Aprofundamento da Educação em Segurança Nacional em Hong Kong

A julgar pelo conteúdo da exposição sobre educação em segurança nacional que teve início a 15 de Abril, e pelo novo programa das disciplinas do ensino secundário em Hong Kong, a educação em segurança nacional não só foi acelerada como também aprofundada e alargada na região administrativa especial.

Antes de mais, a exposição sobre educação em segurança nacional que teve início a 15 de Abril foi significativa em vários aspectos. O conceito de segurança nacional engloba dezasseis dimensões: política, territorial, militar, económica, cultural, social, tecnológica, Internet, ecológica, recursos, nuclear, interesse de segurança ultramarina, biológica, espacial, do mar profundo e da segurança Antárctica e Ártica. 

Os aspectos mais importantes incluem a segurança política e territorial. Politicamente, a exposição na Câmara Municipal enfatiza que a implementação da lei de segurança nacional não só “reduziu” a situação da colaboração entre separatistas locais e forças estrangeiras, mas também permitiu ao povo de Hong Kong usufruir dos seus direitos básicos e liberdade, de acordo com a lei. Mais interessante ainda, um painel de exposição demonstrando a importância da segurança política refere-se à combinação da lei de segurança nacional com o pacote de reforma eleitoral aprovado pelo Congresso Nacional Popular em Março como um “pacote de boxe” que estabiliza Hong Kong e “eleva a capacidade governativa da região administrativa especial”. Outro quadro de exposição que enfatiza o significado da segurança política refere-se ao “localismo” como um inimigo que “desafia” e “resiste” à nação, traçando as actividades localistas até à campanha de educação anti-nacional em 2012, o Movimento Central de Ocupação em 2014, o motim Mongkok em 2016, e a controvérsia anti-extradição em 2019. Estas forças localistas, de acordo com a descrição, “imploraram uma intervenção estrangeira nos assuntos de Hong Kong”, “enfraqueceram a consciência dos jovens cumpridores da lei”, “puseram em perigo a segurança nacional”, e “minaram seriamente a ordem social” da Região Administrativa Especial de Hong Kong (RAEHK). Obviamente, esta versão oficial dos impactos prejudiciais do “localismo” é política e educacionalmente significativa.

Dois painéis de exposição são dedicados a explicar o conceito de segurança territorial. Um deles enfatiza que a segurança territorial é uma condição necessária para “sobrevivência e desenvolvimento nacional”. Descreve historicamente como Hong Kong era tradicional e territorialmente uma parte indispensável da China, remontando às dinastias Qin, Song, Yuan, Ming e Qing. Sublinha também que a geração mais jovem do povo de Hong Kong é afortunada e não vive o sofrimento da geração mais velha, incluindo a velha geração do povo chinês que foi vítima da invasão estrangeira e do imperialismo, desde a intrusão portuguesa na área de Tuen Mun em 1521 até à Guerra do Ópio durante a dinastia Qing, e desde a invasão japonesa da China no incidente de 18 de Setembro de 1931 até à invasão e ocupação japonesa de Hong Kong em 25 de Dezembro de 1941. Outro painel de exposição centra-se no estacionamento do Exército de Libertação do Povo (PLA) na RAEHK a 1 de Julho de 1997, como uma realização da soberania da República Popular da China (RPC) sobre o território. Curiosamente, o quadro de exposição termina com uma nota dizendo que desde a criação da RAEHK, “as forças internas e externas que minam a segurança territorial persistem latentemente” até à promulgação da lei de segurança nacional.

Os painéis de exposição que enfatizam a segurança política e territorial foram acompanhados pelas importantes observações feitas pelo Director do Gabinete de Ligação, Luo Huining, que afirmou a 15 de Abril que a China “dará uma lição às forças estrangeiras que pretendem utilizar Hong Kong como peão” (The Standard, 15 de Abril de 2021). Além disso, o Director do Gabinete de Salvaguarda da Segurança Nacional em Hong Kong, Zheng Yanxiong, disse no mesmo dia que o povo de Hong Kong aceitou e abraçou a lei de segurança nacional (The Standard, 15 de Abril de 2021). Zheng elogiou a Chefe do Executivo, Carrie Lam, e a disciplina do território serve para mostrar justiça e justiça na aplicação da lei para combater o crime e para estabilizar a cidade. Ele acrescentou que eles “são os deuses da salvaguarda da segurança nacional em Hong Kong”. Zheng também elogiou os juízes, procuradores, advogados e juristas pela sua atitude de apoio à necessidade de salvaguardar a segurança nacional na RAEHK.

A 22 de Abril, o Departamento de Educação da RAEHK divulgou o novo programa das disciplinas das escolas primárias e secundárias que fazem cumprir a educação para a segurança nacional. Ao nível da escola primária, o ensino da língua chinesa do primeiro ao sexto ciclo inclui a necessidade de professores para ajudar os estudantes a compreender a cultura, tradição e património chinês. O objectivo é alimentar um forte sentido de identidade cultural chinesa entre os estudantes, que podem acumular os seus conhecimentos sobre a excelência da cultura chinesa através da leitura e de outras actividades linguísticas. 

Além disso, a disciplina de educação tecnológica e a disciplina científica do nível secundário um ao nível secundário três precisam de inculcar aos estudantes uma consciência de segurança nacional de uma forma mais profunda. Por exemplo, a disciplina de educação tecnológica exigirá que os professores utilizem estudos de caso para analisar e discutir com os estudantes como os rumores que se espalham pela Internet podem ter consequências negativas e graves. Além disso, os estudantes devem ser ensinados a compreender a importância de utilizar a Internet de forma segura e responsável. A Internet deve ser entendida pelos alunos como tendo potenciais ameaças à segurança, e como tal, o uso adequado da Internet é de importância primordial. 

A disciplina científica é necessária para ensinar os estudantes sobre novas fronteiras de segurança, tais como segurança biológica, saúde pública e doenças infecciosas. Os alunos deverão aprender os tópicos da segurança ecológica e ambiental, bem como a segurança dos recursos (água, petróleo e energia) para que o desenvolvimento sustentável possa ser compreendido de forma abrangente. 

Cinco temas do nível secundário quatro a seis também examinam a segurança nacional de uma forma muito mais profunda: (1) negócios, contabilidade e finanças; (2) gestão da saúde e cuidados sociais; (3) informação e tecnologia; (3) química, e (4) física. Na disciplina de negócios, contabilidade e finanças, os estudantes serão ensinados sobre as disputas e conflitos comerciais entre a China e os EUA, e sobre o tema de ‘Uma Faixa, Uma Rota’. O objectivo é permitir aos estudantes compreender que Hong Kong como parte da China proporciona uma janela para os investidores estrangeiros investirem no continente, sendo ao mesmo tempo uma plataforma internacional para as empresas chinesas do continente alcançarem os países estrangeiros. Economicamente, as relações entre Hong Kong e a China continental são estreitas, mutuamente benéficas e inseparáveis. Sem a protecção da segurança económica, os dois lugares não podem e não alcançarão benefícios económicos mútuos. Os temas de gestão de saúde e cuidados sociais, e de informação e tecnologia tendem a sobrepor-se na sua ênfase na sensibilização e utilização correcta da Internet pelos estudantes, ao mesmo tempo que percebem a importância da moralidade e da responsabilidade nas actividades da Internet. As disciplinas de química e física sublinham a importância da segurança dos recursos.

Embora as componentes de hardware da educação para a segurança nacional, nomeadamente o currículo, os manuais escolares e as referências (o governo preparou todo um conjunto de referências para as escolas) já estejam entrincheiradas, o desafio é formar os formadores. Um inquérito conduzido pela Federação de Educação de Hong Kong mostrou que 81 por cento dos 280 directores e vice-directores disseram que as posições actuais a nível de escolas primárias e secundárias não são suficientes, e que é difícil para eles acompanharem o trabalho de coordenação. 74 por cento disseram que muitos professores não estão familiarizados com os temas em questão, enquanto 64 por cento expressaram a opinião de que o actual programa de estudos já é apertado. 57 por cento responderam que os recursos de ensino são inadequados. Como tal, é urgente que as autoridades educativas proporcionem mais formação em exercício aos professores e injectem os recursos necessários nas escolas primárias e secundárias.

Em conclusão, a educação para a segurança nacional já foi aprofundada e ampliada no HSKAR. O desafio é fornecer mais recursos e apoio humano a todas as escolas, para que os directores, vice-directores e professores possam e venham a implementar a educação para a segurança nacional sem sobressaltos, em benefício dos estudantes e de toda a sociedade de Hong Kong.

Sonny Lo

Autor e Professor de Ciência Política

Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Macau News Agency/MNA

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Todos os dias

Nunca pensei tanto nela como nos últimos tempos. As razões são mais ou menos óbvias, ainda que com diferentes contextos. Não ir, não ficar, não abraçar, não beijar. Não escrever, não assinar, não dizer. Não aplaudir, não correr, não sorrir, não falar. Não erguer a cabeça. Não empinar o nariz. Não, não. Nada. Tudo não.

Não sei como se ensina a liberdade. E não sei como se ensina a liberdade em tempos como estes. Não abraces, não te encostes, não beijes, não toques. És livre, mas não és, não podes ser, ninguém tem culpa, 

– ou a culpa é de todos, mas ainda não tens idade para perceber,

e eu, de qualquer modo, nunca gostei da ideia de culpa. Não podes, és livre, mas não podes quase nada.

Talvez se ensine a liberdade por comparação com tempos mais difíceis que estes, esses sim, com culpa identificada, sem eufemismo possível. Mas também aí só sei o que vem nos livros e o que vem nas histórias e o que me contaram,

– eu ainda não tinha nascido, não sei como era viver sem ela,

mas sei que não se falava, que meninas e mulheres como tu e eu valiam menos do que os meninos e homens como tu e eu, que até para cantar livremente era preciso fugir,

– o José Mário Branco e o Sérgio Godinho saíram do país para poderem compor as canções que ouvimos no carro,

– e os irmãos dos avós foram a uma guerra que não lhes dizia nada,

e voltaram todos feridos por dentro, sem que nunca tenham dito que estavam feridos por dentro.

A liberdade. Não sei ensinar a liberdade porque nunca me ensinaram a liberdade. É compreensível, não me levem a mal: nasci e ela já me era servida ao pequeno-almoço com o pão fresco e o leite com chocolate, faço parte da geração que não teve de se amordaçar para sobreviver. A minha liberdade foi praticada, não foi sofrida para ser conquistada, apesar de ter sofrido com ela, porque se sofre sempre,

– se achares injusto diz, fala, não fiques calada, luta por aquilo que achas que é justo.

Às tantas é mesmo isso: ensinar a viver a liberdade é meio caminho, ou o caminho todo, para não deixar de querer tê-la na mão, para não a trocar por meia dúzia de nuvens. Eu nunca vivi sem ela, mas sei que dela não abdico.

O problema é o consolida, filho, consolida. A malta que ficou livre – e a malta que sempre foi livre – pôs-se a consolidar por aí fora, esquecendo-se que sem liberdade não tinha sequer com que se entreter. A liberdade é sempre um problema dos outros, sobretudo quando há falta dela,

– sabias que o pintor dos quadros daquele livro, o Mio, destruía todos os desenhos porque não podia pintar o que queria?

a liberdade é coisa bonita, mas ninguém se lembra dela no momento de consolidar, consolida as contas, as tuas e as dos teus, não deixes que a liberdade alheia te belisque a consolidação.

Andamos todos demasiado entretidos e a virar peneiras em direcção ao sol, apesar de, ano após ano, nos mostrarem as mesmas imagens e os mesmos rostos e as músicas serem as mesmas. Assim não conseguimos ver bem o que nos está a acontecer,

– os abraços vão voltar, com mais ou menos intensidade,

mas há o resto. E o resto, se perdermos agora, dificilmente conseguiremos recuperar.

Há uns anos, há muitos anos, numa extremidade da Praia Grande, disseram-me:

– A menina não deve dizer o que diz.

(Na altura eu ainda respondia por menina).

– Tem razão no que diz, mas pode ferir os interesses dos outros.

Nunca soube quem eram os outros, também não quis saber, mas percebi, naquela extremidade da Praia Grande, que apesar de não me terem ensinado a liberdade, sei ao que sabe. E sabe bem. E bem terá feito a mais alguém que não eu.

Há umas semanas, não muitas, repetiram-me o discurso, desta vez por meias palavras. Apesar de ainda não me terem ensinado a liberdade, porque sempre a tive, sei que o sabor continua a ser o mesmo. Sabe bem e bem fará, no dia em que tiver de fazer bem a alguém.

Eu ainda não sabia andar e o José Mário escrevia que somos um povo de respeitinho muito lindo, que saiu à rua de cravo na mão sem dar conta de que saiu à rua de cravo na mão a horas certas. Agora sai-se pouco à rua, há cidades livres onde não se sai à rua sequer, porque a liberdade que conheço vai perdendo a importância na troca directa pelas contas consolidadas de quem acha que o respeitinho é muito lindo. Não aprendemos nada. A diferença é uns quantos cravos vermelhos nas redes sociais de quem só abrirá a boca, lentamente e já sem som, no dia em que não houver ninguém para ouvir.

E não, este texto não chega com atraso. O 25 de Abril foi há uns dias, mas não falhei a efeméride. A liberdade é minha e uso-a todos os dias.

Isabel Castro

Jornalista

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Sem medo de existir

“É prioritário estudar o passado e nele dissecar tudo: o que houve de bom e o que houve de mau. É prioritário assumir tudo, todo esse passado, sem autojustificações ou autocontemplações globais indevidas, nem autoflagelações globais excessivas”. 

Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República Portuguesa, 25 de Abril de 2021

O discurso de Marcelo Rebelo de Sousa na cerimónia dos 47 anos da Revolução de 25 de Abril de 1974, na Assembleia da República, é tão importante pelo que diz como pelo momento em que foi dito. 

Mais do que o 10 de Junho, por exemplo, uma invenção nacionalista nascida como “Dia de Festa Nacional e de Grande Gala” por um decreto das Cortes Reais para assinalar os 300 anos da morte de Luís de Camões (suposta a 10 de Junho de 1580), a data certa para reflectir sobre os tempos e modos da História é aquela em que o Povo – e não alguém por ele – reclama o Presente e o Futuro. É, pois, devido que também nesse mesmo momento se incentive a reivindicação do Passado. Que se exorte a “que se faça história e história da História”, como afirmou o Presidente português, “que se retire lições de uma e de outra sem temores nem complexos, com a natural diversidade de juízos, própria da democracia”. Precisamente, porque “o 25 de Abril foi feito para libertar, sem esquecer nem esconder”.

Como portugueses, não estamos habituados. Afinal, viemos ao Mundo no “país da não-inscrição”, na definição do filósofo José Gil, que aponta justamente como paradigma dessa condição a recusa do 25 de Abril de 1974 “a inscrever no real os 48 anos de autoritarismo salazarista”, sem que tenha havido “julgamentos de Pides nem de responsáveis do antigo regime”. Nada disso. “Pelo contrário”, escreveu José Gil em “Portugal, Hoje: Medo de Existir” (2004), “um imenso perdão recobriu com um véu a realidade repressiva, castradora, humilhante de onde provínhamos. Como se a exaltação afirmativa da ‘Revolução’ pudesse varrer, de uma penada, esse passado negro. Assim se obliterou das consciências e da vida a guerra colonial, as vexações, os crimes, a cultura do medo e da pequenez medíocre que o salazarismo engendrou”. 

Nesse sentido, para José Gil, a “não-inscrição” é, ainda, um “velho hábito” que “herdámos também do salazarismo”, esse regime em que “nada acontecia” (tudo visado pela censura), sem “espaço público e tempo colectivo visíveis”.

É preciso, pois, “procurar a luz para ver as sombras”, dir-se-ia, tomando de empréstimo o sugestivo título de uma exposição sobre a vida e a obra de um historiador que “ajudou a desmistificar algumas das ‘lições’ do patriotismo conservador” português, António Borges Coelho, que, por causa do seu trabalho, foi interrogado e ameaçado pela PIDE.

É a complexidade da vida e, pois claro, da História: tanto de mal quanto de bem; guerra e paz, não por acaso nome de romance de um escritor que acreditava que o objectivo da História é a percepção das leis do movimento da humanidade que decorre continuamente e de um número infinito de vontades, não só as dos “grandes homens”. Na impossibilidade de fazer esse somatório sem deixar nada de fora, cede-se muitas vezes à tentação de uma visão redutora e simplista.

Também por isso é necessário sublinhar que, contrariamente ao que as palavras do Presidente possam sugerir, não existe uma simetria entre o “culto acrítico triunfalista exclusivamente glorioso da nossa história” e a “demolição global e igualmente acrítica de toda ela”. Não se passou de um extremo ao outro.

Se há alguma coisa de contínua e transversal é a exaltação e a glorificação próprias de quem ensinou e aprendeu a tratar “Os Lusíadas” como um manual de história, mais do que um poema épico. 

Foi exactamente dessa forma que o padre Fernando Leal Maciel, professor do Seminário de S. José e do Liceu de Macau, apresentou na então colónia a obra de Camões num 10 de Junho muito especial para o Estado Novo, o que se celebrou em 1940, ano escolhido para celebrar duas efemérides de grande importância para o regime de Salazar: 1140, fundação da nacionalidade, e 1640, restauração da independência.

“Há oito séculos”, proclamava o cónego Maciel numa cerimónia na Gruta de Camões, “nascia Portugal. E simultaneamente um novo luzeiro começou a brilhar, indicando a todos os povos qual o porto seguro da Verdade e da Vida. Tal foi a escolha subida, a missão sobre-humana que a Providência Divina destinou, em seus arcanos recônditos, à Pátria Portuguesa”. Era a “grande missão histórica de Portugal no mundo: ser sempre e por toda a parte o baluarte da Fé de Cristo e da sua Civilização”. 

Era também isso que ressaltava da leitura de “Os Lusíadas”, “esse grande manual da História Pátria”, no qual Camões “não podia deixar de esculpir e gravar em letras de outro qual foi e é ainda a vocação de Portugal (…): ‘dilatar a Fé e o Império’”. 

Estava-se nos píncaros do orgulho nacionalista, mas esta exaltação do excepcionalismo lusitano não se guardava apenas para ocasiões especiais ou era exclusiva de um só regime. 

O primeiro e o mais duradouro império colonial sobreviveu a diferentes monarquias (absolutistas e constitucionais), bem como repúblicas. Incólume permaneceu igualmente a ideia de “um modo português de estar no mundo”, que, a partir de 1945, quando os impérios e as suas colónias deixam de ser aceitáveis na comunidade internacional, se operacionaliza como justificação desse lugar único na História.

Como explica Cláudia Castelo em “O Modo Português de Estar no Mundo – o luso-tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa 1933-1961)” (1998), pressupõe-se que “o povo português tem uma maneira particular, específica, de se relacionar com os outros povos, culturas e espaços físicos, maneira que o distingue e individualiza no conjunto da humanidade. Essa ‘maneira’ é geralmente qualificada com adjectivos que implicam uma valoração positiva: ‘tolerante’, ‘plástica’, ‘humana’, ‘fraterna, ‘cristã’”. 

É uma ideia tributária do pensamento do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, ao qual aderiu o Estado Novo e também o “Portugal livre, democrático e moderno que eu represento”, afirmou Mário Soares, no Recife, em 1987, na qualidade de Presidente da República, expressando a admiração que havia em Portugal relativamente à doutrina do autor do luso-tropicalismo, que o então chefe de Estado dizia ter sido “mal aproveitada no tempo do antigo regime”.

São ideias que também se reflectiram em Macau, onde sempre houve uma história distinta no seio do império ultramarino português, como era sublinhado pelo próprio regime. Uma diferença num mundo (fechado) de diferenças.

Em 1965, num discurso no Conselho Legislativo de Macau, o governador Lopes dos Santos defende esse excepcionalismo e vocação única, considerando que “o fenómeno ultramarino português está fora de qualquer das classificações que são voga na desprestigiada organização internacional que todos conhecem”, numa velada referência à ONU, que insistia na denúncia da anacrónica possessão de colónias. 

De acordo com o governador, “temos em Macau um exemplo flagrante de como defendemos a paz, a harmonia, a coexistência pacífica. (…) Aqui continuam a ter lugar todos os nossos amigos chineses, desde que não aproveitem a nossa hospitalidade para se imiscuírem em actividades políticas”. 

Não foi preciso esperar mais do que um ano para que, em Dezembro de 1966, a realidade mostrasse, com luminosa clareza, quão vãs eram estas palavras. 

Ainda assim, não haveria conflito ou desentendimento que abalasse o discurso daqueles no poder, que resistiu e resiste, ainda, independentemente do que suceda. Continua a não faltar quem garanta que “nada acontece” capaz de perturbar a “estabilidade e paz social desta bonita cidade”. 

Hugo Pinto

Jornalista

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Património sem amparo

O património, em Macau, nunca teve vida fácil. Inevitável, dita a História de uma cidade cuja “dinâmica constante de crescimento terá sido a da ‘Fénix’ renascida das cinzas mais ou menos metaforicamente, dos escombros”, escreveu Manuel Vicente, em 1982. Eram escombros das catástrofes naturais, mas também – ou sobretudo – da intervenção humana. Principalmente, “das demolições provocadas pela afluência dos comerciantes constantemente acrescida, e pelo seu desejo de significá-la, na cidade enquadrante”.

Essa natureza vinha já prescrita na “Breve Monografia de Macau”, do século XVIII, nos quais mandarins descreviam “bárbaros” que eram “pródigos por natureza” e que, “mal têm algum dinheiro, competem entre si para verem quem ostenta maior luxo em relação à casa”. 

Vicente apontava para uma arquitectura de “fantasia” que reflectia uma “singularidade cultural”, mas também uma condição de cidade muralhada, contida, “concentracionária, cumprindo-se como espectáculo colectivo”. Uma arquitectura de afectos, com uma “carga de memórias particulares com que cada estrutura é investida”. Salientava-se o “gosto pelo ‘enfeite’, essa obsessão de dar forma ao que se viu ‘ailleurs’, a saudade das origens, numa metrópole (pen)insular a todos os títulos, onde a ocupação do espaço enchia (sobretudo) o vazio da alma e a recriação do quadro exorcizava os fantasmas dum passado para sempre desencontrado – ponto de chegada mais do que de partida”.

É de crer que o vazio cresce na proporção do seu contrário e, assim, temos hoje uma cidade atulhada onde só falta espaço. Onde tudo se sobrepõe, quando não substitui. Uma voracidade sem vagar nem lugar para contemplações. 

Da época áurea comercial de Macau, nos séculos XVII e XVIII, não resta (quase) nada. O “antigo” que sobra é maioritariamente dos séculos XIX e XX. E foi já tarde que essa consciência deu de si.

Ficaram célebres as posições que o advogado e escritor Manuel da Silva Mendes tomou na imprensa de Macau, no início do século passado, sobre “a estética da cidade”. Era precisamente esse o título de um artigo publicado no jornal O Progresso, em Janeiro de 1915, no qual Silva Mendes lamentava a destruição de prédios, “principalmente no estilo chinês, em que se podia notar, senão requinte de arte, pelo menos qualidades de bom gosto”.

O “descalabro”, denunciava o então vereador do Leal Senado, podia ter sido evitado pelo Estado, “dando o exemplo e ministrando a necessária instrução”. Mas havia mais que podia ser feito. A legislação, “de recente data”, era “inteiramente deficiente”. E o Conselho Técnico, que aprovava ou rejeitava construções, tinha uma “composição tal, que não se ofenderia a maioria dos seus membros se, em vez de técnico, se lhe chamasse acrobático ou musical”. 

Em 1940, já com o Mundo em guerra e Macau na sua neutralidade comprometida, o Governo decide criar a Comissão de Estética, para tutelar a urbanização pública e privada. Este órgão, todavia, foi sempre considerado ineficiente. 

Em 1948, quando havia um esforço de reconstrução depois da modorra que se seguiu à guerra, defendia-se em Macau uma “campanha de bom gosto”; no jornal O Clarim, alertava-se que “a luta seria renhida e desigual, por serem muito mais numerosos os adversários que, de há muito, se constituíram em campanha de mau gosto, dando largas à sua fantasia acanhada e pobre de espírito”. Quanto à tal Comissão de Estética, “porque não se manifesta?”, questionava o jornal da Diocese.

Em 1985, quando foi criada a Comissão de Defesa do Património Arquitectónico, Paisagístico e Cultural, extinguiu-se, finalmente, a Comissão de Estética criada em Março de 1940, que o Governo admitia ter “composição e atribuições excessivamente amplas”, o que levara “ao seu não funcionamento, na prática, há vários anos”. Vivia-se já, então, o início da fase do trabalho mais sistemático de preservação do património.

“A primeira legislação séria”, considerada pelo arquitecto Carlos Marreiros como “verdadeiramente pioneira em toda a Ásia”, surge em 1976. No preâmbulo, o diploma defendia que Macau não podia correr o risco de se transformar num “agregado populacional incaracterístico, com os mesmos tipos de construção que vão buscar às grandes alturas o espaço que lhes faltou para se desenvolverem em superfície, e que repetem, por todo o Mundo em rápido crescimento, a mesma uniformidade de linhas, que em diferentes latitudes e em diferentes países faz que uma cidade se pareça sempre com muitas outras cidades”. 

Entre o património que se salvou, nesta fase inicial (até meados dos anos 1980), conta-se o bairro de São Lázaro ou o Jardim de Lou Lim Ieoc, entre muitos outros exemplos.

Mas a primeira lista do património, elaborada em 1976, visava, essencialmente, aspectos arquitectónicos. “Os valores de ordem histórica e arqueológica passaram-me ao lado”, admitia, ao jornal Tribuna, em 1986, o arquitecto Francisco Figueira, um dos responsáveis pela legislação pioneira e pelo inventário dos edifícios, e uma das figuras que mais fez pela preservação da Macau antiga (há uns anos houve uma justa iniciativa para que desse nome a uma rua da cidade, mas sem sucesso). 

Naquele ano de 1986, defendia-se urgência na revisão da lista do património, depois da destruição, para construir uma moradia, de um segmento que restava da histórica muralha sul da cidade, que não estava classificada. Durante dez anos, ninguém deu pela falta da muralha na lista, nem mesmo os padres Benjamin Videira Pires e Manuel Teixeira, ambos historiadores, e que integraram a Comissão de Defesa do Património da qual Figueira também fez parte.

Mas talvez nenhum outro património histórico estivesse tão desprotegido como o da arquitectura e cultura chinesas. Num artigo publicado na revista Administração, em 2006, Leong Kam Man e Lo Iat Tim, académicos da Universidade de Jinan, atribuem a situação ao facto de que “os próprios chineses não dão muita importância a estas arquitecturas históricas (…). Muitos templos chineses e a Alfândega, entre outras construções, têm a mesma glória da fachada de São Paulo. Pena é que os chineses nunca tenham tido a mínima ideia de as preservar”. 

Um exemplo era “a zona entre a Rua dos Ervanários e a Rua da Nossa Senhora do Amparo [onde] era o Hopu [Alfândega Chinesa] criado no início da Dinastia Qing. Estas construções chinesas, em consequência da má manutenção, assim como do ‘sentimento de pobreza’, cederam lugar a arranha-céus, tendo perdido a oportunidade de se transformar em parte em património cultural”. 

Recentemente, o Conselho do Planeamento Urbanístico deu parecer favorável à demolição do que ainda resta no local onde estava a antiga Alfândega, destruída pelo governador Ferreira do Amaral, em meados do século XIX. Apenas um membro do Conselho, o arquitecto André Lui, defendeu que o espaço devia ser preservado. Até porque tem um valor patriótico, lembrou, dado servir de testemunho da soberania chinesa sobre Macau. Debalde. 

No encontro, o Instituto Cultural referiu que tinham sido feitas umas escavações e que nada de valor fora encontrado; por outro lado, o organismo alegava que estava por provar a existência da Alfândega naquele local.

André Lui apresentou um mapa de um cartógrafo português, da década de 1830, e, após a exposição mediática do caso, o Instituto Cultural considerou que essa “descoberta” justificava uma reavaliação. 

Todavia, bastava que o Instituto tivesse consultado, na internet, o “Guia da Cidade” ou a virtual “Passeata pelas Ruas de Macau”, ambas iniciativas do Instituto para os Assuntos Municipais. Estas páginas são claras: a Alfândega Chinesa existiu no Pátio do Amparo (com a versão em português constante da “Passeata…” a afirmar que a sua construção era consequência da abertura dos portos chineses ao comércio internacional, em 1685, ditada pela Guerra do Ópio, não fora o pormenor de o conflito só ter ocorrido mais de 150 anos depois). Mas quanto ao que interessa, tudo certo: a Alfândega ali existiu. O próprio nome da Calçada do Amparo em chinês não engana: “Calçada do Grande Posto da Alfândega”.

Hugo Pinto

Jornalista

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Pandemias e epidemias

Encontro regularmente pessoas que me falam dos imensos benefícios de optar por uma dieta vegetariana ou vegana, ou que me lembram a frase cliché: “somos o que comemos”. Não sendo nutricionista, aceito e fico com a ideia de que muitas vezes não me alimento da melhor forma. Mas, uma das últimas ideias que partilharam comigo foi que, optar por uma dieta da qual faz parte peixe, carne ou produtos derivados de carne ou peixe contribuiria para um aumento do risco de futuras pandemias. Parem tudo!!!! O quê?!? Como assim?

Pois bem, eu sei que nós humanos somos seres criativos, damos asas (às vezes grandes demais) à nossa imaginação e temos acesso a demasiada ficção. Mas aquilo a que infelizmente também temos muito acesso é à desinformação e a demasiada informação errada. É normal depararmo-nos com opiniões infundadas e teorias de conspiração nas mais variadas redes sociais a que todos somos expostos continuadamente. Muitas vezes é até um pouco difícil discernir a veracidade de muitas afirmações, e outras quando retiradas do seu contexto inicial parecem significar o oposto do que era inicialmente pretendido. Tudo isto nos leva a precisarmos de ter um cuidado acrescido na escolha de fontes de informação e, em caso de dúvida, convém verificarmos mais que uma fonte. Até porque, as opiniões são como pipocas, há sempre espaço para mais uma.

Mas, voltando ao “busílis da questão”… Especula-se que uma das origens possíveis da actual pandemia terá sido carne de animais selvagens (como morcego), para consumo humano; e, embora haja até uma certa lógica nesta especulação, isto nunca foi confirmado. Convenhamos que animais selvagens têm maior propensão a ser hospedeiros de infeções, ou seja a serem portadores de doenças causadas por micróbios. Afinal, os animais domésticos vivem em ambientes mais controlados e são regularmente observados (no contexto clínico) e tratados quando doentes. Também é verdade que os morcegos são hospedeiros comuns de vírus do tipo coronavírus como o que causa a COVID-19. No entanto, se pensarmos na criação de animais para produção de carne vamo-nos deparar com uma aglomeração de elevado número de animais, muitas vezes em condições muito afastadas daquelas em que os animais selvagens normalmente se encontram, correndo maior risco de ficarem doentes e de no caso de haver uma infeção esta se propagar rapidamente a um maior número de animais. Ou seja, há muitos factores a contribuir para o aparecimento de infecções.

Transmissão de infecções 

A ingestão de carne, ou de certo tipo de carne, não é o único vector de transmissão de infecções. Tenhamos em conta o fungo Candida auris, de que vos falei na última crónica. Este superfungo é uma levedura muito infeciosa que leva à morte cerca de 50% das pessoas que infecta. Este fungo só há cerca de dez anos é que foi identificado como perigoso para nós e como altamente resistente aos medicamentos que usamos normalmente para tratar infecções micológicas (causadas por fungos). Uma das recentes teorias acerca do seu aparecimento defende que foi o uso elevado de produtos químicos para tratamento de plantas na indústria agrícola (como pesticidas e insecticidas), alguns relativamente parecidos com os antifúngicos que os médicos receitam para tratar infecções micológicas, que levaram a uma exposição desta espécie de fungo e à sua consequente adaptação a esses compostos gerando a sua elevada resistência.

Como o ciclo de vida dos fungos é rápido e novas gerações são formadas num espaço de dias ou semanas, qualquer nova alteração genética ou mutação é propagada rapidamente. Em ambientes com compostos químicos, os indivíduos que não adquiriram a alteração ou mutação que lhes permite resistir a esses compostos acabam por morrer, e os indivíduos alterados têm a sua sobrevivência favorecida aproveitando novas oportunidades para infectar ambientes que lhes sejam mais favoráveis, tal como o organismo humano. Estes fungos oportunistas geram surtos de infecções complicadas de resolver. E não existe uma solução fácil porque as plantas também sofrem doenças e algumas podem levar a graves rombos no sector financeiro e gerar situações de fome.

A grande fome

A grande fome da Irlanda, foi como ficou conhecida a época por volta de 1845. Nesta altura, a população dependia essencialmente da produção de batata. Este tubérculo foi levado para a Irlanda no final do século XVI e rapidamente se tornou a base da dieta alimentar devido à facilidade com que era cultivada nos solos húmidos irlandeses. Mas esta produção era de apenas um tipo de batata branca (chamada de “Lumper”) sem grande variedade genética e foi afectada durante vários anos deste período por uma enorme epidemia – a ferrugem ou míldeo, causada pelo fungo filamentoso Phytophthora infestans. Como não existiam espécies de batata diferentes capazes de sobreviver a este tipo de infecção, toda a produção era vulnerável e foi tremendamente afectada. A perda massiva de produção gerou uma enorme quebra nesta fonte de rendimento, levando a que muitas famílias fossem obrigadas a emigrar, principalmente para os EUA e Canadá. Num cenário de fome e miséria, o povo irlandês ficou mais também mais susceptível a doenças e foi afectado por várias epidemias. No período entre 1845 e 1849, cerca de um quarto a um terço da população irlandesa terá falecido (os números variam dependendo da referencia bibliográfica).

Peste bubónica

Outra grande pandemia que aparece reportada várias vezes na história da humanidade e responsável pela morte de milhões de pessoas é a peste bubónica. Apareceu sob os nomes de: Praga de Justiniano, considerada por muitos como uma das maiores pandemias da humanidade, com maior incidência no Império Bizantino onde se estima ter morto cerca de 100 milhões de pessoas entre os anos de 541 e 544; Peste negra na Europa, onde dizimou cerca de um terço da população entre 1347 e 1353; e, a Terceira Pandemia na China, onde matou cerca de 10 milhões de pessoas no final do século XIX. Esta doença, que ainda existe em alguns lugares do mundo, é causada por uma bactéria chamada de Yersinia pestis. Os vectores (ou veículos) de transmissão são as pulgas e os hospedeiros originais são normalmente roedores como os ratos. Depois de se alimentarem de sangue de ratos infectados as pulgas quando em contacto com humanos acabam por transmitir a infecção. Curiosamente, a nome da bactéria vem do nome do médico e bacteriologista franco-suíço que a isolou e descreveu durante uma destas pandemias em Hong Kong, em 1894, o Dr Alexandre Yersin. Só nesse ano morreram cerca de 100 mil pessoas na área de Cantão.

Doença das vacas loucas

A doença das vacas loucas foi outra epidemia relativamente recente. Formalmente designada de encefalopatia espongiforme bovina, é uma doença neurológica que afecta o gado bovino doméstico e que foi identificada pela primeira vez em Inglaterra em 1985. Esta doença é causada for um prião, uma partícula infeciosa constituída apenas por proteínas e é transmissível a nós humanos, causando a doença de Creutzfeldt-Jakob. Vários estudos apontaram como uma das causas pela disseminação da doença o facto de os produtores de gado bovino terem como prática comum alimentar os animais com farinha composta por restos de outros animais doentes, considerados impróprios para o consumo humano. Desde então foram reportadas formas similares da doença noutro animais como os gatos domésticos sugerindo uma fácil transmissão da doença entre diversas espécies animais.

Os seres vivos, sejam eles micróbios, plantas ou animais, evoluem continuamente. Há adaptações naturais e alterações de genes em todas as espécies, umas mais rápidas, outras mais lentas, umas com maiores e outras com menores benefícios para nós humanos. Independentemente das nossas escolhas alimentares, de estilo de vida, ou acções, vão sempre existir novas adaptações da vida. Se por um lado algumas das nossas escolhas diminuem algum risco de futuras pandemias, outras das nossas escolhas podem gerar situações que favoreçam novos agentes pandémicos. O aumento populacional, as alterações climáticas, destruição e diminuição de habitats naturais, práticas insustentáveis na indústria agrícola e alimentar, são factores que favorecem o aparecimento de novas doenças. No entanto, nem sempre essas novas doenças estão directamente relacionadas a ações humanas e nem todas dão origem a pandemias e epidemias. Infelizmente, este não é um assunto linear. Caso o fosse, já não necessitaríamos de investigação clínica, teríamos resolvido todas as doenças e não haveria mais por contar.

Marta Filipa Simões

Cientista

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Análise do contexto político e conteúdo da delegação dos EUA em Taiwan

A julgar pelo contexto político e contexto da visita de uma delegação de antigos funcionários dos EUA a Taiwan de 15 a 17 de Abril, o governo dos EUA está agora a adoptar uma nova política de envolvimento não só de Taiwan mas também do Japão na sua política assertiva em relação à República Popular da China (RPC).

Os delegados foram compostos pela inclusão do ex-senador Christopher Dodd, do ex-secretário de estado Richard Armitage, do secretário de estado adjunto James Steinberg e do coordenador do Departamento de Estado dos EUA para Taiwan, Dan Biers. Chegaram ao aeroporto internacional de Taiwan na tarde de 15 de Abril, quando o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Taiwan, Joseph Wu, e o Director do Instituto Americano em Taiwan (AIT), Brent Christensen, os cumprimentaram. 

Christopher Dodd é alegadamente um grande amigo do Presidente dos EUA Joe Biden. A 14 de Abril, o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da RPC, Zhao Lijian, disse que os EUA “deveriam parar imediatamente qualquer tipo de interacção formal entre os EUA e Taiwan”, e que os EUA “deveriam gerir cuidadosamente os assuntos de Taiwan”. Durante a conferência de imprensa de Zhao, um repórter mencionou que os delegados americanos iriam encontrar-se com o presidente de Taiwan Tsai Ing-wen, mas Zhao observou que Tsai “é apenas um líder local da China”, e que os EUA deveriam aderir ao princípio de uma China “sem criar qualquer sinal errado para as forças da independência de Taiwan” e “sem prejudicar seriamente as relações sino-americanas e a paz e estabilidade do Estreito de Taiwan”.

Na noite de 15 de Abril, o líder de Taiwan Tsai Ing-wen organizou um jantar para receber a delegação de quatro membros dos EUA. O lado de Taiwan testemunhou a presença do vice-presidente William Lai, do secretário do Conselho de Segurança Nacional Wellington Koo, do secretário de defesa Chiu Kuo-cheng, e do ministro executivo Yuan John Deng Chen-chung (que trata dos assuntos comerciais). O alinhamento do lado de Taiwan mostrou que o governo de Taiwan estava interessado em três grandes questões que afectam o Estreito de Taiwan e as relações EUA-Taiwan, nomeadamente a segurança nacional, a defesa nacional e o comércio. A Czai observou no jantar que esperava que tanto Taiwan como os EUA aprofundassem a sua parceria. No seu encontro anterior com a delegação, Tsai chegou ao ponto de afirmar que Taiwan estaria disposto a cooperar com esses “parceiros ideologicamente próximos” na região Indo-Pacífico para “travar o comportamento aventureiro e provocador”.

A 15 de Abril, a delegação dos EUA encontrou-se com seis membros do Yuan Legislativo de Taiwan. O lado norte-americano estava profundamente interessado na atitude do Kuomintang em relação ao consenso de 1992. Os membros do KMT responderam que não iriam mudar a sua opinião em relação ao consenso de 1992, mas o consenso de 1992 não era equivalente ao “um país, dois sistemas”. Os legisladores do KMT que se encontraram com os três delegados também disseram que o partido não aceitaria o “um país, dois sistemas” (Liberty Times, 15 de Abril de 2021). Os membros do KMT passaram um tempo considerável a discutir com os americanos sobre o consenso de 1992, abstendo-se de mencionar a oposição do partido à importação de carne de porco americana para Taiwan. Os delegados americanos estavam interessados na atitude dos jovens taiwaneses em relação aos EUA e nas perspectivas de quaisquer conflitos militares. 

Um jovem membro do KMT, Charles Chen, disse que os jovens de Taiwan não estão familiarizados tanto com os EUA como com a China continental, e que lhes falta uma perspectiva internacional. Chen acrescentou que os jovens de Taiwan não têm medo de conflitos entre as duas margens do Estreito e, no entanto, não demonstraram a sua ânsia em juntar-se às forças armadas de Taiwan. No entanto, o membro do DPP Lo Chih-cheng argumentou contra a perspectiva de Chen, dizendo que os jovens de Taiwan são internacionais na sua perspectiva, e que apoiam Tsai Ing-wen enquanto se opõem à RPC. Mais importante ainda, o factor Hong Kong é importante na mente de muitos jovens de Taiwan. Outro legislador, Kao Hung-an do Partido Popular (PP), disse que Taiwan deveria cooperar mais com os EUA no desenvolvimento da indústria de semi-condutores e da sua cadeia de abastecimento. 

No mesmo dia, o Primeiro-Ministro de Taiwan, Soo Tsing-tshiong, encontrou-se com os delegados dos EUA e manifestou a sua opinião de que as relações comerciais entre Taiwan e os EUA poderiam ser reforçadas, incluindo a possibilidade de renegociar o Acordo-Quadro de Investimento Comercial e o Acordo Comercial Bilateral, com vista a alcançar a prosperidade económica mútua. Soo disse que a visita da delegação foi historicamente muito significativa. Em resposta às observações de Soo, Dodd disse que a sua visita teve lugar num momento significativo, e que a delegação “representa a importância de Taiwan para os EUA e o apoio partidário americano a Taiwan” (Liberty Times, 15 de Abril de 2021). Soo acrescentou que Taiwan gostaria de obter o apoio dos EUA para se juntar a mais organizações de comércio internacional, ao mesmo tempo que afirmava o compromisso de Taiwan em lidar com as alterações climáticas através dos esforços para reduzir a utilização de carvão, controlar a emissão de carbono e melhorar a transição energética.

A 17 de Abril, o jovem líder do KMT Chiang Wan-an revelou aos meios de comunicação social de Taiwan que, a 15 de Abril, como um dos seis legisladores que se reuniram com a delegação dos EUA, disse que o consenso de 1992 não era equivalente a “um país, dois sistemas”. Além disso, Chiang acrescentou que o KMT “se opõe resolutamente ao ‘um país, dois sistemas’ e que o partido está agora a deliberar se uma nova e concreta posição sairia “se o consenso de 1992 não fosse aceite pela maioria do povo” (Liberty Times, 17 de Abril de 2021). Como um dos carismáticos jovens líderes do KMT, as observações de Chiang poderiam ser vistas não só como representando a perspectiva dos Jovens Turcos dentro do campo azul, mas também como se desviando para a direcção do verde claro.

A 17 de Abril, Sandra Oudkirk, Secretária de Estado Adjunta para os Assuntos da Ásia Oriental e Pacífico do Departamento de Estado dos EUA, observou, numa palestra na Heritage Foundation, que a administração Biden aprovou as novas directrizes de reforço das interacções não oficiais entre os EUA e Taiwan, e que estas novas interacções representaram “um enorme passo em frente” em relação às antigas directrizes em 2015. Acrescentou que os EUA e Taiwan cooperam em muitas áreas, incluindo a colaboração marítima entre a guarda costeira das duas partes e o Quadro Global de Formação em Cooperação. Envolveu-se numa discussão virtual com o Vice-Ministro dos Negócios Estrangeiros de Taiwan, Tien Chung-kwang, observando que as novas directrizes “encorajam explicitamente o envolvimento com os homólogos de Taiwan” e “eliminam restrições excessivamente onerosas que complicam a nossa capacidade de envolvimento com Taiwan em questões de interesse mútuo”.

As novas directrizes estão alegadamente a permitir aos funcionários dos EUA a realização de reuniões regulares com homólogos taiwaneses em edifícios federais dos EUA e nos escritórios de representação de Taiwan na América. Permitem aos funcionários dos EUA assistir a eventos em Twin Oaks, a residência dos antigos embaixadores de Taiwan nos EUA, que é agora utilizada para funções oficiais, mas as novas directrizes proíbem os funcionários dos EUA de assistir a eventos nos feriados de Taiwan, tais como o duplo décimo dia nacional, que poderia ser considerado como conflituoso com a política americana de uma só China (Focus Taiwan, 17 de Abril de 2021). As antigas directrizes foram retiradas pelo antigo secretário de estado Mike Pompeo. O seu sucessor, Anthony Blinken, favorece a expansão dos contactos dos EUA com Taiwan.

Enquanto a visita da delegação dos EUA a Taiwan e as linhas de orientação relaxadas dos EUA sobre as interacções mais próximas entre os EUA e Taiwan desagradaram e provocaram a RPC, outro gesto provocatório foi feito por uma declaração emitida conjuntamente pelo Primeiro Ministro japonês Yoshihide Suga e pelo Presidente dos EUA Joe Biden após a visita de Suga aos EUA a 15 de Abril. A 16 de Abril, Biden e Suga abordaram toda uma série de questões geopolíticas na declaração conjunta, incluindo “a importância da paz e estabilidade do Estreito de Taiwan” (Reuters, 17 de Abril de 2021). O Presidente Biden afirmou numa conferência de imprensa: “Hoje, o Primeiro-Ministro Suga e eu afirmamos o nosso apoio inequívoco à aliança EUA-Japão e à nossa segurança partilhada. Estamos empenhados em trabalhar em conjunto para enfrentar os desafios da China e em questões como o Mar da China Oriental, o Mar da China Meridional, bem como a Coreia do Norte, para assegurar um futuro de um Indo-Pacífico livre e aberto”. Biden e Suga também falaram sobre os desenvolvimentos em Hong Kong e Xinjiang.

Em resposta, a Embaixada da RPC em Washington disse que a China é “resolutamente contra” a sua declaração conjunta e que Taiwan, Hong Kong e Xinjiang pertencem aos assuntos internos da China. De 15 a 20 de Abril, os militares da RPC conduziram exercícios no Mar do Sul da China, um movimento coincidente com a visita da delegação dos EUA a Taiwan.

Em termos analíticos, o conteúdo e o contexto da delegação dos EUA a Taiwan tornou-se politicamente provocador. Primeiro, a delegação de quatro membros incluía um funcionário do Departamento de Estado, mostrando talvez a implementação das novas orientações relaxadas dos EUA em contactos mais estreitos com Taiwan. Em segundo lugar, três membros da delegação eram anteriormente altos funcionários e a sua recepção de alto nível pela parte de Taiwan ilustrou oficialmente uma nova era de contactos EUA-Taiwaneses. Em terceiro lugar, a delegação dos EUA também tinha como objectivo sondar as respostas do povo de Taiwan, incluindo legisladores e a sua geração mais jovem, não só às relações de Taiwan com a China continental, mas também às perspectivas de conflitos no Estreito de Taiwan. Em quarto lugar, a declaração conjunta emitida pelos EUA e pelo Japão cobriu Taiwan – uma medida sem precedentes que já desencadeou uma forte reacção da Embaixada chinesa em Washington.

Em conclusão, a visita da delegação dos EUA a Taiwan representou uma nova era de contactos EUA-Taiwan sob a administração de Biden. A sua visita alcançou o objectivo de demonstrar a importância que os EUA atribuem a Taiwan nos domínios da segurança, defesa e economia. Dado que a administração Biden está determinada a envolver-se assertiva e activamente com Taiwan em vários aspectos, e que o Japão, como aliado dos EUA, é cada vez mais arrastado para a complexa política triangular Pequim-Washington-Taipei, Taiwan vai ser inevitavelmente um pomo de discórdia entre os EUA e a China nos próximos anos.

Sonny Lo

Autor e Professor de Ciência Política

Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Macau News Agency/MNA

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Uma vez nós

Era uma vez um homem, pequeno de estatura, mas grande em ambições. Filho de um alfaiate, fez-se engenheiro do outro lado do Estreito e mestre em casa. Rápido e perspicaz, subiu onde porventura não imaginara chegar. Dizia-se que não tinha sido a primeira escolha, mas os ventos políticos foram-lhe favoráveis. Numa noite de risos e lágrimas, subiu ao poder. E ali ficou. 

Enquanto ali esteve, este homem pequeno, mas grande em projectos, pôs a máquina a mexer. Engenheiro de formação, sabia de obras e a cidade rapidamente se transformou num estaleiro: uma ponte para ali, uma rotunda para aqui, um estádio de cara lavada, mais um projecto para isto e uma construção para aquilo. As gruas cresciam apontadas ao céu, como se o céu fosse o limite.

Não foi. O limite chegou numa noite de Inverno de que alguns ainda terão memória, apesar de só a conhecerem de relatos. Homens investidos de autoridade bateram à porta do homem pequeno, mas cheio de planos, e levaram-no de casa, para não voltar mais. Lá dentro encontraram dinheiro em maços e vinhos caros, dizem. E mais: era muito dinheiro e eram muitos vinhos caros.

Em menos de um ano, o homem pequeno, agora só pequeno, estava sentado no banco onde são julgadas as pessoas suspeitas de terem cometido crimes. Apesar de serem muitas as caixas de folhas e folhas e provas e provas, não demorou muito a organizar o megaprocesso, que envolvia família, amigos e vários dos empresários que dispararam as gruas até ao céu, enquanto contribuíam com maços de notas para o armário do homem pequeno, só pequeno, e para as suas contas bancárias.

Apesar de ninguém ter estado na casa do homem pequeno, cada vez mais pequeno, quando os homens investidos de autoridade a passaram a pente fino, o megaprocesso andou sem dificuldades e transformou-se num mega-julgamento. De nada adiantou alegar que prova recolhida assim não conta para efeitos legais porque, para efeitos legais, os recursos só podiam ser interpostos ao céu: na cidade, quem manda mais fica nas mãos de um só juízo. Com agravo e sem apelo.

A coisa resolveu-se rapidamente e, em menos de três meses, o problema estava solucionado: pena quase máxima para mais de meia centena de crimes, incluindo aqueles aparentemente difíceis de provar, por envolverem dinheiro sujo e formas sofisticadas de o limpar. Durante tudo isto e depois também, homens das leis duvidaram da metodologia encontrada para se chegar à solução, unanimemente considerada acertada, embora lida por alguns como exagerada.

Tempos depois, mas não muitos, o homem pequeno voltou à sala onde tinha ficado a perceber, talvez sem espanto, que a vida em liberdade tinha acabado ali. Num novo julgamento, para acabar o que não tinha sido acabado, o homem pequeno, desta vez num silêncio sepulcral, recebeu mais uns anos para juntar aos outros que já lá tinha. Ao todo, não andam longe dos 30, como se o dinheiro no armário fossem vidas perdidas e não apenas dinheiro, e como se o vinho fosse sangue e não apenas vinho. Já vão uns bons anos. O homem pequeno tem agora 64 anos.

O homem alto tem agora 63 anos. A vida também lhe correu mal numa noite de Inverno, mas não estava em casa: voltava de viagem quando homens investidos de autoridade o levaram num carro que é sinónimo de problemas para quem nele entra contra a sua vontade. Apesar de ser noite e de haver autoridades, estavam lá também as televisões, para o pontapé inicial de um longo jogo.

O homem alto nasceu numa aldeia para lá dos montes e fez-se engenheiro, mas mais para o técnico – se bem que, ao que se diz, com algumas dificuldades e acontecimentos duvidosos pelo meio. E pelo meio, foi subindo as escadinhas do poder e chegou onde quis chegar, primeira escolha pública depois de muitas escolhas internas, porque é assim que acontece no país dele. 

Rápido e cheio de iniciativa, mandou fazer muito e pôs tudo a mexer, numa lufa-lufa nervosa como ele. Sempre alto e de firmes convicções, a vida lá foi correndo por ele até ao dia em que alguém achou que alguma coisa não batia certo. Também com o homem pequeno tinha sido assim: um banco que torce o nariz a um papel e um papel que se transforma num drama.  

Na história do homem alto também há família, amigos e empresários. E resmas intermináveis de folhas e folhas e provas que não se sabe bem se o são, e noites dormidas num quarto emprestado pelo Estado em que a fechadura só funciona do lado de fora. 

Como na história do homem pequeno, também há um processo que é mega, mas nesta história há a quem apelar, há questões processuais atrás de questões processuais, o puzzle não se juntou num ano e o jogo, longo, ainda não terminou. Ainda a bola estava em campo e, de forma diferente do caso do homem pequeno, o público ouviu conversas de balneário, contaram-se todos os pormenores, e foi feita prova em julgamento popular.

Com o jogo a meio e aparentemente demasiadas bolas ao poste, o público não gostou e bateu o pé. Há homens de cabeça quente que querem a justiça expulsa e outros mais calmos que desejam que ela reflicta sobre ela própria, que se reveja e pense na forma. Na forma e no tempo, essa medida sempre incerta.

Era uma vez um homem pequeno nas mãos de três homens que decidiram o que lhe ia acontecer, sem que mais homens garantissem que não tinha havido engano. Era uma vez um homem alto nas mãos de vários homens incapazes de decidir antes que o tempo passe. Era uma vez uma justiça e outra justiça, com injustiças de um género e injustiças de outro. Era uma vez os homens e a exigência da perfeição, como se a perfeição existisse. Era uma vez nós, tão diferentes e sempre tão iguais quando as coisas dão para o torto, sempre muito sabedores do que desconhecemos completamente.

Isabel Castro

Jornalista

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A conveniência das utopias

Nunca, como durante o chamado “período de transição” – entre a Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre a Questão de Macau, assinada em 1987, e a entrega da administração do território à República Popular da China, em 1999 –, se discutiu tanto a identidade do pequeno enclave.

A questão parecia particularmente importante e até urgente para quem estava de saída. O governo português de Macau empenhou-se na construção de um imaginário que estabelecesse determinadas características culturais e que, de alguma maneira, fosse igualmente entendido como fruto da sua acção. Mas entre os chineses de Macau (e não só), no entanto, havia quem considerasse que era precisamente devido à inacção das autoridades portuguesas – por desleixo, inaptidão ou desígnio – que as particularidades distintivas do território, em sentido lato, se tinham preservado. Esse “laissez faire” permitira o que o filósofo francês Bernard-Henri Lévy descrevia, em “Impressions de l’Asie (1985), como uma cidade “caricaturalmente chinesa”. Mais chinesa do que as do Continente. 

A presença portuguesa protegera Macau das transformações, muitas vezes cataclísmicas, que eram costume no interior do país, onde a cultura era domínio restrito de elites intelectuais e o “obscurantismo” política, como explicam os académicos da Universidade Internacional de Jinan, Leong Kam Man e Lo Iat Tim, lembrando os exemplos históricos – da perseguição dos letrados confucionistas à Grande Revolução Cultural.

O exercício de uma soberania dual favorecera que a comunidade chinesa vivesse largamente livre de interferências, o que se verificava até ao nível do que poderia ser considerado mais burocrático e estruturante, como a Educação. Numa terra regida pelos “princípios flexíveis da política de ‘dupla lealdade’”, como descreveu o historiador Wu Zhiliang, florescera uma cidade que era uma espécie de “Janus cultural”, na feliz expressão da investigadora Christina Miu Bing Cheng.

Enganadoramente susceptível a visões simplificadoras, até na sua identidade, coberta por bruxuleantes sombras chinesas e diáfanos xailes lusos, Macau se revelava, contudo, difícil de fixar. Também nesse sentido é uma cidade chinesa, com os abundantes exemplos de uma coisa e do seu contrário, as suas contradições e contrastes; tal como o grande país, mas com características próprias, específicas, devidas à presença secular portuguesa.

Hoje, Macau continua a ser o que sempre foi, uma cidade chinesa, mas o que em tempos designava uma tradição milenar viva, que não tinha sido petrificada ou simplesmente destruída, e que existia numa espécie de estado de graça – num plano exclusivo, entre margens e poderes, imune a influências directas por parte de qualquer Estado e suas marcas excessivas –, arrisca confundir-se num processo de integração que vai esbatendo barreiras e diferenças, sob os auspícios de um abrangente e detalhado plano central de desenvolvimento nacional.

Neste processo, vai-se perdendo, também, uma certa metafísica – mística, transcendência – própria de Macau e de uma cidade que, no discurso elaborado para servir como alternativa de realidade e futuro, se vangloriava como singular. 

Um dos objectivos desta narrativa era criar um amor-próprio entre a população (chinesa, sobretudo, maioritariamente emigrante), fazê-la identificar-se com um território onde tinham sido acolhida e podia viver em paz, mas alheada do significado ou conotação espiritual do propalado encontro entre o Ocidente e o Oriente.

Não faltava quem chamasse a atenção para estes símbolos e metáforas; quem lembrasse que Macau foi “a primeira zona económica e cultural especial da China, abrindo-se ao mundo exterior, tornando-se uma porta importante para este grande império fechado, não só para o comércio mas também para o intercâmbio cultural”, como escreveu, em 1994, Gary Ngai, então vice-presidente do Instituto Cultural. 

Em 2004, Wu Zhiliang defendeu que, “no que toca à interacção histórica da China com o resto do Mundo, sem o aparecimento de Macau, todo o processo histórico do Mundo talvez não tivesse tido as estruturas que hoje lhe conhecemos: nem o Mundo seria aquele em que actualmente vivemos, nem a China o que é”. Continuava o actual presidente da Fundação Macau: “Seja de que ponto de vista for, Macau, como uma ponte
e um ponto de confluência entre as civilizações chinesa e ocidental, desempenhou funções insubstituíveis, em termos políticos, militares, culturais e religiosos e ofereceu condições para o conhecimento mútuo, a comunicação, o entendimento, a tolerância e o respeito recíproco entre civilizações e povos diferentes. Talvez seja esta a mais valiosa herança e o maior contributo de Macau”.

Estas palavras antecedem, ainda, a classificação do Centro Histórico de Macau como Património da Humanidade pela UNESCO. Em retrospectiva, nota-se que se vivia, na altura, um optimismo que levava a assinalar as virtudes de uma cidade escritas na pedra, no seu legado de séculos. Não se imaginava, então, que o Farol da Guia viesse a ser escondido, pouco depois (acontecendo o mesmo à Penha, mais tarde), ou que não exista, ainda, um Plano de Gestão e Protecção do Centro Histórico.

Do mesmo modo, hoje, celebra-se pouco essa Macau que se resgatou e recriou da História. Havia, talvez ilusoriamente, uma ambição e uma aura de grandes realizações, uma certa ideia utópica em que a pequena nesga de terra poderia ter (outra vez) um decisivo cunho no Mundo. “A conotação e o valor intrínseco da cultura de Macau são uma força motriz para o seu desenvolvimento e, também, uma sólida base para novas conquistas”, dizia Wu Zhiliang. “Trata-se duma herança preciosa, um capital inesgotável para o desenvolvimento futuro de Macau. Não só devemos apreciá-la e protegê-la, mas, e mais importante, sistematizá-la, investigá-la, cultivá-la e senti-la com o coração para realçar o seu espírito e significado, a fim de que possa desempenhar melhor as suas funções, contribuindo para o progresso e desenvolvimento de Macau, da China, do Mundo e de toda a Humanidade”.

Actualmente, o discurso é outro. A propensão algo messiânica foi substituída por um pragmático “centro mundial de turismo e lazer”, com antigas mitologias despromovidas a meros atractivos turísticos. A cultura e o património parecem remetidos a um carácter figurativo, de cartaz, que serve essencialmente para criar roteiros turísticos. Falta pensamento e profundidade. Transcendência. 

No jargão oficial, sobretudo desde Fevereiro de 2018, quando as autoridades centrais promulgaram o “Plano Director do Desenvolvimento da Área da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau”, definindo “a nova posição estratégica do progresso de Macau”, faz-se agora questão de acentuar que, na “coexistência de culturas em Macau, a chinesa é predominante”. 

Como afirmou o ex-Chefe do Executivo Chui Sai On, em 2019, “o desenvolvimento cultural é um elemento fundamental da construção da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau e, para garantir o desenvolvimento sustentável da Grande Baía, a sua população deve partilhar uma mesma identidade cultural”. 

É a mais recente actualização da história de Macau como ponte, mas agora na planificação central do regime, que determina um “denominador comum” que possa “colmatar as diferenças dos sistemas e promover a integração”. 

Dos símbolos à realidade, aí está a ponte sobre o Delta, ligando Macau, Guangdong e Hong Kong. A “maior ponte marítima do mundo” não deixa de ser uma “grande realização”, mas bem mais modesta, ainda assim, do que “o progresso e desenvolvimento de toda a Humanidade”.

Hugo Pinto

Jornalista

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Educação para a Segurança Nacional em Hong Kong: Implementação e Adaptação

As directrizes sobre a implementação da educação para a segurança nacional na Região Administrativa Especial de Hong Kong (RAEHK) foram publicadas em Fevereiro de 2021, conduzindo ao processo de como o jardim-de-infância, escolas primárias, escolas secundárias, escolas internacionais e universidades podem então ser implementadas. As respostas iniciais dos interessados mostraram que estão agora a implementar activamente as directrizes, incluindo, o mais importante, a adaptação gradual dos professores.

De acordo com a Circular nº 3/2021 do Gabinete de Educação, intitulada “Segurança Nacional: manter um ambiente de aprendizagem seguro que alimente bons cidadãos”, esta circular deve ser lida não só por supervisores e directores de jardins de infância, escolas primárias e secundárias para acção, mas também por supervisores e directores de todas as escolas privadas que oferecem um currículo não formal para informação. 

A circular fornece as directrizes sobre administração escolar para implementar a lei de segurança nacional da RAEHK. Salienta que os artigos 1 e 12 da Lei Básica de Hong Kong sublinham que a RAEHK é uma parte inalienável da RPC. Como tal, é responsabilidade comum de todos os residentes de Hong Kong, incluindo o pessoal escolar, pais e estudantes, salvaguardar a soberania nacional, a segurança e os interesses de desenvolvimento do governo central. A circular introduz a lei de segurança nacional em pormenor, enfatizando que o conceito de segurança nacional é abrangente, abrangendo a segurança política, integridade territorial e outras esferas militar, económica, cultural, social, tecnológica, ecológica e em cibersegurança. 

Na última década, muitos académicos do continente escreveram extensamente em todas estas dimensões da segurança nacional. A circular não incluiu quaisquer referências de fontes continentais, deixando a tarefa de implementação para as escolas, cujos professores podem e devem consultar as fontes continentais para referência útil e preparação de aulas.

A circular centra-se nas responsabilidades dos educadores na implementação da educação para a segurança nacional, referindo-se ao Artigo 9 da lei de segurança nacional que exige que a RAEHK reforce o seu trabalho de salvaguarda da segurança nacional, e ao Artigo 10 sobre a necessidade de a RAEHK promover a educação para a segurança nacional em todas as escolas e universidades. 

A secção 10 da circular salienta que compete a todas as escolas “rever o mais cedo possível e conceber medidas apropriadas no que respeita ao planeamento e gestão escolares, gestão de pessoal, e outras áreas relevantes para facilitar a aprendizagem eficaz dos estudantes”, que abraçam (1) a necessidade de todo o pessoal escolar respeitar o código de conduta e de ética profissional, (2) a prevenção e supressão de actividades de ensino e escolares que violem a Lei Básica e a lei de segurança nacional, e (3) a assistência oferecida para permitir aos estudantes “obter uma compreensão correcta do contexto legislativo, mensagem, importância e significado da lei de segurança nacional” e o reforço da sua “segurança nacional e consciência de cumprimento da lei”. ” Além disso, embora os sistemas de gestão e os currículos das escolas internacionais e outras escolas privadas sejam diferentes dos currículos locais, têm a responsabilidade de ajudar os seus alunos a “adquirir uma compreensão e apreciação correctas e objectivas do conceito de segurança nacional e da lei de segurança nacional, bem como o dever de cultivar um espírito respeitador da lei entre os seus alunos”. 

Assim, os organismos de patrocínio escolar, os comités de gestão incorporados e os comités de gestão escolar devem desempenhar as suas funções e tomar medidas para salvaguardar a segurança nacional nas escolas. Os organismos de patrocínio escolar são obrigados a dar directivas à autoridade de gestão escolar para garantir que sejam tomadas medidas para salvaguardar a segurança nacional e para implementar a educação para a segurança nacional. Estas medidas incluem a gestão escolar, a distribuição de recursos, a formação de pessoal, a comunicação das partes interessadas, o ensino e a aprendizagem, a orientação e disciplina dos estudantes, as actividades no campus, as associações e actividades estudantis, e a revisão e avaliação do processo de implementação.

Mais importante ainda, a autoridade de administração escolar deve criar um “ambiente escolar pacífico e ordeiro” e “envidar todos os esforços para manter um campus livre de interferências políticas, para que o funcionamento normal da escola e a aprendizagem dos alunos não sejam afectados”. As escolas são obrigadas a assegurar a “utilização adequada das instalações escolares”, incluindo a contratação de instalações escolares a organizações externas para a realização de actividades.

A direcção e os gestores da escola são obrigados a promover aos estudantes “um correcto entendimento entre os estudantes da história e desenvolvimento do país, da importância da segurança nacional, da bandeira nacional, do emblema nacional e do hino nacional, bem como da ordem constitucional estabelecida para a RAEHK ao abrigo da Constituição e da Lei Básica”. A avaliação do desempenho do pessoal, incluindo o pessoal docente e não docente, deve considerar a forma como estes defendem a ética profissional e observam o código de conduta. As escolas internacionais devem elaborar directrizes para assegurar que o campus seja um local politicamente neutro “livre de actividades ilegais”. 

Para ajudar as escolas a implementar a educação para a segurança nacional, o Gabinete do Departamento de Educação (EDB) elaborou medidas específicas muito detalhadas de 36 páginas, que delimitam as responsabilidades dos gestores escolares, e o papel dos diferentes membros e coordenadores funcionais da equipa, tais como a equipa de gestão de crises, a equipa de desenvolvimento profissional dos professores, a equipa de assuntos académicos, o líder curricular, e a equipa de pastoral estudantil (incluindo orientação, disciplina, actividades extra-curriculares, e planeamento de vida). 

São mencionadas as áreas e disciplinas específicas de aprendizagem que implementam a educação para a segurança nacional. A nível primário, estas áreas incluem (1) estudos gerais, (2) aprendizagem ao longo da vida, (3) educação moral, cívica e nacional, e (4) outros painéis de disciplinas e equipas consideradas adequadas pelas escolas. A nível secundário, estas áreas incluem (1) educação pessoal, social e de humanidades; (2) educação científica: (3) educação tecnológica; (4) estudos liberais; (5) aprendizagem ao longo da vida; (6) educação moral, cívica e nacional; e (7) outros painéis de disciplinas considerados apropriados pela escola.

O trabalho disciplinar, de acordo com as medidas específicas, deve reconhecer os esforços e o comportamento positivo dos estudantes. Se os estudantes violarem a lei sob a influência indevida de outros, então os professores devem “ensinar aos estudantes da turma/nível afectado como se manterem firmes contra tal influência através do currículo e actividades de orientação relacionadas ou procurarem assistência de serviços externos”. Se o aluno em questão se recusar a corrigir o seu comportamento incorrecto, deve ser imposta uma punição. Se organizações externas estiverem envolvidas, a escola “deverá registar todas as informações recolhidas durante a entrevista, incluindo a data, hora, local, pessoas, organizações envolvidas” e poderá procurar aconselhamento ou ajudar a firmar o agente de relações comunitárias da polícia do distrito policial em questão.

A 10 de Abril, o Secretário da Educação Kevin Yeung revelou que, desde o movimento anti-extradição em 2019 até ao presente, 200 casos de queixas foram recebidos pela EDB e 40 casos foram estabelecidos com provas prima facie. Apenas um caso estava relacionado com o cancelamento do registo de um professor em questão. Como tal, as queixas diziam respeito a uma minoria de professores. Quando questionado pelo apresentador da Rádio Comercial sobre a sugestão de alguns legisladores patrióticos de instalar televisões em circuito fechado nas salas de aula para observar o desempenho dos professores, Yeung disse que tal medida afectaria a privacidade dos alunos e que gostaria de ouvir os pontos de vista dos pais. 

O departamento de Yeung prepara-se para acrescentar 30 horas de formação em exercício para que todos os professores estejam mais familiarizados com o desenvolvimento da China e com o conceito de segurança nacional. Yeung acrescentou que a controvérsia anti-extradição não era apenas atribuível à educação, embora a educação deva ser melhorada em Hong Kong. O apresentador do programa “Política e Economia no Sábado” da Rádio Comercial perguntou-lhe ainda se deveriam ser ensinadas questões politicamente sensíveis sobre a China, tais como o incidente de Tiananmen em 1989 e a recente controvérsia do algodão de Xinjiang, Yeung respondeu que estas questões estariam à altura da decisão dos professores nas experiências de ensino e aprendizagem, mas que deveria ser articulada uma perspectiva equilibrada que mencionasse as posições da China. 

Alguns professores a nível do ensino secundário já tinham dito aos meios de comunicação que evitariam ensinar matérias sensíveis para não se tornarem desnecessariamente alvo de queixas por parte de qualquer pessoa, incluindo alunos e pais.

Enquanto os directores e professores se preparam activamente para a implementação da educação para a segurança nacional, uma minoria de professores profundamente preocupados decidiu abandonar a profissão docente. Alguns outros optaram pela emigração por razões familiares ou outras. Uma esmagadora maioria dos professores permanece na sua profissão e adapta-se às novas alterações curriculares, incluindo o currículo de estudos liberais renovado, que foi criticado como politizando os professores do ensino secundário e estimulando o seu activismo político. 

Os apoiantes da reforma dos estudos liberais argumentaram que o currículo era demasiado complexo, enquanto que os opositores defendiam que o novo currículo de “educação cívica e desenvolvimento social” carece da componente do pensamento crítico. Uma coisa é certa: enquanto o currículo dos estudos liberais foi introduzido em 2009 como uma das quatro disciplinas centrais ao nível secundário sénior, é agora considerado como uma disciplina que necessita de reformas no sentido de ter apenas passado ou fracassado. A diluição do currículo dos estudos liberais é acompanhada pela introdução e melhoria do ensino da segurança nacional, o que implica que o primeiro deve ser reformado em favor do segundo.

A nível universitário, a educação para a segurança nacional pode ser incluída, por exemplo, em várias semanas num curso genérico que envolve, sem qualquer dificuldade, estudantes do primeiro ano da licenciatura.

Em conclusão, a implementação da educação para a segurança nacional está em curso com a preparação e participação activa de todos os interessados. Os directores e as autoridades escolares devem implementá-la, enquanto que os professores levam tempo a adaptar-se ao novo currículo e a seguir uma formação profissional no local de trabalho. Os pais esperam naturalmente que os seus filhos sejam cidadãos cumpridores da lei, enquanto os estudantes devem ser educados para cumprir a lei e compreender tanto a segurança nacional como a China de uma forma muito mais profunda. Como tal, uma transformação fundamental da paisagem educacional na RAEHK é natural e abraçada.

Sonny Lo

Autor e Professor de Ciência Política

Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Macau News Agency/MNA

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A hora do «silêncio»

 As últimas notícias que proliferam neste“burgo” à beira mar plantado sobre Macau , apesar de parcas e enunciadas em pequenas “caixas” editoriais, referem-se à situação da nova dinâmica que se vai inscrevendo quanto às questões do discurso narrativo na forma de informar, leccionar, educar e opinar no actual contexto da RAEMacau.

Apesar da notoriedade destas notícias estar agora a ser realçada no contexto dos orgãos de informação, a tónica dominante deste principio orientador era já um facto evidenciado há algum tempo na sociedade de Macau, afectando e incidindo em áreas diversas tais como sistema educativo, o discurso legislativo,  e de algum modo o movimento associativo.

Nada de transcendente, na minha opinião claro, ou mesmo para quem tem  vindo a observar e a analisar as dinâmicas integradas e sistémicas que Macau vai tecendo,  esta permissa não parte dos factos isolados ou pontuais para contar a história da póstransição mas sim, do que se esconde por detrás deles, neste sentido o efeito catalizador dos novos rumos que Macau foi adquirindo estão intrinsecamente ligados à sua inclusão nos designíos da Grande Baía que por sua vez se estendem e incorporam a estratégia “going out” desenhada pela designação Uma Faixa e Uma Rota da RPChina.

Ao  incorporar paulatinamente a RAEMacau nesta vertente, justificou-se o “acertar do passo” com a narrativa predominante do sistema central e unificador. Era inevitável esta deslocação para o futuro de Macau, assente obviamente em toda a legitimidade que se reconhece à RPChina.

Os dados e as expectativas de um espaço autónomo consolidado pelo principio «Um país dois sistemas», estavam desde logo à partida “viciados”, quer pela natureza do pensamento politico, quer pelo desiquilibrio das força em jogo, o que não impede a possibilidade de manter o principio, a questão coloca-se na interpretação do modelo.

Porém, a história também nos vai dando exemplos de resignação e aceitação de “derrotas” com alguma dignidade, relembro essencialmente os casos de resistência pacifica que se aplicam desde os tempos da escravatura, passando pelos sucessos de Gandi na emancipação da India ou do efeito Mandela na luta contra o Aphartaid. O tempo torna-se aqui um factor crucial.

Talvez tenhamos também chegado à hora do «silêncio» em Macau, não como acto passivo mas, como o interludio entre dois textos musicais ou mesmo, como técnica muito utilizada na composição musical em que os tempos de silêncio são tão harmónicos e importantes com o tempo dos sons, situação que também se aplica no teatro e na declamação, as pausas são tempos de silêncio que dão forma ao texto, que o digam os poetas e os actores.

O silêncio como elemento intrinseco é também muito usual no contexto dos ritos e rituais religiosos ou de caráter espiritual, a utilização do “voto do silêncio” é um apanágio da força interior, demonstrando que também aí existe uma realidade paralela, para além de se constituir como instrumento fundamental para aguçar o espaço de refexão que nos leva a elevar o sentido da espiritualidade das coisas. As palavras aqui pouco ou nada contam, o que conta é o pensamento. 

A remissão ao silêncio não é uma forma de abdicarmos do pensamento e da opinião, apenas o utilizamos como elemento de um todo, que se intercala com a forma de expressão ou manifestação enquanto pausa temporal entre dois momentos.

Assim sendo, a opção do silêncio pode colocar-se como o intervalo entre a expressão e exaltação dos discurssos dominantes e a expressão do discursso contestatário (do contraditório ou mesmo da contra cultura), não é o medo nem o receio que nos silencia, é apenas uma outra forma de procurarmos uma harmonia (sonora) que possa salvaguadar a dignidade de sermos aquilo que somos.

Pelo que me toca, procurarei também aderir a este momento (hora) do «silêncio», por um lado como solidariedade para com os que hoje se sentem hipotéticamente privados da sua capacidade de expressão no exercicio das suas actividades e por outro como posicionamento individual face às dinâmicas que Macau vai tecendo no seu período da póstransição, não será, como se pode deduzir, um acto definitivo e irredutivel mas, apenas e só, um intervalo entre os sons e as palavras de uma narrativa ainda por contar de uma Macau que teimosamente continuo a querer narrar como um espaço de «singularidades» e, na busca de uma harmonia sonora que nesta fase nos exige o silêncio como estado da alma.  

Carlos Piteira

Investigador do Instituto do Oriente

Instituto Superior de Ciências Socias e Políticas / Universidade de Lisboa

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