Ana Cristina Alves
Era feriado em Macau. O nascimento de Buda no dia 8 do quarto mês do calendário lunar coincidia com a festa do Dragão Embriagado e ambas surgiam a 17 de Maio no calendário solar no ano da graça de 2013.
Por que coincidiam as festas? Aos meus olhos ocidentais estas apenas tinham em comum meterem líquido por todos os lados. O nascimento de Buda era celebrado em muitas partes do sul da China com um belíssimo banho à estátua do iluminado em memória do seu primeiro banho celestial. Já na festa do Dragão Embriagado, os pescadores e não só, após vivificarem o espírito do Dragão, bebiam até caírem de bêbedos. Como seria a coabitação de uma festividade báquica com outra de cariz totalmente ascético e distante do sentir da natureza e dos prazeres do mundo? O Dragão é uma força natural que comanda as águas e os céus, o Buda é uma força mental, que procura justamente a libertação de tudo quanto é natural, instintivo, agressivo, vivo.
“Só na China seria possível tal cruzamento de festividades”, pensei enquanto me encaminhava para a fronteira. Aproximava-me de Gongbei justamente para escapar ao bulício das festividades, ao barulho ensurdecedor dos tambores e aos cânticos budistas. Sem conseguir precisar a razão, não estava em festa.
Faltava-me música, a minha música, não a dos outros. E a minha música é feita para os meus ouvidos e assentam apenas à minha medida. Por isso dirigi-me em passo firme e decido para uma das melhores livrarias de Zhuhai, Wenhua Shucheng (文華書城), A Cidade dos Livros Chineses, porque além de ter muitos livros também tem discos, com a vantagem adicional de ser pertinho de casa.
Já estava possuída pela doença de Macau: o medo do vasto território chinês. Compreensivelmente. Ter um gigante à porta não é nada fácil. Podia ser que aquela força titânica até fosse boazinha, mas e se não fosse? Havia que experimentar aos poucos, passinho por passinho. Hoje um passeio aqui e foge para casa. Amanhã um passeio acolá, e assim por diante, mas nada de grandes doses de cada vez.
Quando me dirigia para a livraria, com as economias de Macau no bolso, tropecei num pedinte. A minha religião cristã tinha-me ensinado a partilhar com os pobres. Mais tarde ao tomar consciência dos ensinamentos recebidos, não pude deixar de concordar com eles. Afinal ser humana era ajudar quem precisava, mesmo que fosse só um bocadinho. Maquinalmente levei a mão à bolsa e lancei a dinheiro na taça que me era apresentada. Quando elevei os olhos para o pedinte estremeci. Estava completamente desfigurado. Faltava-lhe parte de um braço. Os olhos eram duas ameixas roxas, mas o pouco de cor que deles escapava indicava que aquelas pupilas poderiam ser habitadas por um ocidental. Também poderiam não ser, porque a transformação do homem era de tal forma grande que não dava ter certezas. Da boca escorria-lhe uma espuma branca. Enfim, era quase uma papa humana. Humana sim, porque me agradeceu em chinês e num tom gentil.
Não era ocidental? Talvez fosse, perdido há muito em terras chinesas. Talvez tivesse tido um azar qualquer. Uma dívida mal paga, porque pode fazer-se tudo a um chinês, menos ficar-lhe a dever. A lógica é simples: quem tem dinheiro compra, quem não tem, não se aventura. Joga-se à medida das possibilidades, não se pisa o risco.
Mas havia ainda a hipótese de ser um chinês caído em desgraça, que a doença tivesse empurrado literalmente para a rua onde expunha a sua amargura.
Fosse quem fosse, ali estava aos olhos públicos a lembrar que o mundo poderia ser bem horrível, mesmo em dia feriado, quando se cruzavam no ar alaridos de duas festividades tão diferentes.
Segui incomodada até à livraria. Pronto, já tinha o dia um pouco estragado. Aquela imagem não me havia de sair da cabeça. O pensamento era egoísta. O meu dia tinha sido beliscado e então o que dizer da vida daquele homem? Embora contrafeita, tinha de admitir que a hipótese de homem ser ocidental fora o que mais me abalara o sistema nervoso. Era mais um sentir pouco generoso. Não éramos todos irmãos chineses e ocidentais? Não devia sofrer do mesmo modo perante a desgraça alheia?
Por que tanto me incomodava a hipótese de ter visto um mendigo ocidental em estado de aflição extrema?
Na melhor das hipóteses, e para salvação da minha alma, seria porque os ocidentais, distantes das suas terras natais, se encontravam mais expostos e desprotegidos, fustigados por todos os tipos de intempéries, incluindo as da estranheza do local, bem como das suas patologias. Mas seria só por isso?
Não, não era e eu sabia-o. Era preciso reconhecê-lo, mesmo que fosse parar ao inferno. Tinha feito uma identificação instintiva, simpatizava mais com o semelhante. Era feio o meu sentir, porque afinal, e aos olhos da minha religião, todos eram semelhantes: o asiático, o árabe, o africano, o europeu e o americano.
Eu também pensava assim, mas escorregava-me o sentir por caminhos que era preciso corrigir.
Na livraria esqueci o pedinte. A produção literária era de uma abundância indescritível. Cada vez havia mais obras de ocidentais traduzidas para chinês. Eram tantas as vias, os sonhos em que podia entrar, os convites para viajar até novos mundos, que me fui deixando estar até que me fome me empurrou outra vez para a rua.
Encaminhei-me para um grande supermercado mesmo em frente da livraria, que não registei o nome, porque era igual a tantos outros até na variedade. Havia produtos de todos os géneros, marcas e feitios. Perdi-me a olhar para os escaparates, onde cada produto se parecia multiplicar ao infinito apenas com ligeiras variações. Que amendoins havia de escolher, meu Deus? Descascados, com casca, com sal, sem sal, picantes, em wasabi…Era justo, pensei, voltando-me a imagem daquele pedinte à mente, também o Ocidente já tinha tido os seus tempos de grande abundância, onde havia tudo e mais alguma coisa em todas as prateleiras dos supermercados. Assim se equilibrava o mundo social e se destruía a natureza.
Para quê tanto de tudo? Mas, primeiro a justiça social, claro. Porque bem vistas as coisas, a natureza mal se ouvia e quando realmente se queixava, ninguém compreendia o que dizia. Bem podiam piar os pássaros, ladrar os cães, miar os gatos, rugir os leões, uivar os lobos, grasnar os patos…
Entretanto, os chineses moviam-se com toda a naturalidade por entre filas e filas de produtos. Eram simpáticos, sempre extremamente simpáticos, afáveis, metódicos; um ou outro lá apresentava um ar estranho, mesmo tresloucado, mas podiam contar-se pelos dedos, os que transgrediam o padrão de cortesia e harmonia por onde colectivamente afinavam.
Optavam pela harmonia familiar e social esquecendo outras paixões. Isso via-se pelas bicicletas em que passeavam. Já não eram solitárias, mas havia lugar para dois, três ou até para grupos de famílias e de amigos. Pedalar em conjunto e de barriga cheia haverá maior felicidade?
De facto, pensei, não têm razões para se sentir mal, tirando uma ou outra excepções, mas essas sempre existiram…