Maria Caetano
Assistimos diariamente, em Hong Kong, à prática da política Um País, Dois Sistemas, tal como ela é, informada por quem dela participa. Mais do que o manual de utilização da Lei Básica editado há pouco pelo Governo Central – e, ao conhecimento do leitor, com leitura em português, embora claramente direccionada ao ‘mercado’ da região vizinha – as última semanas reflectem o essencial do que há a perceber: uma Administração especial da China está, desde sempre, predestinada a falhar.
C.Y. Leung quererá, no seu íntimo, demitir-se, tal como exigem as vozes dos manifestantes nas ruas. Não admira. Cabe-lhe fazer o impossível: alinhar os astros e as disposições para que a população que administra se convença que, efectivamente, governa a cidade – tal como faz pressupor a Lei Básica –, e suceder em manobra tal que o Conselho de Estado, o partido e os seus satélites saiam rigorosamente tranquilizados de que são eles que, efectivamente, governam a cidade – tal como faz pressupor a Lei Básica. A Lei Básica, esse objecto de culto clássico, está para os nossos amplos desígnios como a primeira matéria elástica. A sua aparência estática deve fazer-nos desconfiar.
Cometida a suprema das heresias de questionar, de uma assentada, Lei Básica e princípio Um País, Dois Sistemas – Deng Xiaoping terá mais do que fazer do que inquietar-se na eternidade com o assunto –, venho aqui manifestar o princípio da desobediência pessoal e civil a qualquer tipo de ideia mal explicada. É que, todos o dizem, afinal a natureza do sacrossanto princípio que salvaguarda a soberania nacional e as autonomias é coisa para primeiras, segundas, terceiras e incontáveis interpretações. A questão será a de saber qual delas a mais legítima? Ou, com os tempos, a mais justa e mais adequada ao presente? Ou mesmo, vejamos, a mais adequada às aspirações do povo (ah, cidadãos)?
Como em muitos casos de emergência, não basta quebrar o vidro, socorramo-nos com a etimologia – coisa útil e intuitiva da era pré-acordo ortográfico. Pois, constituir é tarefa complexa e moderna. Exige da parte de todos nós, primeiro, um sentido de comunhão e participação. Em segundo lugar, exige do Estado, seus representantes, o reconhecimento da expressão da convicção de bem nacional comungado para que esta seja fixada em texto. E de todos exige o seu cumprimento.
Sabendo que não foi bem assim que nasceram as leis básicas das regiões administrativas especiais, tal como os bebés não vêem de Paris, isso não nos deve deter de pensar que ainda é assim que elas podem ser. Como nas línguas e todos os códigos, o significado é tão móvel quanto os seus utilizadores queiram que sejam, conquanto se entendam todos entre si – o que não vem para o caso, já que nos desentendemos todos.
O Governo Central vem pretender fixar os sentidos permitidos no caso de Hong Kong – Macau por arrasto – e a questão está em que, do lado de cá, e pelo menos na região vizinha, há vários milhares de pessoas na rua que não sabem do que está a falar. Ou se perdeu a chave do código, ou alguém mudou a fechadura. Para quem está hoje na rua, autonomia significa uma coisa outra do que Pequim pretende dizer, e sufrágio universal está longe do que o Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional pretende representar.
O engulho é que, aparentemente, a República Popular da China não terá avançado tão rapidamente nos desígnios constitucionais que pôs a ela própria e às regiões que estão sob o seu chapéu quanto seria de prever inicialmente, e, assim, surge uma operação de redução semântica com um novo caderno de significados. No Continente, o movimento pelo progresso constitucional nos significados inicialmente acordados – ou, quiçá, sonhados, já não sabemos – terminou amenamente com a detenção de Liu Xiaobo e outros signatários da Carta 08. Ganhou-se tempo para lá chegar, claro está.
E, deste lado, é possível que se trate de convencer multidões de que as suas expectativas estão mal fundamentadas e que Pequim nunca teve a intenção de criar falsas esperanças. Em Macau, a tarefa parece estar quase concluída.
Em Hong Kong, porém, poderá ser mais difícil. Os jovens que estão nas ruas não parecem ser grandes tributários da grande herança histórica da criativa fórmula Um País Dois Sistemas nem muito reverentes com uma dádiva formal de liberdades e garantias que não existem no contexto da China Continental. Esses são para eles pontos assumidos, perspectivados de um ponto de vista global e onde a ideia de participação e representação se naturalizou há muito tempo. Não há um agradecimento humilde pelos direitos que encontram uma origem natural e não no Estado – concepção última que é antes, muito e cada vez mais celebrada em Macau.
O princípio Um País, Dois Sistemas, perante a realidade, deixa de dever apenas à sua trademark. Sendo um original de Pequim, não deixa de ser de Hong Kong e de Macau – o que, por enquanto, não é o mesmo que dizer Pequim.