Verdificação – parte 2

[Olho mágico]

Eric Sautedé

A gravidade dos constrangimentos ambientais com a que a China se depara é por demais conhecida, tanto dentro como fora das fronteiras do país. A gestão dos desafios ambientais é uma questão extremamente sensível. O sucesso do documentário “Under the Dome”, realizado por Chai Qing e colocado na Internet aquando da última reunião da Assembleia Popular Nacional é disso exemplo. Por vezes intimista, o filme retrata em 103 aterradores minutos o problema da poluição atmosférica na China. Produzido por uma conhecida jornalista, que pagou o filme do seu próprio bolso, “Under the Dome” foi visualizado mais de cem milhões de vezes em menos de 48 horas, antes de ter sido removido do Youku. Com um estilo desinibido e frontal, enriquecido com estatísticas que fazem lembrar “Uma Verdade Inconveniente”, de Al Gore, o documentário dá voz a funcionários locais que se revelam impotentes para enfrentar os desafios que têm em mãos e que ilustram na perfeição a forma como o próprio primeiro-ministro Li Keqiang vê o problema da poluição: como “uma nódoa na vida das pessoas”.

Um estudo conduzido pelo Banco Mundial indica que, de uma forma geral, a degradação ambiental custa anualmente à China quase 10% do seu Produto Interno Bruto. Um outro estudo mais recente, encomendado à Universidade Tsinghua, concluiu que as partículas em suspensão foram responsáveis pela morte prematura de 670 mil pessoas apenas em 2012. Na China, a incidência de enfermidades como o cancro do pulmão, a doença coronária ou a doença crónica obstrutiva pulmonar está a aumentar e não é, por isso, de admirar que uma proposta de reforma dos “sistemas ecológicos” da China pontifique na primeira frase do abrangente plano de reforma dado a conhecer em 2013, durante o terceiro plenário. Num dos poucos estudos que olharam de forma precisa e compreensiva para o tecido com que se urdem as reformas apresentadas pela nova liderança da China, Daniel Rosen consegue demonstrar que as autoridades do Continente têm procurado materializar as medidas idealizadas ao colocar em marcha “campanhas populista contra entidades poluentes, promovendo uma reforma das políticas energéticas e uma revitalização da lei de protecção ambiental, ao mesmo tempo que procuram regulamentar formas de activismo”. No entanto, graças à imposição de uma maior transparência na gestão dos processos, a verdade é que a situação ter-se-á aparentemente agravado: as explorações de carvão continuam a operar e o desígnio da protecção do ambiente é relegado para segundo plano face à necessidade de garantir boas performances económicas, particularmente a nível local.

Desde o início do ano, a China está reforçada com um leque de leis e regulamentos que são tidos como sendo ao mesmo tempo extremamente progressivos e extremamente restritivos. Ainda assim, Bo Zhang e Cong Cao lembram-nos, na revista Nature, que a nova Lei de Protecção Ambiental pode facilmente ser debilitada por quatro lacunas significativas: pode, por um lado, ser empurrada para segundo plano por regulamentos específicos relacionadas com a agricultura, a silvicultura ou a gestão dos recursos hídricos. Por outro lado, pode ser fragilizada pela estrutura fragmentada e por vezes redundante dos próprios órgãos de administração ambiental ou ser prejudicada pelo simples facto dos cidadãos não terem consciência de que o direito a um ambiente saudável é um dos direitos que lhes são consignados. Por fim, uma lei só vale se for devidamente aplicada e a aplicação da lei pode facilmente ser contrariada pela “falta de capacidade para a aplicar ou por conflitos de interesses”. Em conclusão, os dois analistas argumentam que a lei, apesar de promissora, requer “mecanismos de implementação robustos, a criação de um regime de responsabilização e de soluções institucionais que facilitem a implementação da lei”. Ambos concordam com Alex Wang. O académico da Universidade da Califórnia defende que as políticas de protecção ambiental precisam de ser consideradas com “o nível de prioridade anteriormente reservado apenas para os mais importantes desígnios para o qual o estado está mandatado, como o crescimento económico, a estabilidade social ou política do filho único”. Será que o conceito de “verdificação” cunhado pelo Politburo se tornará uma prioridade?

Eric Sautedé é politólogo e escreve quinzenalmente nas páginas do PONTO FINAL.

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