A propósito das cultura hibridas e da mestiçagem

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A cultura no seu sentido lato é algo que as pessoas herdam, usam, transformam, adicionam e transmitem aos seus seguidores. É representada, justamente, pela capacidade que temos de envolver um conjunto de valores e/ou significados partilhados que valorizam o funcionamento de uma comunidade enquanto sistema cultural, permitindo aos indivíduos a sua utilização e a sua integração nas práticas do quotidiano.

O conceito de hibridismo cultural que está hoje tão presente na agenda dos estudos pós-modernistas, assenta a sua lupa em qualquer lugar do mundo devido aos processos de desterritorialização que os movimentos populacionais e das diásporas produzem, constituindo um instrumento de análise para se perceber a articulação entre diferenças e semelhanças, rupturas, deslocações e reinvenções, num quadro onde coexistem múltiplas lógicas de percepção e de interpretação. Neste sentido, pode ser entendido como parte de um vocabulário que abrange todo o século XX e se emancipa no século XXI ajudando a revelar a face humana da globalização.

Deste modo, são múltiplas as acepções que passam pela sua caracterização como um discurso que viaja nas novas condições globais capaz de pressionar trajectórias e fluxos das populações, como uma causa para renovar e reinventar a tradição e deslocá-la para uma nova realidade, contribuindo deste modo para a formação de novas identidades, onde as inovações da linguagem e dos modos de vida estão associadas à vasta amplitude do fenómeno social e cultural que envolve misturas e hibridização, ou seja mestiçagens.

Por outro lado, a perspectiva da antropologia transnacional, tem proporcionado a valoração dos estudos de interconexões culturais no espaço e no tempo, bem como a actual reorganização da diversidade cultural no mundo. A noção de fluxo cultural sugere a utilização desta formula como metáfora cultural, podendo ser observado como gerador de infinitas deslocações no tempo e da alteração do seu espaço de acolhimento.

Neste pressuposto a identidade macaense é das mais ilustrativas deste fenómeno, dado que, toda ela se formula e se reformula entre um passado e um presente condicionado a adaptações circunstanciais como, simultaneamente, se desdobra em várias latitudes da sua diáspora. O tempo e o espaço são as grandes condicionantes do seu fluxo cultural.

Assim sendo, a questão do contacto cultural emergente da globalização, acresce ao hibridismo uma noção de mestiçagem ou de sincretismo, podendo admitir-se neste caso, que as estruturas das diferenças e desigualdades recriam a sua própria cultura. Neste ponto, interessa realçar o papel da dinâmica da mistura como catalisador de vitalidade e de criatividade das culturas mestiças.

Sem a pretensão de generalizar, podemos até admitir que em determinados períodos quase todas as culturas foram mestiças, umas mais do que outras, na medida em que os fluxos culturais se encontraram em determinadas condições para lhes conferir as diferenças históricas, ainda que elas possam ter sido derivadas de outras convergências. É por isso, que em algum momento da história, nós ou os nossos antepassados, podemos ter passado pela fórmula da mestiçagem, só que, não fomos envolvidos nesse processo eternamente, nem o fomos necessariamente no mesmo grau.

A actual dinâmica que Macau observa no seu período da pós transição, traz de novo o nosso olhar para um figurino que ilustra a face deste fenómeno na fórmula como Macau se reinventa no mundo global permitindo a assunção de culturas hibridas e de miscigenação que lhe vai conferindo um elevado grau de pluralidade e diversidade cultural.

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(o texto não segue o acordo ortográfico em vigor)

Carlos Piteira

Investigador do Instituto do Oriente

Docente do Instituto Superior de Ciências Socias e Politicas / Universidade de Lisb

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O Sopro de Pak Tai: O legítimo sonho de Leonardo

 

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“É preciso que alguém escreva sobre ele”, insistia Ermelinda Galamba de Oliveira, adida cultural da Embaixada Portuguesa em Pequim. Foi ela que me alertou para a existência de Leonardo Veiga, aliás Wei Nai, 52 anos, pianista de profissão, um luso-chinês em busca de nacionalidade, que uma simples assinatura de um pai que “nunca o reconheceu como filho” lhe podia garantir.

“Veio à embaixada por diversas vezes. A história da sua vida é simplesmente fascinante, embora esteja repleta de contornos dramáticos. Telefone-lhe quando puder”, acrescentaria a funcionária, enquanto me entregava um número de telefone.

Encontrava-me na capital chinesa de passagem, rumo à Mongólia, mas prometi-lhe que iria contactar Leonardo Veiga aquando do meu regresso, meses mais tarde.

Dito e feito. Vinte quatro horas foram suficientes para que Leonardo me pusesse ao corrente quanto à extraordinária história da sua vida. Da sua vida e a dos seus primogénitos, cujos contornos constituem vasta e valiosa matéria que abordarei em futuras crónicas.

Leonardo Veiga veio buscar-me ao hotel no seu Volkswagen Santana numa manhã em que um súbito nevão causara o caos no já de si diabólico tráfego da capital chinesa. Apesar de se exprimir em bom inglês, Leonardo fez questão que fôssemos a casa do seu amigo Peter, um engenheiro inglês que dominava perfeitamente o mandarim e era casado com uma chinesa. Peter residia, à semelhança de tantos outros expatriados, num dos anexos do histórico e aprazível Friendship Hotel, marco de referência na cidade.

O luso-chinês não queria que perdesse uma única pitada do que me tinha para me contar. E foi mesmo ali, no interior do carro, enquanto aguardávamos uma maior fluidez no trânsito, que me confessou o porquê da sua vontade em obter a nacionalidade portuguesa. Não, não era por um motivo meramente material: sair do país, buscar emprego mais bem remunerado, poder viajar… Até porque a sua situação económica parecia ser bastante confortável. Leonardo Veiga possuía automóvel, telefone portátil e um cargo de chefia na Academia de Dança.

As suas repetidas deslocações à embaixada portuguesa em Pequim, que duravam há já vários anos, tinham-se mostrado infrutíferas. Afinal, Leonardo pugnava apenas por um direito seu! A primeira vez que aí se deslocou coincidiu, curiosamente, com os incidentes de Tiananmen. “Os funcionários pediam-me sempre um novo papel, e quando o levava exigiam-me um outro papel, e por aí em adiante”. Ele era fotocópias do bilhete de identidade, da certidão de nascimento, da certidão de casamento, etc. E, no topo de tudo aquilo, “nunca me respondiam às cartas que enviava”.

Ao cabo de três anos de pacientes insistências, acabaram por lhe atirar à cara um categórico não. Apenas lhe concederiam a nacionalidade se lhes apresentasse o certificado de casamento dos pais. É claro que não o tinha, nem o iria conseguir em parte alguma, pois os pais casaram, “ainda antes da Segunda Grande Guerra”, numa pequena igreja de Kunming, “um pouco à socapa”.

Aquando do nosso encontro – apesar do pessoal da embaixada ser bem mais cooperante e poder contar com a solidariedade da Ermelinda Galamba de Oliveira – Leo, como gostava que o chamássemos, continuava a precisar de documentos. “Desta feita, necessito de um papel assinado pelo meu pai em que ele afirme que sou seu filho”. Mas o pai, José Veiga, macaense, então a residir nos Estados Unidos, recusava fazê-lo, alegando que estava muito velho para se deslocar à embaixada portuguesa e tratar aí de todos os requisitos. “Sinto que o meu pai não gosta de mim”, desabafava Leonardo. Factor explicador dessa relutância, certamente não era alheia a influência exercida sobre o pai por parte dos seus três meios irmãos, filhos de um terceiro casamento de José Veiga, que possivelmente receavam o “extravio” da herança paterna.

“Anseio obter a nacionalidade portuguesa pois quero dar um filho à minha jovem mulher que muito amo”, explicava Leonardo. Essa, a razão da sua inglória luta contra as burocracias de um Estado que tem por hábito esquecer os seus. A sua condição de cidadão chinês, obrigado a seguir a política de um filho único, não lhe dava esse direito, pois tivera já uma criança de um casamento anterior. Leonardo dizia aquilo com ar triste. Aliás, Leonardo exibia sempre um ar triste, uma melancolia que só podia ter origem na sua costela lusa e que ele expressava quando conversava ou quando interpretava ao piano o seu trecho favorito de Sebastian Bach. Depois de feita a confissão, e para aligeirar a conversa, referiu os problemas de comutação na capital chinesa. “Nem imagina as horas que passo para me deslocar diariamente para o trabalho”. Embora fosse domingo, a neve tornava o tráfego tão dantesco como aos dias de semana. Na manhã seguinte, segunda-feira, Leonardo regressaria à embaixada, uma vez mais, para uma nova tentativa.

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Joaquim Magalhães de Castro, escritor e investigador da expansão portuguesa. Escreve neste espaço às quartas-feiras.

 

 

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Estrangeira, eu?

 “E qual é a complicação disso?

Se eu dissesse que a fronteira é aqui (com o braço, faz um risco no ar),

agora eu estava num país, (dá um passo para o outro lado desse risco invisível),

agora estava noutro país. Só assim.

Qual é a complicação disto? (Saltitando de um lado para o outro:)

Agora estou num país, agora estou noutro; agora estou num,

agora estou noutro.

Só existe complicação para quem gosta de complicar.”

(In: Estrangeiras, de José Luís Peixoto)

 

lusofonia

 

Acabou de sair do forno o livro “Estrangeiras, de José Luís Peixoto, que chega ao público ao mesmo tempo em que o texto é encenado no Teatro Rivoli, na cidade do Porto, pelas atrizes Francisca Lima, Janaína Alves e Sílvia Lima, com direção de  João Branco.

 

A peça mostra o encontro entre três mulheres que, unidas pela adversidade de terem sido “barradas” numa fronteira, desencontram-se na língua que, paradoxalmente, deveria ser-lhes um fator de  identidade. Com a certeza de que sozinhas caminham contra o vento, vencem a barreira da língua (língua?) e aconchegam-se no mais que humano que existe em nós.  Embora lusófonas, as personagens conciliam-se a despeito disso. Explico por que, ou melhor, explica João Branco, com o texto “O que é isto da lusofonia?”, posfácio do livro de Peixoto, em que reflete sobre a condição do lusófono, “que se sustenta numa língua que é comum, mas só nas aparências. Um espaço geográfico que trapassa todos os continentes e onde o desconhecimento mútuo é regra.”

 

Nestes 20 anos da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), entre várias tentativas de aproximação, não me parece ter havido grandes ganhos objetivos relativamente à vida das pessoas, cidadãos nacionais do Brasil, Portugal e dos Cinco (expressão de Mário Pinto de Andrade, resgatada por Inocência Mata, para referir-se aos países africanos que sofreram a colonização portuguesa: Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe). Embora haja um balcão indicado para portadores de passaportes de países da CPLP nalguns aeroportos, nunca vi serem utilizadas tais portas preferenciais na passagem das fronteiras, mas estão lá, como numa metáfora de que a Comunidade só existe no papel, uma placa que sugere uma desconfiança discreta, mas pungente, de que o “outro”, ainda que fale a “minha” língua, deva ser tratado como um estrangeiro absoluto, tal qual Meursault, o sociopata absurdo criado por Camus.

 

O livro de José Luís Peixoto renovou em mim um não sei quê de estrangeira, uma lembrança de que não sou daqui (alguém o será?), ou melhor seria dizer uma sensação de que não sou do agora, como Caetano Veloso nos lembra em voz suave e acutilante: “E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento, sigo mais sozinho caminhando contra o vento”.

 

Sendo brasileira, tendo vivido em Cabo Verde e residente em Portugal, compreendo de modo paradoxal a experiência da tal condição do lusófono. Sinto-me, não raras vezes, como cidadã lusófona, não tendo vivido grandes dificuldades no que diz respeito à expressão linguística e também cultural, é verdade. Marca-me o meu DNA (ou ADN?!) meu jeito mineiro de ser, com meus uais e ôces de permeio, mas também posso papiar krioulo na minha toada portuguesa, entre um pá e outro, pá!  Para a minha mãe, às vezes soa esquisito o meu falar.  Certamente já tenho alguns hábitos portugueses que podem ser estranhos aos meus mais-velhos, mas isso penso deva ser encarado como mais um elemento a compor-me, a criar-me a fazer-me plural. Guimarães Rosa, na sua obra-prima, “Grande sertão: veredas”, escreve: “O importante e bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando. Afinam  e desafinam.”  E assim, entre um acorde e outro, vamos sendo muitos, múltiplos, compósitos, daí ser incoerente com a nossa própria natureza a segregação da fronteira, a paranoia de diferenciar o daqui  do de acolá, a tentação dos brexits, a hipocrisia da crença na livre circulação de bens, mas não de pessoas. Quando vejo o quão cansativo é para o cidadão cabo-verdiano adquirir um visto para entrada no Brasil, ou alguma desconfiança em relação ao meu diploma brasileiro que deve ser “validado” para que eu possa cursar uma pós-graduação em faculdade portuguesa, o meu lusotimismo fica um tanto abalado.

 

Abala, mas não cai, pois, ainda que com tropeços e atropelos, veem-se novas tentativas de convergências, como o Novo Acordo Ortográfico, mas isso já é discussão para outra cró(ô)nica, por ora proponho para reflexão mais um trecho da peça Estrangeiras: “Estava pensando que a gente veio de lugares diferentes, cada uma de seu lugar, mas chegámos aqui. Talvez lá, já estivéssemos no mesmo lugar porque já estava certo que havíamos de chegar aqui, ao mesmo lugar, à mesma situação. Estamos na mesma situação. Somos iguais. Somos a mesma coisa.”

Márcia Souto

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O Sopro de Pak Tai:Sacramento versus Nome de Deus

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Dado que vivo há muitos anos em Macau, estabeleço de imediato paralelos entre os sítios que visito e o ex-enclave ultramarino. A cidade histórica uruguaia de Colónia de Sacramento, por exemplo, está para Buenos Aires como Macau está para Hong Kong, de onde, durante décadas, provinha o grosso do contingente turístico. Há ainda a cor da água, barrenta, lá como cá. Estamos, pode dizer-se, numa espécie de foz onde as águas dos rios Paraná e Uruguai se misturam; no Extremo Oriente é o rio das Pérolas que se espalha num delta. Depois, há a presença de casinos em ambas as cidades, com as devidas e astronómicas diferenças em termos de mesas de jogo e número de apostadores.  Em Macau, mais propriamente na ilha da Taipa, há cantinhos preservados com casas de estilo colonial à sombra de figueiras-da-Índia que lembram a atmosfera pacata de Colónia de Sacramento. Uma similaridade que se acentua se a tudo isto associarmos o calor e a extrema humidade.

É aí que encontro Walter Debenedetti, um arquitecto ao serviço do Turismo local.

— A principal característica de Colónia — diz ele — é o seu traçado urbano, que gosto de definir como um estilo inventado por portugueses que claramente não eram urbanistas, mas sim navegantes e soldados. Todas as ruas e praças foram de tal forma idealizadas que acabam por funcionar como cata-ventos, permitindo ao mesmo tempo uma boa defesa do local. Existiam claramente duas preocupações: proteger o local das intempéries e do inimigo. É isso que dá um encanto especial a Colónia e faz dela um caso atípico em toda a região.

Não existe propriamente uma comunidade luso-descendente em Colónia, antes uma «sensação de pertença a Portugal» da parte dos seus habitantes, que é muito forte. A maioria dos portugueses abandonou a cidade após a definitiva ocupação espanhola, e a imigração portuguesa posterior data do início do século XX e radicar-se-ia sobretudo em Montevideu, contando entre eles com pessoas com um passado ligado às partes orientais do império.

Debenedetti diz ter ouvido falar de uma tal família Sobral, com “uma remota (e suposta) ligação a Macau”, mas nada de mais específico a esse respeito me pode adiantar.

— Todos nos sentimos de origem portuguesa, apesar de falarmos castelhano — assegura o arquitecto, que entende isso como «uma marca indelével que se impregnou na cidade».

— Quando vou a Portugal — continua — é como se estivesse em casa. Chego à conclusão de que temos os mesmos costumes, tradições similares, a mesma forma de apreciar a comida, de nos relacionarmos uns com os outros, de nos reunirmos com os nossos amigos. Enfim, somos muito parecidos.

Fomos comer ao restaurante Casa Grande, que fica paredes meias com um outro edifício histórico de matriz portuguesa, conhecido como Casa dos Palácios, onde funciona o Arquivo Regional. Aqui se guarda importante documentação da cidade e da região de Colónia obtida essencialmente nos arquivos em Portugal e Espanha, mas também de Inglaterra, França, Brasil, Argentina e Uruguai.

O edifício foi recuperado graças aos esforços e engenho de Miguel Angel Odriozola, «ideólogo do conservacionismo», referência maior da arquitectura no Uruguai.

Em 1935, quando tinha apenas 15 anos, Odriozola, filho de Colónia de Sacramento, fez uma maqueta da cidade. E que maqueta! Impressionante o detalhe, o rigor, coisas nada comuns num adolescente.

Odriozola dedicaria a sua vida a cuidar do património, reconstruindo o que podia e devia ser reconstruído. Recuperou várias das casas históricas, agora transformadas em museus ou unidades hoteleiras, como é o caso de um outro badalado hotel de charme, a Posada del Gobernador.

Escreveu um dia o arquitecto que «os materiais de construção contam-nos a sua própria história», o que é o mesmo que dizer que a intervenção deve ser mínima. Infelizmente, não é essa a tendência geral entre os representantes dessa classe. Quantos e quantos arquitectos egocêntricos consideram fundamental deixar no objecto da intervenção o seu cunho pessoal, provocando assim a descaracterização, e até a ruína, de uma vasta quantidade de bonitos monumentos por esse mundo fora.

Colónia de Sacramento manteve, ao longo dos tempos, a autenticidade dos edifícios representativos de cada uma das épocas que marcaram a sua história, o que lhe confere um perfil único, de cidade com «uma escala graciosa e muito humana», como ouço comentar um visitante que se cruza connosco.

É reconfortante saber que a Fundação Calouste Gulbenkian está a financiar as escavações arqueológicas no terreno do Bastião de San Pedro, um terreiro vazio assinalado por uma âncora e um mastro branco onde não esvoaça qualquer bandeira. É bem visível o aproveitamento da rocha natural como base onde foi feito o assentamento da muralha do lado ribeirinho.

Sabe-se que existia no local um moinho e uma capela dedicada a São Pedro de Alcântara, ambos da fase inicial da construção da cidade, como o comprova a cartografia da época.

— Aguardamos que cheguem técnicos de Portugal — exclama o arquitecto.

O centro histórico de Colónia de Sacramento é pequeno, muito pequeno. E a visita que Walter Debenedetti me proporciona abarca-o na sua totalidade. Terei tempo de o revisitar, seguindo desta feita o meu instinto, agora que a lição inicial está dada.

Joaquim Magalhães de Castro, escritor e investigador da expansão portuguesa, escreve neste espaço às quartas-feiras.

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O OUVIDOR OCIDENTAL: A ditadura da velocidade

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Vivemos num mundo rápido e voraz. A velocidade que foi celebrada pelo poeta Marinetti e pelos futuristas quando o mundo vivia a globalização de antes da Primeira Guerra Mundial (“Nós afirmamos que a magnificência do mundo enriqueceu-se de uma beleza nova: a beleza da velocidade.”) transformou-se numa ditadura com a tecnologia que permitiu a mundialização financeira das últimas décadas e transformação do mundo do trabalho. Agora que a robotização vai destruir muito do trabalho barato (especialmente no Sudoeste asiático), fica-se com a noção de que todos os valores estão trocados. E que o homem ficou refém de algo que destruiu o precário equilíbrio da sua relação com a natureza. O historiador Ivan Illich alertava-nos, há algumas décadas, para a noção de que as máquinas iriam fazer o trabalho por nós sem se cair no efeito perverso que era tornar-nos todos escravos dessas tecnologias. Olha-se à volta e percebemos hoje o que queria dizer. Os seres humanos parecem hoje exaustos na sua corrida vertiginosa contra o tempo, como se 24 horas não chegassem, todos os dias, para fazerem o que era necessário. Ou obrigatório. No meio desta parafernália veloz já nos esquecemos da paz, dos momentos de observação, reflexão e aprendizagem, do convívio com os outros. Curiosamente nunca os homens (e mulheres) se acharam tão livres como agora: com os seus telemóveis e i-Pads, ligados universalmente pela Internet, supõem controlar o tempo.

Puro engano. Esta duvidosa modernidade, verdadeiro labirinto onde nos perdemos, transformou os fins em meios. Tudo se tornou num desafio técnico (como estar sempre conectado, a trabalhar; como criar o smartphone perfeito, como responder a todos os mails a qualquer hora do dia ou da noite). Isso deveria levar-nos a questionar os fins que julgamos perseguir: quem somos nós, como deveríamos ter uma vida agradável e feliz em termos individuais e colectivos, como deveríamos gerir o tempo de que dispomos). Entrámos numa espiral destrutiva: já não há espaço de trabalho diferenciado do de lazer. Se repararmos bem o capitalismo atingiu o seu zénite: trabalhamos a qualquer hora, sempre conectados. Julgamos ter a liberdade de movimentos e de comunicação mas, na verdade, somos servos da gleba dessa ficção. Tudo ao mesmo tempo. Corremos para lado nenhum, como na canção dos Talking Heads: “Road to Nowhere”. Já não temos tempo para contemplar o ciclo das estações, ler um livro com calma, olhar para as árvores a mover-se ao sabor do vento). Exploramo-nos a nós mesmo, como dizia Byung-Chui Han: “Assim, acabamos explorando-nos a nós mesmos”. Libertamos dos contratos de trabalho com as empresas para sermos livres, mas também com isso ficamos dependentes de jornadas de trabalho que não terminam nunca. Num mundo em que nos tornámos sobretudo consumidores, numa lógica de acumulação sem sentido. Os povos orientais costumam dizer que o dinheiro é como a água: cresce quando flui. No Ocidente acumula-se, no Oriente durante muito tempo praticou-se a frugalidade. A chamada globalização veio trocar muitos dos valores que diferenciavam os povos de longitudes diferentes, mas ninguém duvida que esta supremacia tecnológica que amarrou a vida dos seres humanos aos seus desígnios irá pagar-se caro. Henry David Thoreau, cujas observações resistiram à inclemência do tempo, escreveu em “A Vida sem Princípios”, que: “Se um homem passear nos bosques por amor a estes durante metade de cada dia, arrisca-se a que o vejam como um mandrião; mas se passar todo o dia em actividades especulativas, arrasando as florestas para tornar a terra nua antes de tempo, será considerado um cidadão diligente e empreendedor. Como se o único interesse de uma cidade tivesse nos seus bosques fosse cortá-los”. Todas as prioridades foram trocadas. E hoje, livres na nossa dependência da Internet e dos smartphones, tornamo-nos escravos durante 24 horas por dia de algo a que outrora chamámos “vida”.

 

Fernando Sobral é escritor e jornalista. Escreveu “O Segredo do Hidroavião” e  “As Jóias de Goa”.

 

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Caducidade das concessões ou “esbulho sofisticado”

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O estado de direito é um princípio fundamental que protege os cidadãos do arbítrio do poder político e assim gerador do necessário ambiente de confiança ao desenvolvimento e crescimento de uma comunidade, tendo sido o respeito por este princípio um dos pilares em que assentou a criação da Região Especial Administrativa de Macau, e que conhece a sua expressão máxima na Lei Básica.

Macau tornou-se assim o epítome do sucesso de uma parceria entre o Governo e os particulares, corolário das boas condições de vida da população local, infraestruturas adequadas e charme turístico. É um êxito imputável aos cidadãos e aos investidores (internos e externos) que acreditaram que era possível projectar uma pequena região autónoma para os palcos mundiais.

Lamentavelmente, o estado de direito que sempre constituiu o suporte em que assenta a grandeza de Macau, vê-se agora espezinhado por quem deveria na verdade ser o seu maior guardião. Tal está a suceder relativamente à interpretação da nova lei de terras no âmbito da renovação das concessões de terreno provisórias (e consequente reversão).

Importa então compreender o que está em causa, recuando à altura em que o Governo atribuiu (a troco de uma contrapartida financeira) diversas concessões de terrenos a privados para promover o desenvolvimento da região. Apesar do contrato de concessão prever especificamente o tipo e algumas das características do empreendimento que aí seria desenvolvido, o concessionário do terreno está numa situação de dependência absoluta das diversas autorizações necessárias para realizar a construção e que efectivamente vinham sendo conferidas pelo Governo.

Sucede que, a dada altura, o Governo, jamais pondo em causa os projectos de construção oportunamente aprovados, suspende a emissão de autorizações e / ou impede a continuação das obras que estavam a decorrer, com base na sua vontade (unilateral) de rever o plano urbanístico ou, noutros casos, fazendo inúmeras exigências a nível do projecto de obra, que se impunham alegadamente atendendo à evolução da região.

Só assim se compreende que em 2011, o Governo, após uma profunda análise de 113 lotes de terrenos que não tinham sido ainda aproveitados no período acordado contratualmente, tenha identificado 65 lotes de terreno cuja falta de aproveitamento não era imputável aos concessionários. Assumiu-se que o dispêndio de consideráveis recursos públicos nesse relatório serviria algum propósito, nomeadamente a salvaguarda dos legítimos direitos desses concessionários que não tinham qualquer culpa pelo não aproveitamento dos respectivos terrenos.

No entanto, o Governo propõe em 2013 uma nova lei de terras (subsquentemente aprovada pela Assembleia Legislativa) que determina a não renovação das concessões, findo o respectivo prazo, se os respectivos terrenos concedidos não tivessem sido aproveitados (art. 48.º da Lei n.º 10/2013). A consequente reversão é legalmente designada por “declaração de caducidade”, sendo que se deveria, na verdade, qualificar, nos casos em que o concessionário não tem culpa pelo não aproveitamento, como um “confisco”.

Na verdade, embora não seja concebível que o Governo tenha querido tratar de forma igual situações tão díspares, como os casos de inércia do concessionário por oposição ao casos em que o não aproveitamento não era imputável ao concessionário, o certo é que a redacção da nova lei não faz explicitamente a necessária distinção. Pelo que impõe-se assim a necessidade de fazer um ajuste da nova lei de terras para colocá-la em conformidade com a Lei Básica e consistente com os direitos e expectativas legítimas dos particulares.

Esse papel de remediar a situação cabe ao Governo, dando assim cumprimento ao compromisso que o seu responsável máximo assumiu publicamente ao referir que iria encontrar uma solução para o problema. Felizmente que essas soluções existem, só tem faltado vontade de as implementar, por quem tem a competência e o dever de o fazer, tanto mais que tem conhecimento dos gravíssimos custos e consequências da situação a que imprudentemente se deu azo. É um equívoco pensar que a resposta passa pelos Tribunais, cuja função é aplicar as leis, boas ou más, em vigor.

Que não hajam ilusões, o problema decorrente da nova lei não afecta apenas os concessionários dos terrenos, mas toda a comunidade, desde as pequenas e médias empresas de Macau que estariam envolvidas no desenvolvimento do empreendimento, os bancos que para esse efeito emprestaram os fundos dos seus depositantes, os postos de trabalhos que se perdem em detrimento da população local e os direitos que os promitentes-compradores legalmente adquiriram relativamente às fracções projectadas.

Dito isto, o golpe mais profundo desta actuação é ao nível da confiança e na imagem da RAEM, sendo exemplo paradigmático a situação dos terrenos da Baía da Praia Grande, legitimamente se questionando quem voltará a olhar além dos muitos outros “lodaçais” de Macau para investir tempo e dinheiro em benefício próprio e de toda a sociedade.

Em suma, é a sobrevivência de todo um sistema que está em risco a partir do momento em que se começa a pôr em causa o reduto último dos legítimos direitos das pessoas, vertidos na Lei Básica, fazendo desabar as fundações em que se alicerça a existência e desenvolvimento de uma sociedade, dando-se um perigoso passo em direcção ao abismo da arbitrariedade.

É este o futuro que queremos para Macau ?

 

MA Advogados e Notários

 

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O Sopro de Pak Tai: Os olhos asiáticos de Baruc

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O morro do Arraial de Congonhas, mais propriamente o conjunto arquitectónico e paisagístico do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, o sector que me interessa visitar na incaracterística cidade de Congonhas do Campo, no estado brasileiro de Minas Gerais, é pequeno mas tem uma energia muito intensa. Confesso que me surpreende o que vejo cá em cima. Aparentemente, nada de especial: tão-só um hotel e duas dezenas de casas (as poucas que têm as portas abertas vendem artesanato), intervaladas com um jardim e algumas palmeiras, como se de um qualquer outro arraial de garimpeiros se tratasse. O declive acentuado no terreno dominado pelo santuário que lhe dá reputação internacional e pelo qual se alinham doze capelinhas da via-sacra de forma quadrangular e tectos ovais confere ao local um encanto e uma magia muito próprios. Contribuem para essa atmosfera, e muito, as enigmáticas estátuas de pedra-sabão distribuídas pelo adro da igreja. Parecem estar vivas, fazendo companhia ou dando conselhos às pessoas que por ali circulam.

Para ganhar tempo, junto-me a uns turistas que atentamente escutam um guia de camisola amarela contratado pela Auxílio Pedagógico & Excursões. Graças a ele fico a saber que a fundação do santuário se deve a um tal Feliciano Mendes, que encomendou a obra depois de ter considerado que só um milagre do divino o poderia ter curado de uma doença de que padecia. Porém, não bastava querer para poder edificar templos no Brasil dessa época; era necessária autorização eclesiástica, que lhe seria concedida em 1757. Seriam necessários mais catorze anos para dar por finda a conclusão dos trabalhos.

Tudo aqui transparece a vida e a obra de António Francisco Lisboa, nascido em 1738, em Vila Rica de Ouro Preto, filho do mestre escultor e construtor Manuel Francisco Lisboa. A deficiência física que o marcou à nascença foi insuficiente para impedir que depositasse todo o seu talento na arte de esculpir, à qual imprimiria o maior rigor, cumprindo as empreitadas em tempo recorde.

Em 1780 deu-se início às obras de arranjo da colina onde está implantado o santuário, tendo em vista a construção de capelas para albergar uma das mais importantes encomendas feitas ao Aleijadinho: uma série de conjuntos escultóricos representativos das cenas do calvário de Jesus Cristo — os Passos da Paixão de Cristo, como se diz no Brasil. Mas as capelas só seriam construídas alguns anos depois de este «animador de estátuas» — assim o podemos chamar — ter notado o pedido. Primeiro aprontaram-se as estátuas, as capelas viriam depois, entre 1802 e 1813.

Depois de esculpidas as obras de arte, Francisco Xavier Carneiro, um colaborador do Aleijadinho, pintou-as com cores vivas, podendo nós hoje apreciá-las olhando por entre as frinchas de madeira rendilhada de cor azul.

Em 1800, o artista seria de novo solicitado pelos responsáveis pelo santuário, desta feita para esculpir, em pedra-sabão, bem mais maleável do que qualquer outro calhau, e muito abundante na região, as estátuas dos doze profetas, cujos nomes nem sempre nos são familiares. Daniel, Isaías, Jeremias, Ezequiel, Jonas ou até Joel são nomes que bem conhecemos. Mas quem ouviu falar de Oseias, Baruc, Amós, Abdias, Naum ou Habacuc?

Em apenas cinco anos, todas estas estátuas, com olhos amendoados a lembrarem personagens asiáticas (clara influência chinesa, que no Brasil daquela época se manifestou em diversas áreas da actividade artística), segurando pergaminhos com textos alusivos em latim, certamente inspiradas em gravuras italianas da época, estavam prontas e seriam colocadas numa plataforma em frente ao adro do santuário para poderem ser apreciadas devidamente pelas gerações vindouras.

O local é permanentemente vigiado por um guarda que não deixa que as pessoas se encavalitem nas estátuas, para se fazerem fotografar, ou, pior do que isso, lhes façam baixos-relevos de péssimo gosto. A tentação é grande e as obras de arte mostram já sinais da incúria do passado: há partes quebradas e alguns nomes, datas e promessas de amor gravados nas respectivas bases.

No interior da igreja, à semelhança das congéneres de Ouro Preto, existem admiráveis retábulos de talha, pinturas setecentistas e diversa estatuária dos mestres mineiros Jerónimo Félix Teixeira e Manuel da Costa Ataíde, ambos companheiros de lides do Aleijadinho. O portal do santuário, de pedra-sabão, é um elaborado conjunto escultórico de estilo rococó, ao género das igrejas de Minas Gerais.

Nas lojas de artesanato não faltam namoradeiras (bonecas que se expõem à janela, imagem de marca do turismo mineiro), panelas de pedra, «preços de fábrica em panelas de pedra-sabão a partir de doze reais», e colecções dos doze profetas em pedra-sabão, mas em miniatura.

Nalguns desses estabelecimentos grava-se e pinta-se na hora, em pedra e madeira, tudo o que o cliente desejar, e está assegurada a «fabricação própria de mensageiros do vento» e a venda de relógios e diversa bijutaria, «por atacado e varejo». Uma loja, mais original, lança um apelo: «Venha conhecer o retrato do Aleijadinho. O génio mestiço, o artista mineiro: António F. Lisboa.»

Também em Congonhas, à semelhança do que acontece nos valiosíssimos sítios hisóricos de Minas Gerais, não se avista um único visitante estrangeiro, apesar do título “Património da Humanidade” que esse mágico recanto merecidamente possui.

Joaquim Magalhães de Castro. Escritor e investigador da expansão portuguesa. Escreve neste espaço às quartas-feiras.

IIM LOGOTIPO - 2015 (17)

 

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