[Olho Mágico]
Eric Sautedé
É bastante constrangedor reparar que o recente (segundo) rascunho da “Lei de Gestão de ONG’s Ultramarinas” da República Popular da China (中华人民共和国境外非政府组织 管理法) quase não suscitou discussão na nossa Região Administrativa Especial. Ao fim e ao cabo, trata-se de uma lei que vai não só aplicar-se a ONG’s (Organização Não Governamentais) “estrangeiras” mas também a um vasto número de organizações, instituições e associações sediadas em Hong Kong, Macau e Taiwan, como se sugere pelo uso da expressão 境外 (jingwai, literalmente fora das fronteiras de um país). O segundo esboço da lei foi apresentado no final de Abril no Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional e o articulado da segunda proposta publicado a 5 de Maio com a possibilidade dos cidadãos se pronunciarem sobre a questão até 4 de Junho.
Se a lei estava originalmente orientada para “regular e definir as actividades das Organizações Não Governamentais na China, garantindo os seus direitos legais e benefícios e promovendo o intercâmbio e a cooperação” – o que se prefigura como suficientemente claro e razoável – o texto que foi revelado no início de Maio conta uma história completamente diferente, dado o seu âmbito de abrangência e a forma como está redigido, tendo provocado calafrios a muito boa gente, tanto dentro como fora das fronteiras da República Popular da China.
Considere-se primeiro o âmbito de abrangência: a lei, como atrás se referiu, regulamenta a acção de organizações dentro das fronteiras chinesas e abrange ONG’s estrangeiras, mas também os organismos com sede na Região Administrativa Especial e na República Popular da China. Estas organizações são, de um modo muito genérico definidas como “organizações sociais de cariz não governamental e não lucrativo” que actuam “em domínios como a economia, a educação, a ciência e a tecnologia, a saúde, a cultura, o desporto, a protecção ambiental e a caridade”. Como foi referido por muitos observadores, são não apenas os “suspeitos do costume” que estão na mira das autoridades chinesas – as organizações activamente envolvidas em matérias legais, ambientais ou sociais – mas, de forma factual, qualquer entidade não lucrativa é visada: uma escola, um hospital, uma câmara de comércio ou uma instituição cultural, uma associação de estudantes de cariz não lucrativo ou uma associação científica internacional, bem como uma banda de uma escola internacional ou um grupo de voluntários médicos que queiram organizar ou participar em qualquer tipo de iniciativa organizada em solo chinês. Para que tal aconteça, têm necessariamente de se associar a um patrocinador que possa registar legalmente um escritório de representação (um único para toda o território chinês) ou encontrar um parceiro que se disponibilize para os ajudar a obter uma autorização temporária. O registo, em qualquer dos casos, teria que ser feito junto das forças de Segurança Pública, ao contrário do que acontece com as Organização Não Governamentais chinesas, que efectuam o registo junto do Ministério para os Assuntos Cívicos.
Este último detalhe é, por si, só revelador: o registo junto das autoridades de segurança pública pressupõe que o envolvimento de ONG’s ultramarinas na China seja perspectivado como uma questão do fora da segurança nacional, como foi, de resto, assinalado por um professor de Lei da Universidade de Tsinghua. A questão tornar-se ainda mais clara quando lemos o artigo 59, que estipula que uma organização de cariz ultramarino seja banida e proibida de operar em solo chinês se enveredar por acções vagamente definidas tendo por origem directivas emanadas dentro ou fora das fronteiras da China. Os representantes de tais organismos podem sofrer consequências sérias se forem considerados culpados de procurar subverter o poder do estado, de minar a solidariedade étnica e de fomentar o separatismo ou de incitar à resistência contra a aplicação das leis e os regulamentos administrativos do Estado. Entre as questões que poderão criar problemas às ONG’s estão ainda a recolha de segredos de Estado, a difamação e a disseminação de rumores, a publicação e divulgação de informações nocivas que possam colocar em risco a segurança do Estado ou prejudicar interesses nacionais, a organização e o financiamento de actividades políticas e religiosas de ou qualquer outras iniciativas que possam colocar em causa os interesses da República Popular da China ou da sociedade civil em geral. Como Ira Belkin e Jerome Cohen assinalam e bem: “se um grupo de alunos de uma universidade americana protestarem contra a forma como o Governo chinês trata os Tibetanos, a Universidade pode ser proibida de desenvolver actividades na China e os seus representantes no país poderão vir a ser detidos e julgados”.
São muitos os que associam a filiação da proposta de lei com os “sete conceitos hostis” do Documento No. 9 dado a conhecer em Abril de 2013 (que inclui a ideia de “sociedade civil” entre os sete valores, sobretudo propalados pelo Ocidente, que deverão ser completamente rejeitados) ou com a Lei de Segurança Social que se encontra actualmente sob discussão. Muitos analistas, dentro e fora das fronteiras da China acreditam que a proposta apenas reflecte a visão ultraconservadora de uma facção no seio do partido e foram, por isso, muitos os intervenientes que decidiram aproveitar a oportunidade conferida pela consulta pública promovida pela Assembleia Nacional Popular para avançar com comentários e sugestões. Um grupo de 30 advogados chineses caracterizaram o diploma como arbitrário, sugerindo que constitui uma violação tanto à política nacional, tida como fundamental, de “reforma e abertura”, quanto ao espírito reformista do Conselho de Estado de “racionalizar a administração e delegar poderes”. Os causídicos consideram ainda que a proposta irá ter um impacto contrário ao que se propõe e vai prejudicar o propósito de garantir a segurança pública.
Funcionários de ONG’s chinesas enviaram à Assembleia Popular Nacional uma lista com comentários e sugestões para que possam ser incorporados na revisão. A Amnistia Internacional e a Human Rights Watch deram a conhecer preocupações partilhadas sobre cinco aspectos da lei: as vagas e amplas limitações que se aplicam a Organizações Não Governamentais estrangeiras que operam temporaria ou permanentemente na China; a estrutura de supervisão demasiado onerosa para as ONG’s; o papel cada vez mais lato da polícia na aprovação e monitorização do trabalho das ONG’s; as restrições impostas à contratação de funcionários e às operações e o castigo para actividades vagamente definidas. Os reparos foram ainda feitos por câmaras de comércio estrangeiras, por embaixadas estrangeiras e pela delegação da União Europeia na China, que tornaram as suas preocupações públicas.
Em última instância, o que parece estar em jogo o futuro das relações da China com o mundo exterior. Neste sentido, uma dúvida se coloca: será que o período de “abertura” que tanto beneficiou o país ao longo dos últimos 35 anos está a chegar a um fim, pelo menos no que toca ao plano das ideias? O capitalismo é bem-vindo, o liberalismo nem por isso. Não há dúvida que os primeiros a sofrer se a lei for aprovada serão os milhares de funcionários chineses que dependem de entre 1000 a 6000 organizações e fundações estrangeiras para financiamento, formação e conhecimento para servir milhões de cidadãos da República Popular da China.