sido várias vezes membro do Conselho Legislativo, comissário municipal e ocupado cargos de relevância noutras instituições.

Segundo nos informa Manuel Teixeira os restantes filhos de Cláudio António da Silva também se distinguiram: Leonardo Sato formou-se em medicina, exercendo a sua profissão como médico do governo, João Lourenço foi superintendente dos matadouros municipais, Áurea Melinda foi uma das fundadoras do Movimento da Juventude Eurasiana e Francisco da Silva trabalhou na base naval. Conclui o monsenhor: “Os Silvas em Singapura elevaram-se a altas posições, honrando aquele que lhes deu o nome.”

IIM LOGOTIPO - 2015 (19)

Joaquim Magalhães de Castro, escritor e investigador da expansão portuguesa. Escreve neste espaço às quartas-feiras.

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Vida Fácil

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Começa, neste Domingo, a grande preparação para a Festa do Nascimento do Senhor Jesus.  O Advento, em tempo mais limitado, prepara-nos para celebrar, com maior profundidade, a Encarnação de Jesus Cristo, o  Natal.  A Quaresma, mais adiante, durante quarenta dias, será tempo de preparação da Páscoa, em que se comemora a Morte e a Ressurreição de Jesus Cristo.

O texto do Evangelho do Primeiro Domingo do  Advento é complexo e até um pouco difícil de entender. No entanto, continua a ser uma referência para  a vida de todos nós. Tomemos algumas palavras do Senhor :«Nos dias que precederam o dilúvio,  comiam e bebiam, casavam e davam em casamento, até ao dia  em que Noé entrou na arca; e não deram por nada, até que veio o dilúvio, que a todos levou.»

O ‘dilúvio’ aqui significa, obviamente, um fenómeno específico da natureza de incomensuráveis proporções.  Porém, não podemos esquecer outras do mesmo calibre, tais como, as erupções vulcânicas, os tremores de terra, os tufões, as tempestades de neve ou de areia, as pragas de insectos. Contudo, neste momento, tomo também este termo  para se referir às grandes convulsões sociais ou a situações humanas que na prática – e na vida de cada um –  se tornam um verdadeiro ‘dilúvio’ ou terramoto ou incêndio devastador

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Mas,  aquilo que,  na verdade,  me chama,  mais fortemente, a atenção no texto evangélico é  um outro aspecto:  a reacção humana  perante  calamidades iminentes.       Pode ler-se um primeiro aspecto: «Nos dias que precederam o dilúvio, comiam e bebiam, casavam e davam em casamento». Este comportamento é tão comum  na nossa sociedade actual! Quantos,  no mundo de hoje, perante situações aparentemente intoloráveis,  se lançam por uma via que é uma ilusão total,  como, por exemplo,  no comer excessivo,  no beber até ao descontrolo triste de ficar bêbedo, ou  procurar,  avidamente, o luxo, vaidoso e superficial, ou  a ‘dolce vita’, enganadora. Muitos acabam muito frequentemente por vir a descambar  nas ‘mulheres de conforto’.

As palavras de Jesus, em São Mateus, revelam-nos ainda um segundo aspecto que é de grande valor,  psicológico e espiritual, quando afirma: « E não deram por nada, até que veio o dilúvio, que a todos levou». É incrível, mas realmente acontece! Nos cataclicmos da vida, naquelas situações de ‘crise terrível’, de ‘angústia devastadora’ ou de ‘fracasso estrondoso’, tantas e inúmeras vezes, aqueles que estão envolvidos ‘não  vêm’ , ‘ não sentem’ e confessam que «não deram por nada…».

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Se olho para Macau … A  própria ‘experiência de Macau’  – parafraseando os dizeres dos cartazes publicitários – leva-nos mais longe na compreensão, tanto das palavras do Mestre como da nossa maneira de viver neste pequeno território.

O povo do tempo da Arca de Noé ou a população das cidades de Sodoma e Gomorra  comiam, bebiam  e divertiam-se. Não estavam  conscientes  nem da falta de valores morais mais elevados  nas suas vidas nem dos cataclismos que se avizinhavam.

A boa vida, que tanto se apregoa em Macau: boa comida,  boa bebida e boa dormida.  O bem vestir, segundo o último grito da moda e o comprar o mais luxuoso das montras e dos stands  que, fina e agressivamente, se estimula. O bem-estar  e os divertimentos que não páram de aparecer e sempre com novidades … E,finalmente, o jogo que é a indústria da exploração, ao máximo, da ‘fragilidade humana’

Isto é Macau.

Só que todo este modo de viver revela no íntimo de muitos ‘a angústia’´nas suas  existências. Por isso compreeendo aquela jovem chinesa, do Continente, que me dizia: « Macau deve ser um lugar de excelência moral.»   

E eu respondo: ‘Macau continua a ser «A Cidade do Santo Nome de Deus»’.

 

Luís Sequeira, sacerdote e antigo superior da Companhia de Jesus em Macau. Escreve neste espaço às sextas-feiras.

 

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Um palco para Macau

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Quando as luzes se apagam, palco e plateia são espaços mergulhados no nevoeiro. Ao fundo, duas ou três luzes vermelhas parecem indicar pontos de chegada. Quem já desembarcou em Macau a horas nocturnas reconhece o momento e vê neste palco do Teatro Meridional uma mimese fiel dessa chegada no ferry, a água do Rio das Pérolas a tocar a névoa baixa, as primeiras luzes dos casinos a anunciarem-se lá ao fundo. Não há subida do pano, porque intérpretes e espectadores estão já no mesmo barco, que depois há-se ser templo, bazar, beco, casino e Porto Interior. «Contos em Viagem – Macau» é o quarto espectáculo que o Teatro Meridional leva à cena num projecto que pretende criar uma dramaturgia a partir de textos não teatrais do universo da língua portuguesa. Depois de duas passagens pelo Brasil e uma por Cabo Verde, chegou agora a vez de Macau.
Criar um espectáculo cénico a partir de textos dispersos é um risco que por vezes desaba na fragmentação, algo que nunca sucede neste caso. Usando textos de Camilo Pessanha, Fernanda Dias, Henrique de Senna Fernandes, Fernando Sales Lopes, Maria Ondina Braga ou Yi Lin, entre muitos outros, Natália Luiza criou uma narrativa que não força ligações, mas que alcança, em cada quadro, as secretas afinidades em torno de uma cidade e da sua respiração. O risco era ainda maior pelo facto de em cena estarem apenas um actor, Romeu Costa, um músico, Rui Rebelo, e uma bailarina, Margarida Belo Costa. Quem não viu pode estar a imaginar a música como pano de fundo, a dança como acessório exótico, o actor a desfiar frases sem outro eco que não o da sua voz… Nada disso acontece. Os três elementos são intérpretes plenos, cada um recorrendo à sua expressão, e o que temos é uma narrativa que tem na música, na dança e na interpretação teatral os modos de se contar. Da ideia de desterro para quem chega de paragens europeias às muitas definições de identidade, das velhas ruas do bazar ao carrossel imparável dos casinos, também não faltam as referências ao quotidiano, às dúvidas perante o outro – que em Macau nunca é bem outro, ou apenas outro, mas pelo meio há idiomas que não se encontram, equívocos que não se desfazem e lá vem a alteridade alimentar a discussão – às histórias mais ou menos caseiras que foram formando o lastro narrativo de um lugar. O ponto de vista é o de portugueses e macaenses, sobretudo, mas no modo como se olha há espaço para quem olhe de volta e também os chineses de Macau têm voz, e sobretudo corpo, neste palco. Pelo meio, há cenas memoráveis, como o belo encontro entre Vong Mei e o espírito por quem se apaixona, a partir de um conto de Deolinda da Conceição, ou o diálogo hilariante entre Clara e João, tirado de uma das «Histórias de Macau», de Altino do Tojal, onde a exibição do preconceito ridiculariza para a posteridade quem dele sofre.
Em português, quase sempre, mas também em patuá (e até com uma ou outra palavra em cantonês), «Contos em Viagem – Macau» esteve em cena durante quatro semanas, no Teatro Meridional, em Lisboa, e fez o seu percurso com o impacto possível numa cidade onde talvez aconteçam demasiadas coisas – ou talvez haja pouca gente a falar sempre das mesmas, está por descobrir. Pode ser que a ideia de viagem se entranhe um pouco mais neste projecto e o Teatro Meridional possa embarcar até esse lado do mundo. Seria uma pena se este espectáculo não chegasse a um qualquer palco de Macau.
Sara Figueiredo Costa, jornalista e critica literária. Escreve neste espaço uma vez por mês.

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REI E SENHOR

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«Jesus Cristo, Rei do Universo» é a Solenidade que se celebra neste que é o último Domingo do Ano Litúrgico. Não discuto a questão da terminologia ser mais medieval ou menos  moderna e actual. Abordar esse assunto também faz sentido. Mas, estou muito mais interessado em perceber como um homem  como Inácio de Loiola ou como uma mulher como Teresa de Ávila – ambos das figuras mais extraordinárias e das mais influentes da História da Igreja –  foram radicalmente transformados por Jesus Cristo,  apesar de o chamarem Rei, segundo a mentalidade  e os costumes da sua época. O importante é a pessoa de Jesus Cristo, não o seu título. Este está sempre muito ligado à realidade histórica e socio-cultural da comunidade dos crentes.

No entanto, os títulos,  mesmo que sejam antiquados, deixam  sempre compreender uma e qualquer  realidade  mais profunda,  reveladora da identidade e, concretamente, de qualidades da pessoa que recebeu o título. Jesus Cristo é chamado «Rei e Senhor». E é-o, de facto. Contudo, de um modo diferente de como vêmos exercer os reis e as rainhas,  passados e actuais.

O Senhor, primeiro de tudo, assume a Sua autoridade como uma autoridade de serviço, não como uma autoridade de poder. Veio «para servir e não para ser servido.»  Segundo, o Seu serviço é um serviço de Amor  pelos outros e a cada um de nós,  «até dar a Sua vida pelos Seus». Terceiro, a Sua autoridade revela-se e afirma-se ainda dum modo particular e único pelo facto de estar  radicada na Sua própria experiência humana.  Essa admirável manifestação da Sua autoridade  é-nos apresentada  por São Paulo, na sua Carta aos Cristãos de Filipos: «Cristo Jesus…Ele que era de condição divina, não reivindicou o direito de ser equiparado a Deus; mas despojou-se a Si mesmo, tomando a condição de servo, tornando-se semelhante aos homens. Tido pelo aspecto como homem, humilhou-se a Si mesmo, feito obediente até à morte e morte de Cruz. Por isso é que Deus O exaltou e Lhe deu um nome que está acima de todo o nome, para que, ao nome de Jesus… toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor,  para a glória de Deus Pai»

O Senhor Jesus, sendo ‘verdadeiro Deus’ ao tornar-se ‘verdadeiro homem’, conheceu,  por experiência própria, a nossa humanidade frágil e a nossa história, e sendo´Ele, ‘o santo dos santos´, experimentou  no seu corpo, em agonia, ‘o poder do Mal’. Porém, pela força divina, na Ressurreição, Ele, o Senhor, afirmou a Sua autoridade suprema sobre a Humanidade e o Universo. Nada escapa, na verdade  à Sua mão poderosa e amorosa.

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Cristo apresenta-se como «Senhor e Rei».  Hoje como outrora, continua a enfrentar e a propor à Humanidade, que somos  todos  nós, um caminho de excelência.  Faz um convite contrário aos nossos gostos fáceis, superficiais e  enganadores. Tem  exigências. Os santos, na variedade caleidoscópica de suas vidas são os grandes expoentes dessa experiência. Sim, o caminho é ‘arduo e estreito’. Mas, a felicidade interior não se pode comparar com nada nem com ninguém neste mundo.

Há que reconhecer que, ao fim e ao cabo, é a Sua Pessoa, a Sua Palavra e o Seu Modo de Viver que atraiem, fundamentalmente, todas as pessoas. Uma transformação radical dá-se.Todos aqueles ‘tocados’ por Deus vivem numa contínua atençao à presença de Deus, procurando por em prática‘ ver  tudo em Deus e Deus em tudo,  como dizia Inácio de Loiola‘

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E nós…, homens e mulheres em Macau? Na minha vida pessoal, familiar ou comunitária, profissional, social e política, tem o Senhor Jesus autoridade no meu modo de viver? Quais são os critérios que antecedem as minhas decisões? Poderei perguntar  são os de Cristo?

Vejamos os nossos líderes, actuais ou futuros… Que valores estão sobre a mesa?

As guerras aumentam,  a corrupção alastra. Que falem as lágrimas que os oceanos cobrem…..

 

Luís Sequeira, Sacerdote e antigo superior da Companhia de Jesus em Macau. Escreve neste espaço às sextas-feiras.

 

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Incremento da transparência fiscal implica menor evasão?

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As leis fiscais não acompanharam, na mesma velocidade e com o mesmo vigor, as mudanças impostas pela globalização. Reestruturações empresariais e a expansão das economias digitais criaram significativos distanciamentos e desajustamentos das leis fiscais em relação à nova realidade mundial. Diante do defasado arsenal de que dispunham as Administrações Tributárias, grupos transnacionais – por meio de inventivos planejamentos fiscais- reduziram drasticamente os seus custos tributários.

Erosão da Base Tributária e Transferência de Lucros (Base Erosion and Profit Shifting – BEPS) é a expressão que se refere a estratégias de planeamento fiscais que exploram esses distanciamentos e desajustamentos das regras fiscais para artificialmente deslocar lucros para jurisdições com baixa ou nenhuma tributação.

Diante desse cenário e após mais de dois anos de discussões que envolveram a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico – OCDE – e os países do G-20, como também mais de uma dúzia de países desenvolvidos, aprovou-se, no final de 2015, o Projeto BEPS, que, em linhas gerais, estabeleceu 15 (quinze) acções-chave para adequar a estrutura fiscal internacional e garantir que relevantes informações – v.g., lucros – sejam reportadas à Administração Tributária competente. Com a aprovação do projeto BEPS, o foco voltou-se, então, para o desenho, a implementação e o apoio de estruturas de controle e monitorização das medidas previstas no projeto.

Como parte dos contínuos esforços para aumentar a transparência de empreendimentos transfronteiriços, o Brasil, Guernsey, Jersey, Ilha de Man e Letónia assinaram, no último dia 21 de Outubro, em Paris, o Acordo Multilateral de Autoridades Competentes (MCAA) para o Common Reporting Standard (CRS). Tal Acordo é suportado pela Convenção sobre Assistência Mútua Administrativa em Matéria Tributária (subscrita, por vários países, como por exemplo Portugal, Gana, Arábia Saudita e África do Sul) e reforça o compromisso brasileiro e demais países na execução do padrão global para o intercâmbio automático de informações financeiras para fins tributários, a ser implementado até Setembro de 2017. A marca alcançada representa um momento histórico na realização do pacote BEPS e um significante avanço na cooperação fiscal internacional.

Na mesma data, o Brasil assinou o MCAA para o Country by Country (CbC), segundo modelo de intercâmbio automático de informações para fins tributários, por meio do qual grandes grupos multinacionais deverão encaminhar anualmente informações agregadas para as Administrações Tributárias de cada jurisdição em que mantenham negócios. Esse modelo também integra o Projeto BEPS da OCDE e representa significativo incremento na transparência, de modo a fornecer aos países signatários instrumentos de combate contra planeamentos fiscais considerados abusivos. Com a subscrição dessa convenção, as Administrações Tributárias (v.g., Nigéria, Senegal e África do Sul) passam a ter acesso a informações sobre contribuintes, inclusive dados financeiros, de outras 49 (quarenta e nove) jurisdições e países signatários.

Praticamente, uma semana depois, foi a vez do Panamá firmar um acordo perante à OCDE de modo a impulsionar a transparência e combater a evasão fiscal entre fronteiras. Esse pacto revela uma das frentes de trabalho para melhorar a reputação internacional após as duras críticas que enfrentou em razão do escândalo denominado Panama Papers. Não foi à toa que o Secretário Geral da OCDE, Srº Angel Gurría, fez questão de afirmar que “este acordo representa um claro sinal de que a comunidade internacional está unida nos seus esforços para acabar com a evasão fiscal internacional. Vamos continuar com os nossos esforços até que não reste nenhum lugar que sirva para ocultar recursos”.

É indubitável que, nos últimos anos, o Panamá logrou significativos avanços nos níveis legal, regulatório, institucional e operativo, a fim de reforçar o seu sistema financeiro, combater a lavagem de dinheiro, o contrabando, tráfico de drogas e práticas escusas de financiamento do terrorismo e de armas. Tais avanços permitiram inclusive que o país fosse excluído da lista negra do Grupo de Acção Financeira Internacional.

A celebração da Convenção sobre Assistência Mútua Administrativa em Matéria Tributária para troca de informações de interesse fiscal permitirão consistente e célere implementação do novo padrão de comunicação de informações afectas, por exemplo, a preços de transferência desenvolvido pelo plano de acção BEPS, com o fito de assegurar que as Administrações Tributárias obtenham completa compreensão das estruturas das operações desenvolvidas por empreendimentos transnacionais.

Os informes intercambiados entre as Administrações Tributárias requererão que as multinacionais forneçam às autoridades fiscais das jurisdições em que operam informações agregadas, relatando as receitas, lucros, despesas, número de empregados contratados, títulos, capital investido e tributos pagos. Cobrirá também informação sobre as entidades que se relacionam empresarialmente em determinada jurisdição e as actividades comerciais que cada entidade está engajada. Se, por um lado, os relatórios anuais serão fornecidos às Administrações Tributárias, munindo-as de preciosas informações, a estas caberá garantir o sigilo das informações permutadas.

Como se vê, Administrações Tributárias crescentemente se mobilizam e passam a possuir maior quantidade e melhores informações, inclusive advindas de países considerados de tributação favorecida ou de regimes fiscais privilegiados. A melhor compreensão dos empreendimentos transnacionais e o novo arsenal que as Administrações Tributárias passam a deter explicam o porquê do relativo sucesso de boa parte dos programas de repatriamento lançados nos últimos meses, inclusive o brasileiro.

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Alexandre Fadel (professor e mestre em Direito/UFRJ), Antonio Sepulveda (professor e doutorando em Direito/UERJ) e Igor de Lazari (mestrando em Direito/UFRJ) são pesquisadores do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das Instituições – Letaci/PPGD/UFRJ.

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O Sopro de Pak Tai:O fado dos mardijkers

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O mercado municipal de Bukkitingi, no oeste da ilha de Samatra, fica mesmo ao lado do término dos fiacres puxados por póneis, uma das especificidades da cidade, transporte público de eleição. Nesse labirinto de tendas e tendinhas – onde em tempos eram muito requisitadas T-shirts com o busto de Bin Laden – depararia com um relevante vestígio da lusa passagem por aquelas paragens. Numa banca com uma variedade impressionante de cassetes e VCd, sobretudo de música tradicional, reparei num tema recorrente em muitas das bandas: o kaparinyo, canção inicialmente popularizada na costa oeste de Samatra e posteriormente divulgada em todo o arquipélago. Ora bem, o kaparinyo provém do lagu cafrinyo, tema de origem portuguesa, ainda hoje cantado no bairro dos luso-descendentes de Tugu, nos subúrbios de Jacarta, e que se insere num estilo musical denominado kroncong, que a etnomusicóloga Margret Kartomi define da seguinte forma: “Kroncong é ao mesmo tempo um conjunto e um reportório musical, caracterizado principalmente por um estilo vocal em que se canta de uma maneira sentimental, com um acompanhamento instrumental em que são utilizadas harmonias europeias.”

Na sua forma original, os tempos e contratempos do kroncong eram tocados em viola apropriada, com corpo de madeira ou casca de coco, hoje praticamente obsoleta. São três os tamanhos das violas kroncong: macina (maior e mais grave), bordong (tom e tamanho médios) e prounga (mais pequena e de som mais agudo). Actualmente, os agrupamentos que mantêm vivo esse estilo musical substituíram as violas kroncong pelos cavaquinhos e bandolins eléctricos, podendo eventualmente integrar a orquestra o violino, a flauta e vários tipos de percussões.

Mestiços e escravos africanos, indianos e malaios com carta de alforria, os denominados mardijkers –  ou “portugueses negros” – como também eram conhecidos, foram os primeiros intérpretes deste género musical, que, de certa maneira, podemos associar ao fado. Durante o domínio holandês, essa gente, entretanto classificada como portugi, logrou obter um pedaço de terra, fundando a colónia de Tugu, ainda hoje existente. Distingue-os o crioulo e o kroncong, cujos intérpretes, em Java e no sul de Samatra, são conhecidos como tanjidores.

A maior parte das famílias de Tugu emigrou para a Holanda, já na década de 1970, tendo as restantes ido viver para o centro da cidade, deixando o bairro praticamente abandonado. Não obstante, os que resistiram continuam a manter vivas as suas tradições e há ainda quem se lembre do patuá local, socorrendo-se de deliciosas expressões como “tem genti qui quere bir casa” sempre que anunciam a chegada de um forasteiro.

A pouco quilómetros de Bukkitingi, a aldeia de Maniju estende-se ao longo das margens de um lago com o mesmo nome, na cratera de um vulcão extinto há milhares de anos. Em certos pontos desse extenso lençol de água, a profundidade chega a atingir os 480 metros. Maniju é um lago Toba em ponto pequeno e um desses sítios ideais para quem busca isolamento e sossego, por consequência, candidato à minha lista de escolhas.

Havia, contudo, um outro motivo para uma deslocação a Maniju. Fabricavam-se na aldeia os famosos tambores de caixilho utilizados em toda a Samatra e que, como comprovam as investigações de Margret Kartomi, têm origem nos tambores de caixilho do Norte de Portugal: “Desde os primórdios do império, os portugueses trouxeram para Malaca e outros centros coloniais imensos instrumentos musicais, tais como violas, tambores de caixilho e cordofones de arco, possivelmente violinos altos, que eram chamados viola em português e em malaio biola.

Estes instrumentos eram tocados ao estilo europeu por escravos de várias origens nas grandes casas senhoriais dos portugueses e, mais tarde, nas dos holandeses. Obviamente, essa tradição cedo chegou à próspera cidade do Santo Nome de Deus. O historiador Charles Boxer recorda que, em 1637, em Macau, um jantar sumptuoso preparado pela mão-de-obra escrava seria acompanhado por “boa música, incluindo voz, harpa e viola”. Lembra ainda o historiador que, em 1689, uma noiva de Batávia, proprietária de cinquenta e nove escravos, numa carta, afirmava que alguns deles tocavam harpa, violas e fagote durante as refeições. Ao “juntarem-se às grandes casas senhoriais”, tornando-se, desse modo, cristãos, esses “portugueses negros”, essencialmente escravos africanos e asiáticos, esperavam obter a nacionalidade portuguesa, o que acontecia com frequência. Muitas deles tinham apelidos portugueses e praticavam costumes portugueses. Como é sabido, dos poderes coloniais europeus, só Portugal encorajava os seus homens a casar com as mulheres locais e a instalarem-se nos “países de acolhimento”, porque, como salienta o historiador Paramita Abduracham, “ao criarem raízes nos seus países novos, também plantariam raízes para os interesses portugueses”.

IIM LOGOTIPO - 2015 (17)

Joaquim Magalhães de Castro, escritor e investigador da expansão portuguesa. Escreve neste espaço às quartas-feiras.

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Momentos Críticos

1.Luis Sequeira

No Evangelho deste Trigésimo Terceiro Domingo do Ano Litúrgico, Jesus Cristo  anuncia aos Judeus ‘a situação crítica’ por que irão passar num futuro não muito longínquo: a destruição da cidade de Jerusalém pelos Romanos. E fá-lo, referindo-se ao Templo, em termos verdadeiramente drásticos: «não ficará pedra sobre pedra; tudo será destruído.»

À pergunta dos que O escutavam: « Mestre, quando sucederá? Que sinal haverá de que está para acontecer ?», o Senhor Jesus dá uma resposta que me parece ir ao encontro da ‘situação crítica’, com a melhor  pedagogia.  Aborda o momento aflitivo,  antes de tudo o mais, indo ao lugar que é origem de toda a perturbação, isto é,  ao coração,  ao ‘eu’,  profundo e íntimo.

Daí,  serem correctíssimas as observações feitas por Jesus Cristo, o Mestre.

A primeira, quando aconselha: «Tende cuidado, não vos deixeis enganar, pois muitos virão em meu nome e dirão: ‘Sou eu’» E isto é tão real! Quantos e quantos de nós, mal aparece um problema, uma crise, uma aflição, acreditam logo em qualquer um que se apresenta e vão atrás do primeiro ou da primeira que lhes explica o presente e o futuro. Quantos, na comunidade cristã, estão, obsessivamente dependentes, de horóscopos,  leitores de cartas, ‘mestres dos  espíritos’, ‘videntes’ e outras coisas mais ?  Ao contrário, quais são aqueles que são capazes de se sentar ‘aos pés de Jesus’, como Maria, irmã de Marta, e presentar-lhe as suas aflições e angústias ? E, em silêncio e com humildade, esperar. Ele falará no mais íntimo.

A segunda advertência do Senhor Jesus é : « Quando ouvirdes falar de guerras e revoltas, não vos alarmeis». Quando ‘os  momentos críticos’ nos chegam não deixemos que se apodere do nosso coração sentimentos e emoções em grande rebelião, pois, em pouco tempo,  perdemos o sentido crítico da nossa inteligência e, em seguida, não sabemos que fazer,  perdemos memo a força de vontade e a capacidade de decisão. E criamos um autêntico drama ou – se preferirmos mais acção – uma tragicomédia.

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Mas, o Senhor vai mais longe no seu ensino. Ele, como nosso Senhor e nosso Deus, afirma também duas certezas a ter em conta, nesses momentos terríveis da nossa vida,  muito concretamente, naqueles momentos em que poderemos ser perseguidos por causa dos nossos próprios ideais ou valores ou  até por causa da nossa fé.

«Tende presente em vossos corações que deveis preparar a vossa defesa. Eu vos darei língua e sabedoria a que nenhum dos adversários poderá resistir ou contradizer.» Esta é a primeira grande afirmação de Jesus Cristo,  nosso Salvador. Na hora da argumentação,  não nos faltará nem a  perspicácia nem a lógica para rebatecer.

Mas mais ainda.  A sua protecção vai mais além.  O Senhor diz : «Causarão a morte a alguns de vós  e todos vos odiarão por causa do meu Nome, mas nenhum cabelo da vossa cabeça se perderá.» Ele o Senhor Deus, todo poderoso,  estará sempre connosco nas circunstâncias mais tenebrosas. Se formos levados até ao extremo de experimentar a morte violenta,  permanece a certeza de que Ele nos receberá nos seus braços amorosos, numa felicidade que, neste mundo, não conseguimos atingir e compreender.

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Por fim, o texto evangélico termina com  uma chamada de atenção do Mestre : «Pela vossa perseverança salvareis as vossas almas.»  Esta frase final faz-me lembrar aquilo que é tão comum  no comportamento humano, o não saber esperar. Direi, porém, que toda a transformação,  quer humana quer espiritual, não terá lugar  sem se lhe dar tempo  Tanto no foro físico, psicológico e social como no intelectual, moral e  professional ou ainda no espiritual, religioso ou  místico nada acontecerá de significativo senão se der tempo à natureza e à acção de Deus.

A propósito de os Judeus quererem um ‘sinal’ para acreditarem ou do facto de Jesus falar, de quando em vez, do saber ler  e compreender ‘os sinais’ da presença de Deus, no nosso dia a dia.

Ponho-me uma questão, no rescaldar da campanha eleitoral americana. Porquê razão Hilary Clinton, após reconhecer a vitória de Donald Trump, não consegue assumi-lo diante da  sua  própria gente?  Não será isto ‘sinal’ de uma fragilidade mais profunda e séria escondida que, para quem desejaria ser presidente, poria a própria América e o Mundo em perigo, se, na politica nacional ou mundial, um dos seus planos fosse completamente rejeitado ou aniquilado ou se transformasse num completo fracasso? Portanto, menos capaz…

 

Luís Sequeira, Sacerdote e antigo Superior da Companhia de Jesus em Macau. Escreve neste espaço às sextas-feiras.

 

 

 

 

 

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E depois de Trump, para onde caminha a democracia?

 

Donald Trump elected US President

Donald Trump ganhou as eleições. A julgar pela campanha eleitoral e pelas qualidades morais do indivíduo, com alguma sorte, daquela cabeça pouco mais sairá do que um chorrilho de ameaças e chavões vazios. Ou talvez nem isso. Mas, por mais sombrio que este 9 de Novembro (8 nos States) se prefigure – por mais absurda e irreal que se afigure a obrigação de se ter de tratar uma espécie de esfregona como o líder do “mundo livre” – convém lembrar que Trump não foi escolhido nos bastidores de Bruxelas ou nomeado por Pequim.
Foi – isso sim – eleito democraticamente pela população de um país que, aparentemente, até tem um dos sistemas eleitorais mais justos e equilibrados do mundo. Depois do anúncio do triunfo do candidato republicano o que mais se viu no arraial ilusório de activismo que são as redes sociais foi gente – talvez em demasia – a passar atestados de ignominiosa burrice e despudorada ignorância ao eleitorado norte-americano, como se a culpa pelo incerto desconcerto que se apoderou da América e do mundo lhes pudesse ser assacada a eles e apenas a eles. Boa parte dos autores de tais atestados é gente esclarecida e diz-se defensora da democracia participativa. Não o são, em boa verdade.
Um verdadeiro democrata acredita na soberania do voto com o mesmo fervor com que um verdadeiro católico acredita na ressurreição. Mais do que a universalidade dos direitos humanos – que exige um nivelamento dos valores culturais que ainda não é partilhado por grande parte dos povos – a soberania do voto é o que a democracia tem de mais parecido a um dogma, a uma verdade intocável e sacrossanta.
O problema da democracia é outro. Está há muito enferma e não há quem a queira ver restabelecida e forte, como se arrogou ser outrora. O que a vitória de Donald Trump – e antes disso o Brexit ou a ascensão da Frente Nacional, em França – revelam é uma incapacidade letal de renovação por parte dos agentes democráticos – partidos, sobretudo, mas também escolas, movimentos cívicos e meios de comunicação social – que façam do processo democrático aquilo que ele deve ser, um mecanismo de exponenciação do bem comum e da felicidade geral.
E por falar em felicidade, nisto de se zelar pela vitalidade democrática há também um não sei o quê de amor: tal como numa qualquer relação, para que a democracia vingue é necessário alimentá-la, apaparicá-la, limpá-la dos seus pruridos, confortá-la pelos seus desgostos. E votar o mais das vezes não basta.
É necessário denunciar compadrios, levar corruptos à barra dos tribunais, deixar cair ideologias, alargar o espectro de voto e não pactuar com lobbies e com as relações promíscuas que sempre uniram o poder político e o poder económico. É condenar todos os livros de Sócrates ao fracasso, insurgir-se contra a desvirtuação do Segundo Sistema, penalizar quem tira partido do jogo de sombras em que a política se tornou e, sobretudo, denunciar injustiças. É não esquecer e não ignorar. É deixar o Facebook e sair à rua.

Marco Carvalho

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Cidade imaginária

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Num livro que é um verdadeiro prodígio da imaginação humana (tal como “Aleph” de Borges, “Frankenstein” de Mary Shelley ou algumas obras de Philip K. Dick, J. G. Ballard ou Stanislav Lem), Italo Calvino relata um diálogo imaginário entre Kublai Khan e Marco Polo. O viajante entretém o imperador com relatos de cidades contínuas e cidades subtis, que se definem pela sua relação com os homens e com os signos. Quem leu “Cidades Imaginárias” nunca irá esquecer a cidade construída no deserto que se assemelha a um labirinto e que foi fundada por aqueles que sonharam com uma bela mulher nua que lhes escapava sempre antes de despertarem. Criaram-se cidades visíveis por necessidade, por desejo ou pela força do comércio. E nelas nasceram outras invisíveis, que muitas vezes parecem ser subterrâneas perante os nossos olhos. Talvez ainda hoje seja fascinante para mim a criação de cidades como Macau ou Hong Kong. Esta foi um desejo de uma potência que, depois de ter tentado absorver Macau, decidiu criar de raiz algo que fosse a sua imagem nas margens do Império do Meio.

Hong Kong nasceu de guerras por causa do ópio que ajudou a financiar a indústria britânica na época em que impunha as leis nos mares. Tudo em nome do “comércio livre” (a história repete-se hoje como uma farsa ainda mais cínica). O choque sobre o meio de pagamento (a China só queria prata em troca do chá e da porcelana) saia demasiado caro aos britânicos. O narcótico produzido na Índia era um melhor meio: resolvia as contas e adormecia os espíritos mais guerreiros. Macau haveria de ser um dano colateral nestas guerras de onde nasceu Hong Kong.

Não deixa de ser curioso como o poder militar britânico era, na época, muito superior ao chinês. Isto depois de a pólvora ter sido inventada pelos chineses. E de, segundo relatos do século X ou XI, ter sido utilizada em acções militares no território chinês. Em 1083 a dinastia Song distribuiu milhares de flechas com pólvora às suas guarnições. Os alquimistas chineses da época criaram artefactos que, por exemplo, em 1232 impediram os mongóis de tomar Kaifeng. A batalha naval de Poyang, uma das maiores da história, que terá envolvido cerca de meio milhão de combatentes, fez-se também ao ritmo de utensílios de fogo com pólvora. Não deixa de ser admirável que se o papel ou a técnica de impressão demoraram muito tempo a chegar à Europa, armas de fogo e bombas chegaram rápido. A partir do século XIV a Europa assistiu a uma revolução balística. As armas cresceram em tamanho e poder de fogo. Começaram a ser capazes de destruir muralhas defensivas, como sucedeu no ataque a Constantinopla em 1453.

No final do século XV, a balística europeia era já superior à chinesa. A entrada vitoriosa das caravelas portuguesas na Ásia deve muito a esse poder de fogo. A Europa, com diferentes Estados sistematicamente em guerra, não admirou que a inovação militar fosse rápida. Tal como tinha sido durante a dinastia Song, numa China então assolada por múltiplos conflitos. A paz não trazia necessidades militares: a dinastia Ming, desde 1368, não necessitava do poderio balístico para combates porque a serenidade reinava no império. Deixaram de ser precisas armas mais potentes.

Na Europa as guerras sucediam-se: Entre 1480 e 1700 a Inglaterra teve envolvida em 29 guerras, a França em 34 e a Espanha em 36. Quando chegaram aos mares da China os navios portugueses tinham as melhores e mais poderosas armas de fogo. No século XVII os mosquetes e as técnicas de perfuração desenvolvidas pelos holandeses tornaram-se mortais. As tácticas militares desenvolveram-se: os atiradores disparavam e iam para a retaguarda para recarregaram, tal como faziam nas suas superiores tácticas militares os arqueiros chineses séculos antes. Mas os navios holandeses da época, que se moviam rápido e com três andares de canhões, eram poderes quase divinos sobre as águas. A marinha chinesa da época nada podia fazer contra eles. A dinastia Qing, chegada ao poder em 1644, nada podia fazer contra estes poderes militares, apesar de ter armas também muito fortes. Mas o estímulo da guerra desaparecera. A marinha de guerra britânica venceu facilmente as guerras do ópio com um poder de fogo que a industrialização trouxera às armas e munições de que dispunha. Não admira que os britânicos tivessem imposto a sua lei à custa do poder militar. Hong Kong nasceu e cresceu. Tornou-se uma cidade visível, mesmo que no seu mundo subterrâneo existissem muitas cidades invisíveis. Mundos comerciais como os que descobrimos à superfície. Portos cheios de cruzamentos culturais. Locais de sonhos, invejas, paixões e pesadelos. Que nos mostram como os labirintos percorridos pela história e pelos nómadas que a fazem acabam sempre por terminar numa saída qualquer.

 

Fernando Sobral, escritor e jornalista. Autor de “O Segredo do Hidroavião e “A Jóia de Goa”, escreve neste espaço uma vez por mês.

 

 

 

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O Sopro de Pak Tai: Uma união não consentida

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Na crónica da semana passada deixamos Leonardo Veiga na década de 1970, nos arredores de Pequim, numa colectividade agrícola onde conhece uma rapariga com quem acaba por casar. Tem então 22 anos. “A minha mãe foi sempre contra esse matrimónio, achava-me muito novo”, diz. Leonardo decide casar porque já não acreditava no futuro, e o melhor que tinha a fazer “era ligar a minha vida a outra pessoa”. A mãe dizia-lhe que essa era uma visão errada, pois tudo mudava. Dizia ainda que nunca se devia perder a esperança:“Na altura não acreditei nas suas palavras, agora sim”, admite.

O futuro provou que a mãe, a senhora Yu Cheng, tinha razão. Com a liquidação do «Bando dos Quatro» e o fim da Revolução Cultural, em 1978, a família volta a reunir-se em Pequim. Leonardo divorcia-se pouco tempo depois. Era de facto muito jovem ainda … Mas tinha agora um filho e responsabilidades inerentes: “Discutia frequentemente com a minha mulher… A vida na cidade era muito diferente da do campo, ela não se adaptou a Pequim. Discordávamos quase em tudo”.

Regressado à capital, Leonardo retoma o trabalho de que tanto gosta: o ensino de piano na Academia Nacional de Dança. Cedo se apercebe que todo aquele tempo sem tocar piano deixara mazelas. O seu professor confirma: já era tarde para se tornar concertista. Apesar das mãos grandes e do talento natural, os dez anos sem praticar pareciam irrecuperáveis: “Posso hoje afirmar que essa é grande frustração de toda a minha vida: o não ter podido ser um pianista profissional, pianista de concerto”, desabafa o luso-chinês.

A irmã Wei Mei, que entretanto também casara, parte de Saanxi para Hong Kong, onde recebe algum apoio do pai de ambos, o jornalista macaense José Veiga, que esposara Yu Cheng em Kunming, uma ligação desde o início reprovada pela sua família em Macau, apesar dos dois filhos do casal luso-chinês. A hostilidade e o eclodir da Segunda Grande Guerra, seguida da Revolução Cultural, levaram a uma separação de décadas.

“Ele ajudou a minha irmã a ir para Hong Kong pois sabia que a vida na província de Saanxi era muito difícil”, comenta Leonardo. “Deu-lhe uma mesada de 300 dólares para a renda e ela teve de se remediar…”. Wei Mei –  para quem o pai era pouco mais de que um estranho que lhe dava uma ajuda – trabalhou no duro com o marido. “Começaram por fabricar detergente e comiam tofu, massa e legumes para poupar dinheiro. Hoje estão bem na vida”, informa Leonardo.

É a Wei Mei que Leonardo telefona em 1981, a combinar o encontro com o pai, que concorda em vê-lo, embora fosse avisando “que estava bastante ocupado”. O encontro acaba por ser fortuito. Nas escadas do metro, tendo Leonardo reconhecido o pai graças a uma foto antiga que trazia consigo. A conversa continua noite dentro, no pequeno apartamento onde o pai habita: “Nas horas que falei com ele só pensava na minha mãe”, diz.

Estranhamente, Leonardo não permanece em Hong Kong, aproveitando uma época propícia à obtenção de residência no território. Opta por regressar a Pequim onde prossegue os estudos de piano: “Foram tantas as oportunidades perdidas que não me podia dar ao luxo de voltar a desperdiçar mais uma. Faltava-me apenas um ano. Voltei a Pequim para tentar realizar o meu sonho”.

Em 1988 chega à Academia, vinda da província de Gansu, a dançarina Pei Chang Qing, que ali vinha aperfeiçoar os seus conhecimentos. Leonardo torna-se seu professor e, mais tarde, marido: “Foi amor à primeira vista. Tínhamos encontros às escondidas. Assim foi durante quatro anos”, confidencia. Enquanto vice-director do departamento de dança, a sua situação era melindrosa e não podia assumir essa relação. Mas tudo se veio a saber. “Na China não se pode manter nada em segredo por muito tempo”, conclui. Além disso, “há sempre alguém disposto a interferir na vida do próximo”. Leonardo é transferido para o conservatório de Xangai. Uma espécie de punição, já que um ano depois, em 1991, ingressa na mesma escola, e regressa ao convívio daquela que virá a ser a sua segunda mulher.

Depois de tantas dificuldades e anos de separação, parecia que tudo se estava a compor. Faltava só mesmo que Yu Cheng e José Veiga se voltassem a encontrar. E a oportunidade surgiu por ocasião da morte da mãe do jornalista, que nunca aceitou o casamento do filho com a chinesa: “Aquando a morte da minha avô macaense, a minha irmã arranjou maneira de os meus pais se encontrarem. A minha mãe partiu excitadíssima. Podia voltar a ver o seu marido depois de todos aqueles anos. O pai, pelo contrário, manteve-se distante. Estiveram no mesmo hotel, em quartos separados, em Shenzen, ao longo de uma semana. A minha irmã acompanhou-os sempre”, recorda.

Yu Cheng lembrava-se dos bons momentos passados em Kunming e das canções que ele lhe cantava. “I Dream of a White Christmas” era a sua favorita. Ao longo de todos aqueles anos Yu Cheng continuou a cantar esse tema, mas José Veiga de nada se recordava: “As mulheres são bem mais eficazes nestas coisas da memória, não é?”. Yu Cheng voltou a Pequim muito decepcionada e mal mencionou o encontro pelo qual tanto ansiara.

“Tampouco o meu pai manifestou qualquer sentimento afectivo para comigo”, diz Leonardo, que também não sentiu qualquer afeição por José Veiga. Apenas a curiosidade o movia. No fundo, “era como se estivesse a falar com um amigo que já não via há algum tempo”.

Leonardo nem se deu ao trabalho de aferir a situação económica do pai. Sabia que tinha nova família e que continuava a trabalhar para a Reuters – onde aliás permaneceu até se aposentar e ir viver para os Estados Unidos, em São Francisco, “pois a sua família já lá estava”.

Leonardo garante não ter qualquer ressentimento para com o pai: “Tendo em conta que ele não tem qualquer sentimentos para comigo, considero que não tem qualquer obrigação”. Apesar da afirmação, Leonardo, contra todos os obstáculos, fez sempre questão de reivindicar o seu legítimo direito à nacionalidade portuguesa. Porque sim.

IIM LOGOTIPO - 2015 (15)

Joaquim Magalhães de Castro, escritor e investigador da expansão portuguesa. Escreve neste espaço às quartas-feiras.

 

 

 

 

 

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