Pelos caminhos da incompetência

Pedro Galinha

 

As recentes conclusões do Comissariado de Auditoria (CA) sobre a fiscalização do serviço de autocarros não vão além daquilo que um comum utilizador pode observar a cada dia que passa. Por isso mesmo, o resultado é preocupante.

Debruçando-se sobre o período compreendido entre Agosto de 2011 e Setembro de 2012, o CA verificou que o planeamento dos itinerários, a frequência das carreiras, a recolha de receitas e os requisitos ecológicos estão aquém do exigido. Mas mais grave do que isto tudo, que infelizmente já damos como algo adquirido, é a postura da Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego (DSAT).

“A DSAT identifica-se com as opiniões e recomendações constantes no relatório de auditoria”, lia-se na comunicação tornada pública pelos serviços liderados por Wong Wan.

Não é preciso fazer grandes interpretações sobre as palavras da DSAT. No fundo, o que fica bem expresso, é o assumir de uma incompetência gritante.

Os serviços de tráfego falham sistematicamente no controlo dos serviços de autocarros. Há motoristas que excedem os limites de velocidade, não param as viaturas nos devidos lugares de largada e tomada de passageiros e prestam um péssimo serviço ao público, especialmente ao mais idoso e com necessidades especiais. Os horários afixados nas paragens também não são cumpridos.

Devo dizer que, no último ano e meio, só assisti a uma inspecção ao serviço de autocarros por parte da DSAT. No entanto, sempre quis acreditar que outras fiscalizações menos visíveis estavam a ser feitas, com o objectivo de resolver alguns dos problemas com que os utilizadores se deparam todos os dias.

Parece que não é assim e faz lembrar o que se passa no serviço de táxis, outro “podre” local. Neste caso, até o antigo Chefe do Executivo, Edmund Ho, já mostrou o seu descontentamento.

A notícia constava ontem do Jornal Tribuna de Macau, que citava o Ou Mun. Edmund Ho terá feito um apelo aos taxistas, durante um encontro com associações profissionais do sector, para que estes “se portem bem”, já que podem afectar a imagem internacional da RAEM.

É bom recordar que, durante as chuvas torrenciais registadas nos dias 20 e 21, os dez inspectores mobilizados pela DSAT apanharam três taxistas por abuso de cobrança de tarifa, recusa de transporte de passageiros e ausência da carteira profissional de condutor. Agora, estão sujeitos a multas que vão das 500 às mil patacas.

Com estes valores, talvez valha a pena arriscar. É por isso que a DSAT terá de passar a mensagem de que não vai tolerar qualquer tipo de infracções, reforçando a fiscalização com mais agentes no terreno. Até porque a época de tufões está aí à porta.

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Os bons turistas vão para o céu, os outros vêm para Macau

Inês Santinhos Gonçalves

O Partido Comunista Chinês (PCC) está preocupado com o comportamento dos seus cidadãos em viagem. Nos últimos 13 anos, o número de turistas chineses  aumentou exponencialmente: os 10 milhões no ano 2000 cresceram para 83 milhões. Esta enchente de visitantes já suscitou críticas nalguns países – e até mesmo na própria China, com Macau e Hong Kong a liderar esta tendência mundial de amor-ódio.

Para resolver o problema, um departamento do PCC – com o pomposo nome de Comissão de Orientação Central para a Criação de uma Civilização Espiritual – emitiu uma lista com 128 recomendações para os seus cidadãos. Não se deve falar demasiado alto em espaços públicos, pisar a relva, alimentar animais selvagens, cuspir para o chão, vandalizar monumentos, passar à frente em filas. Enfim, todo um rol de regras sobre “comportamento civilizado”.

À partida, vejo Macau aplaudir a iniciativa do PCC. Não fosse um pequeno pormenor: a lista, curiosamente publicada em rima, também proíbe (ou não recomenda, vá) os turistas de se envolverem em actividades de jogo (vício apresentado em conjunto com a pornografia).

Macau fica aqui numa situação interessante. Ou se assume como local de todo o regabofe, uma espécie de paraíso para os prevaricadores, ou então vai ter de pedir uma reserva para a alínea que se refere ao jogo – assim um pouco à semelhança do que se fez com o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.

O exagero para propósitos satíricos serve aqui para evidenciar apenas uma ligeira incongruência em Macau. Ao contrário de Hong Kong, não há por aqui (feliz ou infelizmente) um sentimento de identidade que choque com a China Continental. Parece, pelo menos, não haver uma rejeição generalizada do modelo político, social e cultural da China. Mas rejeitam-se os turistas (e os estudantes e os trabalhadores, mas isso é outra conversa) que cá vêm deixar couro e cabelo nas nossas máquinas de sugar dinheiro. Muitos serão rudes, sim, alguns mesmo mal-educados. E temos todo o direito de estabelecer requisitos mínimos de comportamento e civilidade. Mas não nos devemos esquecer que o que aqui se promove em massa é um negócio em grande parte associado ao vício, à corrupção, à prostituição e à extorsão. Não deixemos que uns empurrões na fila dos táxis nos façam esquecer disso.

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Políticas correctas

Tiago Azevedo*

O think-tank do Governo estima que a cidade venha a precisar de mais 40 mil trabalhadores em 2016, altura em que se prevê que vários novos mega-resorts estejam em pleno funcionamento no Cotai. Lao Pun Lap, coordenador do Gabinete de Estudos das Políticas do Governo da RAEM, divulgou estas previsões numa demonstração de apoio à ideia de permitir que estudantes de fora que tirem o curso nas universidades de Macau sejam autorizados a integrar o mercado de trabalho local. A verdade é que o número de profissionais que chegam ao mercado tem necessariamente de aumentar se a cidade quer mesmo fazer o esforço para se afirmar como um destino turístico de classe mundial, sustentou Lao Pun Lap.

É óbvio que este grupo de futuros trabalhadores qualificados – especialmente os estudantes chineses oriundos do Continente que compõem a maioria deste universo – poderia ajudar a satisfazer as necessidades de mão-de-obra aqui, especialmente numa circunstância em que a taxa de desemprego ronda os 1,9 por cento.

Estudantes do continente pós-graduados em Hong Kong já podem solicitar um estatuto especial de imigrante que lhes permite lá trabalhar, uma vez terminado o curso. Mas o processo é ainda diferente em Macau, onde os trabalhadores residentes beneficiam de medidas especiais de protecção. E assim deverá continuar, dado que as associações tradicionais e alguns legisladores se opõem à ideia – sobretudo em ano eleitoral.

Impedidos por lei de estenderem os seus vistos de estudante para lá da duração dos seus estudos, estes alunos formados em Macau abandonam depois o território, independentemente da sua vontade em cá ficarem ou do potencial interesse de empregadores locais em contratá-los. Se quiserem trabalhar em Macau, terão depois de passar pelo escrutínio normal da mão-de-obra importada, no contexto do sistema de quotas.

Os números apresentados na semana passada parecem ainda assim um pouco distorcidos, tendo em conta que pelo menos mais quatro mega-resorts estão previstos para o Cotai. Isto para além da expansão de alguns dos empreendimentos já existentes.

Um dos operadores de casino calculou este ano que precisaria de cerca de 8.000 novos trabalhadores quando estiver pronto o próximo resort no Cotai. Logo, a estimativa de 40.000 novos postos de trabalho, mesmo que se refira apenas a trabalhadores importados, parece aquém das reais necessidades do mercado.

Lao Pun Lap vincou ainda na semana passada a tese de que a indústria do jogo não teria qualquer prioridade na contratação destes trabalhadores, tentando acalmar os temores de que os casinos poderão açambarcar as oferta laboral resultante de uma eventual flexibilidade legislativa.

Provavelmente teve razão em dizê-lo. O facto é que as grandes empresas continuam a contratar trabalhadores das pequenas e médias empresas locais, forçando muitos destas a fechar portas.

A força de trabalho residente é incapaz de satisfazer as necessidades da procura, razão pela qual parece adequada a política de permitir que os estudantes vindos de fora estendam a sua permanência com autorização para cá poderem trabalhar. Isso não significa que tenham necessariamente de obter o direito de residência, mas ao menos permitiria que as empresas possam tirar partido dos jovens qualificados formados pelas universidades locais e já familiarizados com a cidade.

A medida tem de ser ajustada de modo a corresponder às necessidades concretas do mercado local, dotando-o com oferta laboral sem, contudo, comprometer o acesso da população residente a melhores empregos.

Os legisladores devem também compreender esta necessidade, ajudando a definir leis que suportem o crescimento da cidade, em vez de se limitarem a disputar o voto fácil com promessas populistas em ano eleitoral.

*Director do Business Daily

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O ambiente custa a todos

Maria Caetano

Menos conforto, menos consumo, mais restrições e mais trabalho. São ideias que ninguém quer sugerir a ninguém. Mas é disto que se trata quando, perante um cidade com níveis cada vez mais elevados de poluição, se fala em melhorar o ambiente. Uma vida mais saudável, num meio de melhor qualidade, tem custos para o estilo de vida que esta região mantém, e que ninguém parece estar disposto a assumir. Tem custos iniciais para os agentes económicos, pequenos custos pessoais para os residentes e um custo político em que ninguém arrisca. Mas, no final, é de senso comum, tem ganhos para todos.

É constante, nesta matéria, dar-se muitos saltos para a frente evitando as soluções mais básicas que se apresentam ao entendimento. Nisto anda a Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental que tem em mãos um projecto para homologação de veículos movidos a electricidade. Há anos. Quando há tantos antes para fazer…

Sem perder tempo, é preciso limpar e arrumar a casa antes de pensar em juntar mais veículos à cidade, sejam ecológicos ou outros. O estacionamento para viaturas é um problema, o sistema de trânsito é caótico, e o número de carros e motas é das poucas coisas que a região ainda pode controlar.

Comece-se por fiscalizar os veículos e reduzir a idade para abate de viaturas. Comece-se por taxar a aquisição de novas viaturas significativamente (com eventuais isenções para famílias com membros portadores de deficiências motoras).

Aumente-se, e bem, o preço dos parquímetros. Em última análise, estabeleça-se uma quota anual para novas matrículas. Já agora, regulamente-se também a venda de espaços de estacionamento nos prédios de habitação, para que estes não sejam objecto de especulação independente das fracções.

Mais se pode fazer dentro das limitações existentes. Na discussão da revisão da lei de terras, os deputados podem propor que a realização de estudos de avaliação de impacto ambiental seja obrigatória e não fique na discricionariedade da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes.

As zonas de protecção ecológica são, actualmente, apenas duas áreas no Cotai, sem quaisquer restrições à construção na zona envolvente. E ainda uma reserva natural de Coloane que está legislada, mas que ninguém reconhece de facto. A protecção oferecida às zonas já delimitadas deve ser respeitada, efectivamente. Isso já seria bom.

Mas é possível garantir mais, alargar a protecção a toda a área de Coloane e suspender a estratégia de desenvolvimento de grandes empreendimentos na ilha, sejam de habitação ou outros. Podemos esperar um bocadinho pelos novos aterros?

Pode também acolher-se com medidas de protecção do coberto natural também as colinas da Taipa Grande, as colinas da Guia e da Penha, da Ilha Verde e da Montanha Russa. Contam-se pelos dedos de uma mão as manchas verdes do território, vistas do alto. E não há outras.

Mas há tanto mais que é possível fazer Fiscalize-se com rigor o depósito de resíduos, e o seu tratamento. Classifique-se as tecnologias mais amigas do ambiente para que a aquisição de equipamentos e as construções sejam melhores e mais responsáveis. As edificações podem ter mais salubridade, sol, ventilação natural, podem ser mais amigas do ambiente e das pessoas que lá vivem dentro. Implemente-se um sistema efectivo de reciclagem. Adopte-se o colector de pilhas usadas nos equipamentos urbanos. Penalize-se a poluição por embarcações nas costas de Macau. Taxe-se, sim, os sacos de plástico.

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A idade é um posto

Sónia Nunes

O deputado Dominic Sio colocou o dedo na ferida (ai) quando, na semana passada, defendeu que os jovens têm uma vida “fortemente dependente do Governo”. O estado a que esta juventude chegou é deveras preocupante sobretudo quando nos é trazido à lembrança por alguém que está na Assembleia Legislativa porque foi nomeado pelo Chefe do Executivo, é – pausa para respirar – coordenador do grupo de consulta sobre as políticas e interacção do Conselho Consultivo para a Reforma da Administração Pública,  membro da Comissão Executiva do Conselho Permanente de Concertação Social e foi vice-presidente do extinto Centro de Estudos Estratégicos para o Desenvolvimento Sustentável – que não se confunde com o Centro de Pesquisa Estratégica para o Desenvolvimento de Macau (CPEDM), onde ainda é presidente do Conselho Executivo.

Dominic Sio, que representa os patrões na Concertação Social porque foi também nomeado pelo Governo (nunca é excessivo destacar o reconhecido mérito das individualidades) é ainda empresário e uma ponte para o comércio entre Macau e o Japão. É também administrador do Grupo Família Sio (o nome diz qualquer coisa) e um conservador que está convencido são os jovens que têm “pouco sentido de competitividade” e “excesso de proteccionismo”. Temos duas hipóteses: ou Dominic Sio se considera um jovem (está muito bem posto para a idade) ou inovou na retórica para se aproximar de Sócrates (o filósofo, o primeiro) e usar um discurso pautado pela ironia para, entrando em contradição, levar o interlocutor a chegar a uma conclusão. É um mistério que fica para os “peritos e académicos” do deputado Mak Soi Kun resolverem.

A conversa sobre a juventude vem a propósito da proposta de os estudantes não-residentes serem absorvidos no mercado de trabalho de Macau, através de “mecanismo de concorrência”. O objectivo, esclareceu Dominic Sio, não é dispor de uma mão-de-obra mais barata, antes fazer com que “os jovens cresçam a par dos desafios” – eles, que até têm um Governo que “está sempre a apoiar” a educação. A argúcia argumentativa de Sio revelou-se no exemplo que deu para provar que o Governo faz tudo pela educação dos seus pequenos: os 15 anos de escolaridade gratuita, um carinho com menos de dez anos e que se complementa agora com a saída da Universidade de Macau do território e o desvio do investimento público para a Ilha da Montanha e Nansha. É um ver se te avias de oportunidades por cá.

Os números falam por si. A taxa de desemprego está em 1,9 por cento e a culpa é das pessoas que estão à procura do primeiro emprego e representam mais de seis por cento da população activa sem trabalho. Nesta estatística está a história de quem nasceu em Macau, formou-se no exterior, é mão-de-obra especializada e regressou para uma terra que lhe dá duas saídas: casinos e função pública. Dominic Sio tem razão quando diz que os jovens de Macau vivem numa estufa.

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Ordem para reconverter

Paulo Rego

Quando as autoridades de Taiwan processam agentes que transferem ilegalmente capitais para os casinos de Macau, quem se surpreende com isso? Na reportagem da Reuters, que descreve a banca paralela do lado de lá da fronteira, qual é afinal a novidade? Se os junkets multiplicam riqueza cobrando empréstimos na residência de origem dos jogadores é porque estes não podem trazer os milhões em notas na mala. O modelo de angariação de clientes conta com a restrição de transferências; logo, é óbvio para os players, para as autoridades e para o cidadão comum que a questão sempre foi – e será – contornada. Será possível fazê-lo eternamente nos mesmos moldes? Isso é que já não é líquido.

Xi Jinping terá três razões para apertar o cerco à banca paralela: combater a corrupção – essencial para a legitimar a liderança -; reduzir a exportação do capital, fomentando o investimento interno; e cimentar o poder no contexto das disputas internas. Quando há uns anos Dias da Cunha foi o arauto da luta contra o “sistema” nos bastidores do futebol português; quereria mesmo acabar com o sistema? Ou em vez disso tomar conta dele? Aposto na segunda hipótese.

Xi Jinping teve na mão a pasta de Macau. Conhece… E não dá sinais de querer explodir com o sistema. Não pode é deixar que lhe passe ao lado, porque a dimensão financeira do jogo é demasiado estratégica para ser menosprezada.

A questão hoje na China é a mesma que esteve na génese das normas internacionais de combate ao branqueamento de capitais. Alguém quis alguma vez acabar com a livre circulação? A tentação é antes controlá-la, saber quanto roda e nas mãos de quem; usando o barrote da justiça contra alvos seleccionados.

Podem então os casinos dormir descansados? Não. É mais prudente acordar para o futuro, ler a mudança e compatibilizar os modelos de negócio com os ventos que sopram do Norte. Os sinais não são de fumo; são de fogo real. A tensão na China vai aumentar, porque reconverter um país é a fórmula certa para coleccionar inimigos. Um Governo que o faça, sobretudo num regime autoritário, está necessariamente disposto a cortar pela raiz a contra-reforma. Quem desafiar o drive político em curso, no contexto do qual a nova liderança quer controlar os poderes fácticos – e os seus canais de financiamento – arrisca-se a engrossar a fila dos alvos a abater.

Prefere o sistema enfrentar o poder? Ou gerir a margem de adaptação? A primeira hipótese é mais racional. E engane-se quem pense que os gestores da indústria de jogo são emocionais. Esse é um perfil dos jogadores, não é a cultura dos operadores – muito menos dos sindicatos financeiros que alavancam investimentos. Já agora, por falar em projectar… Está na hora de sinalizar o que se pretende com a renegociação das concessões. Porque é possível reconverter negócios que não tenham horizonte de médio e longo prazo.

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A desconversar é que nos entendemos

Pedro Galinha

 

Comunicar não é só uma arte, mas também um dever das entidades que prestam um serviço público aos residentes e visitantes de Macau.

No entanto, se há coisa que parece ser tão ou mais complicada do que as inundações provocadas pelas chuvas fortes são os esclarecimentos que a imprensa tenta arrancar aos vários responsáveis locais.

O drama não é novo e acompanha o dia-a-dia de qualquer meio de comunicação de Macau, seja em língua chinesa, portuguesa ou inglesa.

Na última segunda-feira, Macau foi falado por esse mundo fora, devido a uma reportagem da agência Reuters, que noticiava o circuito da banca clandestina e as suas ligações às salas VIP dos casinos.

Os repórteres James Pomfret e Matthew Miller indicavam no trabalho que a legislação local obriga a que as transferências de capital suspeitas sejam assinaladas. Quer pelos casinos, quer pelas entidades bancárias, que devem reportar as informações ao Gabinete de Informação Financeira (GIF). “No entanto, este tipo de capitais abunda sem qualquer verificação da sua origem”, lia-se no texto.

Questionado sobre o problema, que não é o novo, o porta-voz da Polícia Judiária (PJ), Wong Chi Hong, instou-me a dar “exemplos concretos” de casos semelhantes aos que a agência noticiou.

“Se não existirem, não podemos comentar”, acrescentou o mesmo responsável.

Wong Chi Hong não só ignorou o facto de eu, jornalista, ter como missão fazer perguntas, como se esqueceu que é da competência da PJ investigar os tais casos.

Mais: não quis aproveitar a oportunidade para dar um sinal forte de que este tipo de crime será objecto da maior atenção das autoridades competentes e que tudo será feito para eliminar ou, pelo menos, diminuir a ameaça.

Quanto a dados, também preferiu sugerir que enviasse um email para o departamento de relações públicas da PJ.

Como é público, no primeiro semestre do ano passado (não há novas informações até hoje), o GIF lidou com um total de 982 casos de transacções suspeitas. Na altura, este número correspondia a um aumento de 31,6 por cento face ao mesmo período de 2011.

A maioria, 70,3 por cento, foi reportada no sector do jogo. Não seria então importante dar um sinal, senhor Wong Chi Hong?

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O Pedinte Ocidental

Ana Cristina Alves

Era feriado em Macau. O nascimento de Buda no dia 8 do quarto mês do calendário lunar coincidia com a festa do Dragão Embriagado e ambas surgiam a 17 de Maio no calendário solar no ano da graça de 2013.

Por que coincidiam as festas? Aos meus olhos ocidentais estas apenas tinham em comum meterem líquido por todos os lados. O nascimento de Buda era celebrado em muitas partes do sul da China com um belíssimo banho à estátua do iluminado em memória do seu primeiro banho celestial. Já na festa do Dragão Embriagado, os pescadores e não só, após vivificarem o espírito do Dragão, bebiam até caírem de bêbedos. Como seria a coabitação de uma festividade báquica com outra de cariz totalmente ascético e distante do sentir da natureza e dos prazeres do mundo? O Dragão é uma força natural que comanda as águas e os céus, o Buda é uma força mental, que procura justamente a libertação de tudo quanto é natural, instintivo, agressivo, vivo.

“Só na China seria possível tal cruzamento de festividades”, pensei enquanto me encaminhava para a fronteira. Aproximava-me de Gongbei justamente para escapar ao bulício das festividades, ao barulho ensurdecedor dos tambores e aos cânticos budistas. Sem conseguir precisar a razão, não estava em festa.

Faltava-me música, a minha música, não a dos outros. E a minha música é feita para os meus ouvidos e assentam apenas à minha medida. Por isso dirigi-me em passo firme e decido para uma das melhores livrarias de Zhuhai, Wenhua Shucheng (文華書城), A Cidade dos Livros Chineses, porque além de ter muitos livros também tem discos, com a vantagem adicional de ser pertinho de casa.

Já estava possuída pela doença de Macau: o medo do vasto território chinês. Compreensivelmente. Ter um gigante à porta não é nada fácil. Podia ser que aquela força titânica até fosse boazinha, mas e se não fosse? Havia que experimentar aos poucos, passinho por passinho. Hoje um passeio aqui e foge para casa. Amanhã um passeio acolá, e assim por diante, mas nada de grandes doses de cada vez.

Quando me dirigia para a livraria, com as economias de Macau no bolso, tropecei num pedinte. A minha religião cristã tinha-me ensinado a partilhar com os pobres. Mais tarde ao tomar consciência dos ensinamentos recebidos, não pude deixar de concordar com eles. Afinal ser humana era ajudar quem precisava, mesmo que fosse só um bocadinho. Maquinalmente levei a mão à bolsa e lancei a dinheiro na taça que me era apresentada. Quando elevei os olhos para o pedinte estremeci. Estava completamente desfigurado. Faltava-lhe parte de um braço. Os olhos eram duas ameixas roxas, mas o pouco de cor que deles escapava indicava que aquelas pupilas poderiam ser habitadas por um ocidental. Também poderiam não ser, porque a transformação do homem era de tal forma grande que não dava ter certezas. Da boca escorria-lhe uma espuma branca. Enfim, era quase uma papa humana. Humana sim, porque me agradeceu em chinês e num tom gentil.

Não era ocidental? Talvez fosse, perdido há muito em terras chinesas. Talvez tivesse tido um azar qualquer. Uma dívida mal paga, porque pode fazer-se tudo a um chinês, menos ficar-lhe a dever. A lógica é simples: quem tem dinheiro compra, quem não tem, não se aventura. Joga-se à medida das possibilidades, não se pisa o risco.

Mas havia ainda a hipótese de ser um chinês caído em desgraça, que a doença tivesse empurrado literalmente para a rua onde expunha a sua amargura.

Fosse quem fosse, ali estava aos olhos públicos a lembrar que o mundo poderia ser bem horrível, mesmo em dia feriado, quando se cruzavam no ar alaridos de duas festividades tão diferentes.

Segui incomodada até à livraria. Pronto, já tinha o dia um pouco estragado. Aquela imagem não me havia de sair da cabeça. O pensamento era egoísta. O meu dia tinha sido beliscado e então o que dizer da vida daquele homem? Embora contrafeita, tinha de admitir que a hipótese de homem ser ocidental fora o que mais me abalara o sistema nervoso. Era mais um sentir pouco generoso. Não éramos todos irmãos chineses e ocidentais? Não devia sofrer do mesmo modo perante a desgraça alheia?

Por que tanto me incomodava a hipótese de ter visto um mendigo ocidental em estado de aflição extrema?

Na melhor das hipóteses, e para salvação da minha alma, seria porque os ocidentais, distantes das suas terras natais, se encontravam mais expostos e desprotegidos, fustigados por todos os tipos de intempéries, incluindo as da estranheza do local, bem como das suas patologias. Mas seria só por isso?

Não, não era e eu sabia-o. Era preciso reconhecê-lo, mesmo que fosse parar ao inferno. Tinha feito uma identificação instintiva, simpatizava mais com o semelhante. Era feio o meu sentir, porque afinal, e aos olhos da minha religião, todos eram semelhantes: o asiático, o árabe, o africano, o europeu e o americano.

Eu também pensava assim, mas escorregava-me o sentir por caminhos que era preciso corrigir.

Na livraria esqueci o pedinte. A produção literária era de uma abundância indescritível. Cada vez havia mais obras de ocidentais traduzidas para chinês. Eram tantas as vias, os sonhos em que podia entrar, os convites para viajar até novos mundos, que me fui deixando estar até que me fome me empurrou outra vez para a rua.

Encaminhei-me para um grande supermercado mesmo em frente da livraria, que não registei o nome, porque era igual a tantos outros até na variedade. Havia produtos de todos os géneros, marcas e feitios. Perdi-me a olhar para os escaparates, onde cada produto se parecia multiplicar ao infinito apenas com ligeiras variações. Que amendoins havia de escolher, meu Deus? Descascados, com casca, com sal, sem sal, picantes, em wasabi…Era justo, pensei, voltando-me a imagem daquele pedinte à mente, também o Ocidente já tinha tido os seus tempos de grande abundância, onde havia tudo e mais alguma coisa em todas as prateleiras dos supermercados. Assim se equilibrava o mundo social e se destruía a natureza.

Para quê tanto de tudo? Mas, primeiro a justiça social, claro. Porque bem vistas as coisas, a natureza mal se ouvia e quando realmente se queixava, ninguém compreendia o que dizia. Bem podiam piar os pássaros, ladrar os cães, miar os gatos, rugir os leões, uivar os lobos, grasnar os patos…

Entretanto, os chineses moviam-se com toda a naturalidade por entre filas e filas de produtos. Eram simpáticos, sempre extremamente simpáticos, afáveis, metódicos; um ou outro lá apresentava um ar estranho, mesmo tresloucado, mas podiam contar-se pelos dedos, os que transgrediam o padrão de cortesia e harmonia por onde colectivamente afinavam.

Optavam pela harmonia familiar e social esquecendo outras paixões. Isso via-se pelas bicicletas em que passeavam. Já não eram solitárias, mas havia lugar para dois, três ou até para grupos de famílias e de amigos. Pedalar em conjunto e de barriga cheia haverá maior felicidade?

De facto, pensei, não têm razões para se sentir mal, tirando uma ou outra excepções, mas essas sempre existiram…

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Dividir para reinar

Inês Santinhos Gonçalves

Em Macau há uma série de mitos que dão jeito a muita gente e que, acredito, ao fim de alguns anos começamos (perigosamente) a aceitar como factos. Um deles é que os chineses são completamente diferentes dos portugueses. Os homens são menos respeitadores das mulheres, as pessoas são mais materialistas, menos democráticas, menos criativas, mais infantis, menos zelosas do bem público. São ideias feitas que dão jeito ao lobby português, e que, com certeza, existem também no sentido oposto, por motivos igualmente interesseiros.

Esta dicotomia nós/eles serve de efeito agregador e comunitário, sim, mas também contribui para nos colocar umas belas palas nos olhos. Exemplos não faltam, mas comecemos pela actualidade. Na discussão sobre a futura lei contra a violência doméstica, os dois lados aproveitaram a retórica. Os portugueses, tão vanguardistas, defendem o crime público contra, dizem, uma população machista, que desvaloriza os direitos individuais em detrimento de um conceito retrógrada de sociedade harmoniosa. Os chineses – ou o Governo, em nome de uma alegada opinião geral – defendem o crime semi-público, argumentando que a união familiar é um valor supremo, em oposição a esses ocidentais sem alma (recordem-se as infelizes declarações do director dos Serviços de Assuntos de Justiça, André Cheong).

E nisto vamos nós. Quando bem sabemos que uma parte muito significativa da população chinesa de Macau apoia o crime público – não dá é jeito à ala mais conservadora (e poderosa) admiti-lo. E quando sabemos que esta discussão também não foi pacífica em Portugal e que os portugueses não são tão iluminados como isso no que toca às questões de género.

Em Portugal também impera o “entre marido e mulher nunca metas a colher”. Em Portugal as mulheres também são impedidas de trabalhar pelos maridos, também ganham menos, também são vítimas de intimidação e de agressão.

Um artigo no Diário de Notícias de ontem vem comprová-lo. Um inquérito feito a 885 jovens, de escolas do Porto e de Braga, dá conta das opiniões que os mais novos têm sobre a violência no namoro. Os número assustam: entre os rapazes, cinco por cento considera que agredir a namorada ao ponto de deixar marcas não é ser violento; 25 por cento dos rapazes e 13,3 por cento das raparigas entendem que humilhar a namorada/o é legítimo e que ameaçar a namorada ou o namorado é normal (15,65 por cento dos rapazes acha que sim e cinco por cento das raparigas também).

Gostava que me explicassem onde está esse grande fosso civilizacional, então. Numa coisa todos parecem concordar: dividir para reinar. Enquanto acreditarmos que somos assim tão diferentes, seremos sempre fracos e manipuláveis.

Sugiro que apelemos à língua franca: “United we stand, divided we fall”. Para ver se se evitam tantos trambolhões.

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Companheiros relutantes

Vítor Quintã

O futuro parecia promissor quando em 28 de Julho de 2009 as seis operadoras de jogo oficialmente criaram a Câmara de Concessionárias e Subconcessionárias de Jogos de Fortuna e Azar de Macau, liderada por Stanley Ho Hung Sun. Um dia depois, o patriarca da indústria sofreu uma queda em sua casa e nunca mais recuperou totalmente. A câmara tem tido também os seus problemas.

Apesar dos objectivos ambiciosos anunciados, tais como a promoção do “desenvolvimento saudável” do mercado de jogo e a defesa dos “interesses comuns” das operadoras, a organização nunca conseguiu ser verdadeiramente activa.

Talvez isso se deva ao facto de que esses “interesses comuns” nunca se revelaram suficientemente fortes de molde a compensar as divergências de objectivos.

O exemplo mais óbvio disso foi o processo que conduziu à proibição parcial do fumo nos casinos, cuja legislação entrou em vigor em Janeiro último. Quando a Assembleia Legislativa debateu a proposta de restrição, em 2011, as operadoras de jogo assinaram um pedido – quase unânime – para que fossem ouvidas sobre a matéria. Infelizmente, Sands China não assinou o documento enviado por fax, mesmo tendo logo a seguir anunciado que estava “ao corrente da situação”.

Dois anos depois, a ilusão do consenso caiu por terra. Face à idade de muitos dos seus casinos, era esperado que a Sociedade de Jogos de Macau sentisse problemas para cumprir os novos requisitos quanto à qualidade do ar; razão pela qual a directora executiva Angela Leong On Kei não demorou muito a pedir a proibição total de fumo no interior dos casinos.

Essa medida aparentemente nivelaria a competição entre casinos antigos e novos, salvando a SJM de um grande investimento na ventilação dos espaços de jogo. A circunstância deste apelo no sentido da proibição total de fumo nos casinos poder ajudar Angela Leong a conquistar a lealdade dos empregados da SJM nas próximas eleições legislativas mais não é do que a cereja no topo do bolo.

A segunda fase de construções de ‘resorts’ no Cotai será uma nova oportunidade para testar até quando as operadoras irão conseguir manter os sorrisos e mensagens de elogio enquanto a concorrência inaugura novos empreendimentos.

Nesta altura, essa hipótese parece pouco provável. Como o Business Daily noticiou na semana passada, a Melco Crown Entertainment Ltd. e Las Vegas Sands Corp. têm estado envolvidas numa guerra de bastidores em torno da marca “Cotai Strip”.

Não é segredo para ninguém que o presidente da Sands, Sheldon Adelson, considera que o desenvolvimento do Cotai em um paraíso do jogo em muito se deve à sua visão e investimento. A tentativa da operadora de baptizar os seus resorts com a marca “Macau Cotai Strip” mostra como Sheldon Adelson não está disposto a prescindir do controlo da sua criação.

Há alguns exemplos isolados de cooperação entre os operadores de jogo, tais como uma linha comum de autocarros para o Cotai ou os pacotes promocionais da Sands que incluem bilhetes para o espectáculo “House of Dancing Waters”, no City of Dreams.

Estamos felizmente longe da guerra feroz que levou o Executivo a definir tectos para as comissões pagas aos junkets e que terá estado também na base da criação da Câmara de operadores de jogo.

A indústria do jogo cresceu em Macau com base na premissa de que “basta construir que eles aparecem”. Mas se por alguma razão os clientes não encherem os quatro novos resorts cuja abertura está prevista a partir de 2015, a competição em Macau poderá tornar-se uma vez mais feroz.

Antes que isso aconteça, os operadores fariam bem em sentarem-se para falar de negócios, começando talvez por questões mais fáceis como o jogo responsável e os autocarros gratuitos.

Uma vez que o Governo tanto depende da colecta de impostos sobre o jogo, um empurrão na direcção certa seria também uma aposta inteligente.

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