Outras Luas

Em semana marcada pelas celebrações do Festival da Lua, trago-vos hoje um tópico ligado a outras luas e ao crescente aumento da sua relevância…

No trilho da água

Apesar de renovados esforços na exploração do nosso sistema solar, a Terra permanece, por enquanto, o único planeta que conhecemos com Vida. Durante muitos anos, o nosso planeta foi visto como tendo condições únicas e excepcionais, sem paralelo noutros pontos do sistema solar, e que seriam essenciais para o aparecimento e evolução da Vida. Um dos factores mais importantes seria a existência de água líquida em abundância. A vida, tal como a conhecemos, não existe sem acesso a água, pelo que vários investigadores defendem que para encontrarmos possível vida temos que seguir o seu trilho.

Esta necessidade vital, condicionaria assim a procura de vida apenas a certas partes do sistema solar. Em relação à capacidade de ter água no estado líquido, planetas demasiado próximos do Sol seriam demasiado quentes (e a água rapidamente iria evaporar), enquanto que aqueles que estavam muito afastados seriam demasiado frios (estando toda a água sob a forma de gelo). A Terra estaria à distância ideal, nem muito longe, nem muito perto, nem muito quente, nem muito fria. Esta zona intermédia, é também conhecida como zona “Goldilocks”, em homenagem à personagem do famoso conto infantil “Os três ursos”, creditado ao poeta inglês Robert Southey, e publicado em 1837.

Estudos aprofundados das luas de Saturno e Júpiter trouxeram-nos uma grande surpresa e uma pequena revolução nesta perspectiva. A enorme força do campo gravitacional destes planetas induz um efeito semelhante a marés de escala global, gerando fricção considerável que aquece o interior das luas e é responsável por sustentar um elevado nível de actividade interna. No caso de Io, isto traduz-se num intenso vulcanismo à base de enxofre, e constante renovação da superfície desta exuberante lua de Júpiter. Já no caso das luas geladas, o aumento de temperatura será responsável pela formação de extensos oceanos sob uma grande camada de gelo.

Europa, Encélado, e não só!

Os casos mais mediáticos são os de Europa (lua de Júpiter) e Encélado (lua de Saturno), visto que ambas são aparentemente dotadas de oceanos com uma escala global.

Europa, é pouco menor que a nossa lua, mas tem um volume de água líquida estimado cerca de duas vezes superior ao do nosso planeta. A superfície gelada de Europa não é homogénea, tendo vastas extensões brancas (compostas por gelo de água), interrompidos por estrias e rachas recorrentes que contêm depósitos de sais que lhes acabam por conferir uma cor mais acastanhada.

Apesar de dever o seu nome a um gigante da mitologia grega, Encélado é bem menor que Europa (tem apenas 1/7 da dimensão da nossa lua). No entanto, esta lua compensa claramente com a sua inesperada exuberância. Encélado tem em várias faixas, no seu polo sul, proeminentes geisers gigantescos ou plumas que projectam água do seu oceano para o espaço. Parte deste material é incorporado num dos anéis de Saturno, sendo que Encélado é o principal contribuinte para o anel E, onde esta lua orbita. Recentemente foram identificadas também potenciais plumas em Europa.

Em relação às condições existentes nos oceanos destas luas, subsistem ainda muitas incógnitas… Pontos assentes são a existência de sais, pressões e profundidades consideráveis (que poderão exceder os 25 km), e actividade hidrotermal em algumas regiões dos seus fundos marinhos, associado a temperaturas mais elevadas (que poderão ultrapassar os 90°C). Espera-se que futuras missões nos consigam trazer mais informações sobre a química destes oceanos, bem como informações adicionais sobre a possível existência de Vida.

A componente oceânica destas luas é tão importante, e tão pronunciada, que levou à criação do termo mundos oceânicos, para os agrupar. Para além de Europa e Encélado temos um número cada vez maior de corpos com água líquida, espalhados por diferentes partes do sistema solar: Júpiter (as luas Ganimedes e Calisto), Saturno (as luas Titã, Dione, e Mimas), Neptuno (a lua Tritão), ou até os planetas-anões Plutão e Ceres. Como vemos, a Terra perde assim quaisquer pretensões a um estatuto especial como único ponto do sistema solar com água.

O próximo grande passo

Marte está certamente no centro das atenções sob o ponto de vista de missões actuais, bem como de planos de recolha de amostras e procura de indícios da existência de vida passada ou presente. No entanto, é igualmente claro que os próximos grandes passos da exploração espacial e da Astrobiologia serão dados nestas luas geladas do sistema solar e nos seus oceanos.

A confirmar esta nova aposta está a missão JUICE (Jupiter Icy Moon Explorer), a ser lançada em 2022 pela ESA, e a missão “Europa Clipper”, a ser lançada em 2024 pela NASA. A China também está empenhada na exploração de Júpiter e Saturno e das suas luas, pelo que se esperam para breve mais informações sobre a sua missão “Gan De”. Com lançamento previsto para 2029, sabe-se que poderá incluir uma possível primeira alunagem numa destas luas geladas.

André Antunes
Cientista

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Cronómetro

Estou em movimento, avanço da maneira que o corpo me permite, condicionado pela forma das articulações, pela força dos músculos, pela elasticidade de tendões. Sou uma máquina orgânica, imperfeita como todas as máquinas. Existo de acordo com esse funcionamento, dependo dele no movimento que exerço agora e, também, a um nível mais amplo e absoluto, dependo dele para estar nos lugares onde estou.

E levo no pulso uma máquina que, como a natureza, como eu próprio, tenta medir o que sou. É uma máquina que me informa sobre mim e, ao fazê-lo, me informa sobre o mundo. Através de números, não me fala apenas acerca do seu funcionamento, fala-me também acerca da sua essência.

Enquanto corro, os segundos substituem-se uns aos outros no meu pulso. Os minutos aguentam mais tempo, permanecem imutáveis, arrogantes durante sessenta segundos e, depois, na viragem de algo, desaparecem; também são substituídos, dão lugar a outro minuto, com igual soberba e igual solidez aparente. Diante de mim, os meus pés alternam-se, o direito ultrapassa-me e puxa-me, o esquerdo ultrapassa-me e puxa-me. São passos que, um a um, possuem o seu instante próprio. Pertence-lhes. Dentro do peito, no centro, levo o coração a bater, cada batida é absolutamente necessária para a construção deste ritmo. Eu sei que essas batidas dão origem a um fluxo de sangue que me atravessa em todas as direções, eu sei que levo tudo isso debaixo da pele. Também terá o seu ritmo. Procurando com uma lupa, um microscópio, encontra-se intermitência mesmo naquilo que flui.

Respiro, inspiro e expiro, inspiro e expiro, respiro. Os meus pulmões enchem-se com o ar que me entra pelas narinas, sinto-o na garganta, e esvaziam-se com ar que também sinto na garganta e me sai pela boca, devolvo-o ao início da noite. Corro a poucos metros do oceano, no caminho de cimento entre a areia da praia e a estrada. As ondas lançam-se sobre a areia, estendem-se e, depois, recolhem-se, deslizam, escorregam na areia lisa. São essas mesmas ondas que a alisam. Lá em cima, as primeiras estrelas. Qual é a porção de tempo que marcam?

No outro lado, enquanto corro, passam carros ocasionais. Às vezes, passa um e, depois, tempo, uma pausa, silêncio, e passa outro a grande velocidade, e nada, durante um momento longo, nada, e dois carros seguidos. Apesar de não ser capaz de decifrar o seu ritmo, a sua lógica, não creio que sejam aleatórios. Saíram de algum lugar num instante preciso, fizeram um caminho específico para passarem por mim num instante exato. Têm o seu mundo próprio que, visto daqui, comporta uma complexidade distante. Recusar a sua razão seria demasiado fácil.

Corro sobre tudo isto. Acrescento passos aos segundos, ao meu coração, à minha respiração, às ondas, aos carros, às estrelas. São como linhas numa fita métrica, marcam milímetros e centímetros. E, em tantos aspetos, sou comparável ao vento que começou agora a levantar-se. Como ele, também eu transporto essa superfície que as marcas tentam quantificar, é transparente e ilimitada, nela cabem os segundos, os meses, as idades, os filhos, a vida inteira; nela cabem os passos que dou agora e que dei durante tardes enormes, durante verões que pareciam intermináveis, todos os passos que ainda darei; nela cabe a minha respiração a correr, a dormir, a ler ou à espera que o tempo passe; nela cabem todas as ondas que ouço, que imagino, imaginei e todas aquelas que ignorei, em horas longe do mar. O vento sabe do falo. Como eu, o vento também corre. Como eu, também existe desde sempre e para sempre.

José Luís Peixoto

Escritor

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O óbvio

É óbvio que alguma coisa não correu bem. Se tivesse corrido tudo como planeado, um hotel não seria evacuado durante a noite e as pessoas que se encontram trancadas há semanas saberiam a quantas andam e o que podem esperar da vida. Alguma coisa correu mal e, digo-vos, faz parte: no mundo em que hoje respiramos, não há forma de fugirmos ao que é inevitável. O vírus veio para ficar e, até prova em contrário, a vacinação é a única forma de ir dando a volta ao texto com alguma sanidade mental. Por ser incontornável, convém ter um plano B na secretária, para que, quando o plano A descamba, a situação não seja ainda pior.

Os erros fazem parte do processo. Algumas das pessoas que me lêem lembrar-se-ão de que, no início disto tudo, houve quem tivesse, confortavelmente e ao longe, ridicularizado quem vive em Portugal e que, entre um confinamento e outro, passou muitos meses sem sair de casa, sem comparticipação pecuniária, nem empregada para lavar a louça e aturar os miúdos.

Fazem parte do processo, os erros. Hoje num sítio, amanhã noutro. Não vale a pena encontrar bodes expiatórios para quem transmite o vírus, um manhoso que hoje não acusa presença e amanhã já se mostra pronto para o milagre da multiplicação. Um sacana que ataca uns, mas deixa outros de fora. O tempo em que se apontava o dedo aos leprosos já lá vai – e, se ainda não foi, já devia ter ido, que é má rês quem estica o indicador.

Vale a pena, isso sim, pensarmos na responsabilidade colectiva: entrámos nas florestas onde nunca devíamos ter estado, demos cabo da biodiversidade, deixámo-nos iludir pela rapidez das coisas, por tudo o que queremos e podemos comprar mesmo que o tudo seja perfeitamente dispensável. Vale a pena pensarmos na responsabilidade colectiva, mas isso não vai acontecer: é tão utópico quanto imaginar que, se enfiar quem viaja de avião num quarto de hotel, me protejo, mesmo abrindo a outra porta, mediante um papel que diz que hoje – só hoje, não se sabe se amanhã – está tudo bem.

As atrapalhações são normais nesta história, porque nunca ninguém viveu isto. Mas a humildade também deve fazer parte do processo: se fosse eu, não faria melhor. Os vizinhos do lado estão a fazer melhor do que eu. Os vizinhos de longe estão a fazer ainda melhor do que os vizinhos do lado. E muito longe, mas mesmo muito longe, há quem já tenha chegado a conclusões científicas que fazem com que eu, afinal, me tenha perdido algures no tempo, atrapalhada que estou nas muralhas que tento erguer, todas elas cheias de buracos.

É também nestas alturas que vale a pena pensar na nossa existência: para que servimos, quem servimos, o que andamos a fazer. Se o que fazemos basta para justificar o cargo que ostentamos nos cartões-de-visita, no papel timbrado, na vida que levamos e na folha salarial.

Esta semana houve mais de uma centena e meia de pessoas que, trancadas em quartos, impossibilitadas de sair por estarem a cumprir quarentena, passaram por uma experiência difícil de qualificar. Entre elas, mais de uma dezena de portugueses (que eu saiba) de regresso a casa, numa volta agoniada pela incerteza. Não se saber com o que se pode contar quando se está privado de liberdade para decidir e agir está na lista das piores sensações. Sobretudo quando não se está só. E sobretudo quando se está só.

À hora a que escrevo, algumas horas antes de este texto saltar para uma página de jornal, desconheço que a representação consular em Macau tenha agido no sentido de dar algum apoio – emocional, por impossibilidade de ser de ordem prática – aos seus compatriotas que se viram em apuros e que, depois de já longas quarentenas, viram a clausura ser prolongada sem data certa para terminar. Não é difícil reunir os números de telefone, mandar uma mensagem de texto e desejar que tudo corra pelo melhor. E é ainda mais fácil ir a uma rede social contar que se está em contacto com quem precisa de sentir apoio.

Sei bem que a diplomacia é silenciosa – mas não devia ser. É bom que, quando se está longe, se sinta que existe apoio. Que quem tem a obrigação de estar presente não se encontra alheado. E isso só acontece quando é feito e quando as outras pessoas vêem que está a ser feito.

De vez em quando, a diplomacia deixa escapar uma frase para dizer que está atenta – o que não tem qualquer utilidade, porque atentos estão os cidadãos que compreendem os princípios da cidadania, apesar de não serem renumerados pelo Estado para estarem atentos aos outros. Mas, em Macau, se essa atenção existe é bem camuflada pelo bem maior do silêncio: basta pensar que, em Julho passado, a representação consular ainda não tinha dado conta de um maior fluxo de portugueses a deixar a cidade, apesar de todos termos dado conta de um maior fluxo de portugueses a deixar a cidade. Acredito – mas posso estar enganada, ressalvo desde já – que uma representação consular servirá para mais do que renovar documentos.

É óbvio que alguma coisa não correu bem, que os erros fazem parte do processo, que as atrapalhações são normais e que vale a pena pensarmos no que andamos a fazer. Mas uns mais do que outros, como é óbvio também.

Isabel Castro

Jornalista

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Como papel de parede, mas mais verdadeiro

Reconheço este cheiro, vem de um lugar onde aprendi a avaliar o mundo, onde me dei conta de que existia alguém a falar no interior dos meus pensamentos, alguém que dizia “eu” e se referia a mim. Reconheço este cheiro desde que o senti pela primeira vez, na casa dos meus pais que, por sua vez, era uma decantação do cheiro da casa dos meus avós. Neste cheiro, há uma mistura de madeira e vinho, de comida cozida, sopa, também um cheiro de pele das pessoas, provavelmente o sol deixa um aroma na pele, reação físico-química, mistura de terra e tempo. Reconheço este cheiro, cheira a Portugal.

Na sala, a televisão está a passar um canal português com uma apresentadora que conheço desde pequeno e que conta, com pronúncia de Lisboa, uma piada qualquer que não pode ser traduzida para nenhuma outra língua. Estou sentado no sofá, entre almofadas. A mesa, diante de mim, chega-me aos joelhos e está coberta por uma toalha de renda, feita durante serões enormes por uma mulher com muita paciência. Às vezes, essa mulher chega para insistir que coma qualquer coisa. Recuso como a minha mãe me ensinou há muitos anos. Recusaria exactamente da mesma maneira se estivesse com fome, o que já aconteceu noutras ocasiões. De certeza que não quer comer nada? A dona da casa admira-se com a minha recusa, como se a minha resposta fosse bizarra, fora da lógica do mundo. Esse tom também faz parte do protocolo desta circunstância. Ela ainda insistirá mais algumas vezes e eu ainda recusarei mais algumas vezes. Entretanto, debaixo de tudo isso, a respiração das alcatifas, o fiozinho de fumo que se levanta de uma chaminé na paisagem daquele quadro estampado, o castiçal de cobre com velas novas, que nunca arderam.

E, quando saio à rua, estou em Newark, nos arredores de Paris, em Toronto, no Luxemburgo, em Joanesburgo, em Lausane. A espessura do ar mudou de repente. Afinal, há mais fronteiras do que aquelas em que se tem de preencher pequenos papéis com o nome, o número do passaporte e cruzes numa coluna de quadradinhos a que se tem de responder sempre NÃO. Traz plantas? Não. Tem pacemaker? Não. Traz mais de 10 mil dólares em dinheiro. Não.

Sair dessa casa, onde há loiças com o emblema do Benfica e molduras com fotografias tiradas no largo da aldeia, e, logo de seguida, pisar o passeio de qualquer uma dessas cidades é muito semelhante ao teletransporte do Star Trek. Estamos num lugar e, de repente, materializamo-nos noutro. Com uma ligeira tontura, sigo um casal que me fala de quando chegaram a esta cidade, eram tão novos, tudo isto era tão diferente. Chegou a hora de jantar. Entramos num restaurante e, de novo, sou teletransportado. O empregado tem bigode, chama-se Armando e recomenda-nos o bacalhau à lagareiro. Na televisão, a apresentadora continua com o mesmo sorriso e o mesmo vestido brilhante. Peço um Sumol de laranja. Será que tem? Claro que tem. O fundo da garrafa desenha um círculo na toalha de papel.

Em agosto, a casa de onde saí há minutos, terá os estores fechados. A cada dois dias, escutar-se-á a chave na fechadura. Será uma vizinha que virá regar as flores: a torneira aberta de encontro ao fundo do regador de plástico. E também o restaurante estará fechado, terá um letreiro em português a dizer: encerrado para descanso do pessoal, reabre em setembro. E, aos sábados, quem quiser cozido, terá de fazê-lo em casa. Isso, claro, se conseguir encontrar chouriços, morcelas e farinheiras, se tiver enchidos no congelador ou se o senhor do talho não tiver ido passar férias à terra.

José Luís Peixoto

Escritor

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Um mal que deixa de ser necessário

É um privilégio que nada custa obter, que nada se faz por merecer. Basta apenas existir num tempo posterior. É daí que vem um prazer bem simples. Consiste em ler o que se escrevia, por exemplo, há uns cem anos, e constatar uma de duas coisas: como tudo mudou, como nada mudou. Num caso ou noutro, imaginar, depois, como seria a reacção dos antepassados autores se transplantados para o seu futuro, nosso presente, e verificassem como estavam redondamente enganados. Ou extraordinariamente certos. Há ainda que contar com os caprichos da infinitude e saber que, às vezes, basta esperar um pouco para o tempo dar a razão que antes tinha tirado, trocar ainda mais estas voltas. Fazer e desfazer prescientes. Na Macau de 2021, onde se desafia o que não há muito estava estabelecido de pedra e cal, é o que acontece.

Lendo o documento da consulta pública sobre a alteração à lei do jogo, parece que ouvimos, lá no fundo, um rumor de contentamento vindo do além onde repousam os outrora estrénuos defensores das campanhas moralizadoras contra jogatinas e vícios quejandos, para quem a história de Macau reservou um lugar bem afastado do palco. Até ver.

“É preciso extirpar o jogo, e não desenvolvê-lo”, escrevia, numa espécie de estribilho, o jornal A Pátria, em Janeiro de 1925. “É preciso sanear a atmosfera em que vivemos. É preciso dignificar este bocado de terra portuguesa, que os estrangeiros apontam como o Monte Carlo do Extremo-Oriente”.

Até no apodo estes patriotas de então estavam longe de imaginar o que viria décadas e décadas depois. Não podia ser de outro modo: Las Vegas ainda nem sequer existia, tal como o jogo nos modos que haviam de fazer Macau a sua capital. Mundial.

Isso mesmo mostram as estatísticas que o documento da consulta nos recorda, antes de chamar a atenção para uma verdade insofismável: “uma moeda tem duas faces”. Nem nos rios de dinheiro que correm pelos casinos se encontra uma só que prove o contrário.

Os números, já se sabe, não dizem tudo, mas alguns contam histórias que nunca deixam de espantar. Depois da liberalização do jogo, o Produto Interno Bruto (PIB) de Macau aumentou de 58,8 mil milhões de patacas, em 2002, para 434,7 mil milhões, em 2019. Sete vezes mais, ainda assim menos duas do que cresceu o PIB ‘per capita’ no mesmo período, atingindo 660.903 patacas. “[Q]uanto às receitas totais do Governo, estas situaram-se apenas em 11,08 mil milhões de patacas em 2002, mas aumentaram para 133,5 mil milhões de patacas quando chegou ao ano de 2019. Nota-se que, ao longo dos últimos anos, os impostos de jogo representaram 70% a 80% do total das receitas arrecadas pelo Governo, enquanto as receitas de jogo ocuparam um peso de 55,5% no PIB”.

Para a economia do território e das famílias, o jogo tornou-se mais do que “um pilar importante”. Fez-se centro absoluto.

Não era difícil, mesmo no início do século XX, antever este desfecho. Já então a dependência do jogo era real. As contas públicas, ao fim de anos desavindas com a saúde financeira, era nas mesas de apostas que se equilibravam. Era (também) contra isso, todavia, que os opositores do jogo se insurgiam – contra a crescente impossibilidade de se encarar o futuro sem o jogo, sem monopólios, de criar “outras fontes de receitas livres de contingências”, como defendia, em 1909, o semanário Vida Nova. Mas nem as contingências nem os problemas, muito menos o jogo, desapareceram.

Nos relatórios que enviavam para Lisboa, as autoridades de Macau peroravam sobre “um mal necessário”. Tornou-se comum, em diferentes épocas, ouvir-se dizer que a economia do território deveria assentar mais na indústria e no comércio. Com o passar dos anos, só foram mudando os exemplos do que fabricar ou vender. Até se esgotar a imaginação.

Mesmo sem nunca ter deixado de ser “indesejável”, o jogo não se foi embora. “Como viveria, pois, Macau?”, perguntava um oficial da burocracia do Estado Novo, em 1965, sustentando que “a par do jogo, há a indústria hoteleira, de turismo, de transportes, o comércio e mil e uma outras pequenas actividades que definhariam sem o impulso do jogo”.

Com as reticências que o puritano decoro pedia, aqui e ali fazia-se a vontade aos operadores e permitiam-se modernices nas salas de jogo. Quase sempre a custo e ao fim de muitos “requerimentos”, como foi o caso da aprovação da roleta. Mas, em geral, conscientes das dificuldades que os concessionários enfrentavam devido às sucessivas crises que afastavam os jogadores (Guerra Sino-Japonesa, II Guerra Mundial, conflitos nas fronteiras com comunistas, etc.), as autoridades revelavam-se sensíveis aos argumentos que reivindicavam maiores facilidades. Ficavam, assim, a zurzir sozinhos os difamadores da “cidade de vícios”, sempre fitos na denúncia do mal maior, e que levavam o Notícias de Macau a defender, em 1948, que se lhe pusesse um ponto final: “o jogo tem constituído, desde longa data, um dos alvos preferidos pelos nossos inimigos para os seus ataques contra a nossa cidade e, consequentemente, a sua eliminação era uma das medidas mais instantes do Governo da Colónia”.

Quando se respondia aos moralistas — de fora e de dentro –, era com o dinheiro do jogo, como quando as suas receitas passaram, em 1952, a ser atribuídas à Assistência Pública. Mas ao mesmo tempo que se desviavam atenções, podiam anotar os mais cínicos, alargava-se a rede de dependências, do vício.

A estratégia, todavia, não se alterou e o jogo foi servindo para tudo e mais alguma coisa, permitindo, como reconhece agora o Governo, “obter recursos financeiros suficientes para dar continuidade ao desenvolvimento de diversos empreendimentos de infra-estruturas, aperfeiçoando os regimes de acção social, implementando políticas sobre o jogo responsável e criando condições propícias para levar em diante o progresso das indústrias antigas e emergentes”.

Dir-se-ia que o jogo se tornou “too big to fail”, mas já não será bem assim. Com a crescente integração, vai-se tornando difícil justificar a especialidade da Região Administrativa e uma sua determinada “maneira de viver”.

De súbito, na Macau de 2021, em tempos de deveres supremos de “prosperidade comum” – necessariamente “moderada” –, alguém se apercebeu que “a desigualdade do desenvolvimento económico fez crescer, no seio da sociedade, valores utilitários, dependência excessiva da economia e do emprego no sector do jogo, entre outros problemas sociais que implicam o acompanhamento contínuo e a tomada de medidas de resposta por parte do Governo da RAEM, de forma atempada e proactiva”.

Os das campanhas de há um século não podiam estar mais de acordo.

Hugo Pinto

Jornalista

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Planeamento Central da Integração Macau-Hengqin e Hong Kong-Qianhai: Implicações para 2049, 2047 e Taiwan

A julgar pelo contexto e conteúdo do projecto de integração do governo central na Zona de Cooperação Macau-Hengqin e nas zonas de desenvolvimento de Hong Kong-Qianhai, é bastante provável que Pequim tenha um plano holístico de deslocar a zona Macau-Hengqin e a zona Hong Kong-Qianhai para uma possível fusão territorial perto do ano 2049 e 2047, respectivamente, com implicações geopolíticas muito significativas para as interacções económicas Pequim-Taipei a longo prazo.

A Zona de Cooperação Macau-Hengqin revelou as suas estruturas institucionais três dias após o Governo de Macau ter publicado o seu documento consultivo sobre a alteração da Lei n.º 16/2001 (Quadro Legal para as Operações dos Jogos de Casino da Fortuna). A Ilha de Hengqin está dividida em duas partes: uma sob a administração de Macau e a outra zona de cooperação sob a administração mútua de Guangdong e Macau. Esta zona de cooperação é caracterizada por uma estrutura de governação conjunta, nomeadamente o Comité de Gestão da Zona de Cooperação, que é liderado pelo Governador de Guangdong Ma Xingrui e pelo Chefe do Executivo de Macau Ho Iat Seng e sob o qual o vice-director executivo é o Secretário da Administração e Justiça de Macau, Cheong Weng Chon. Sob o Comité de Gestão, são formados um secretariado e um comité executivo liderado pelo Secretário da Economia e Finanças de Macau, Lei Wai Nong, para supervisionar vários gabinetes, incluindo administração, direito, economia, desenvolvimento monetário e financeiro, comércio, tesouro, estatísticas, planeamento urbano e construção, e o sustento do povo. O povo de Macau pode arranjar cartas de condução e licenças para entrar e sair de Hengqin, enquanto a Companhia de Desenvolvimento do Ponto de Encontro Leste-Oeste de Macau (Hengqin) se tornou um dos 33 projectos a entrar no Parque Industrial Cooperativo de Guangdong-Macau (Ming Pao, 18 de Setembro de 2021).

Esta Zona de Cooperação tem como objectivo tornar a economia de Macau mais diversificada do que nunca. De acordo com o Projecto de Construção da Zona de Cooperação de Hengqin-Guangdong-Macau, publicado a 5 de Setembro, a nova zona visa ajudar a diversificação económica de Macau, o movimento populacional a residir em Hengqin, e a expansão dos serviços sociais em 2024. Em 2029, espera-se que as quatro áreas de desenvolvimento da diversificação económica de Macau – medicina chinesa, inovação e indústria de alta tecnologia, centro de exposições culturais e de convenções, e centro monetário e financeiro moderno – façam “realizações proeminentes”. Em 2035, espera-se que todos os quatro reinos da diversificação económica de Macau sejam alcançados. Como tal, o importante documento concebido pelas autoridades centrais e com a participação activa das autoridades provinciais de Guangdong e das autoridades locais de Hengqin-Macau traça uma linha temporal clara.

Para estimular o desenvolvimento económico e o investimento, a Zona vai cobrar 15% de imposto às empresas, enquanto “isenta partes de impostos sobre o rendimento individual que sejam superiores a 15%” para atrair talentos para trabalhar e permanecer na zona. Enquanto os jovens de Macau são encorajados a trabalhar e a viver em Hengqin, toda uma gama de serviços sociais será fornecida e expandida na Zona. Ligações de transporte como o Macau Light Rail serão alargadas a Hengqin. Nestas circunstâncias, Hengqin-Macau será integrada como unicidade ou “yi tihua” com a primeira linha a ser aberta e a segunda linha sob controlo (Blueprint, p. 11). A segunda linha terá mercadorias que entrarão no continente com um controlo aduaneiro e de imigração mais elaborado e impostos cobrados. Claramente, foram estabelecidas três linhas de estrutura administrativa, com a possibilidade de mover estas linhas administrativas de acordo com as necessidades geoeconómicas e políticas a longo prazo.

O estabelecimento da Zona de Cooperação é marcado pela necessidade de construção de partidos (Blueprint, pp. 17-18), o que significa que a protecção política e jurídica é necessária para a governação da Zona. A construção do Partido é colocada na prioridade da agenda de desenvolvimento, o que significa que o processo de abertura de Hengqin a Macau deve ser caracterizado pela liderança do Partido Comunista Chinês. A protecção do Estado de direito é enfatizada no Projecto de Lei, dando a Zhuhai um certo grau de autonomia nos assuntos legislativos para que os “regulamentos comerciais e civis da Zona converjam com Macau” (Projecto de Lei, p. 18). Outras áreas de gestão de riscos, como o anti-terrorismo, a evasão fiscal e o branqueamento de capitais, serão monitorizadas em nome de “enfatizar o pensamento de fundo” (p. 19). Em resumo, todo o Projecto em Acção é caracterizado por uma estrutura de governação mútua, abertura gradual e ordenada, controlo necessário nas áreas dos crimes fiscais, aduaneiros e transfronteiriços, e a realização do plano de tornar a economia de Macau mais diversificada e menos dependente da indústria de casinos.

Neste contexto mais amplo de diversificação económica, o documento consultivo do Governo de Macau sobre a alteração da Lei n.º 16/2001 é politicamente significativo e administrativamente progressivo. O documento delineia várias áreas de concessão de casinos que necessitarão de mais controlo governamental: (1) a ênfase na qualidade e não na quantidade de concessionários; (2) a flexibilidade no período de concessão dos concessionários; (3) mais controlo sobre a exigência de capital dos concessionários; (4) a localização dos membros do Conselho de Administração; (5) a aprovação governamental da partilha de lucros pelos concessionários; (6) a formação e protecção dos empregados; (7) mais controlo sobre os intermediários e os seus antecedentes conexos; (8) o desenvolvimento estratégico de áreas não relacionadas com jogos, de modo a estimular o crescimento das pequenas e médias empresas; (9) o reforço da responsabilidade social através da imposição fiscal de 4% que será utilizada para o desenvolvimento da cultura, da caridade e do desenvolvimento urbano; e mais importante (10) a adição e o papel do representante governamental nos concessionários do casino.

Embora os preços de algumas acções de casinos de Macau tenham caído pouco depois da publicação deste documento, as partes interessadas com interesse declarado poderão não compreender inteiramente que as alterações propostas no documento consultivo estão a colmatar com precisão as lacunas da governação de casinos e jogos de fortuna e azar em Macau. É discutível que há e haverá uma necessidade genuína de o representante do governo supervisionar o funcionamento de cada concessionário de casino, talvez através da nomeação do governo do seu representante no Conselho de Administração com a palavra directa sobre a questão mais crucial, nomeadamente a partilha de lucros que, no passado, foi criticada como desviando os enormes lucros de Macau para o estrangeiro. Um estudo cuidadoso do documento de consulta mostra que a supervisão governamental e um controlo mais rigoroso sobre a governação dos casinos há muito que tardava, desde o controlo sobre a partilha de lucros até à supervisão dos crimes relacionados com o casino. Os objectivos são modernizar ainda mais a governação dos casinos e moldar o seu desenvolvimento saudável, com contribuições de volta para a sociedade de Macau e a sua diversificação económica.

O desenvolvimento de Hengqin-Macau é simultaneamente acompanhado pela integração de Qianhai-Hong Kong. A 6 de Setembro, o Conselho de Estado publicou o Plano Abrangente de Reforma e Abertura da Zona de Cooperação do Sector de Serviços Modernos de Qianhai-Shenzhen-Hong Kong. O documento afirma claramente que visa “reforçar a força centrífuga dos camaradas de Hong Kong em direcção à pátria” e que desempenha uma “função demonstrativa e de liderança” no aprofundamento das reformas na Área da Grande Baía. O plano descreve todas as áreas de rápido desenvolvimento: o sector dos serviços, desenvolvimento monetário e financeiro, desenvolvimento de alta tecnologia, inteligência artificial, cidades inteligentes, experiências inovadoras e investigação, a protecção das empresas civis, o aprofundamento da reforma das empresas estatais, a flexibilização em permitir à população de Hong Kong, Macau e países estrangeiros trabalhar e permanecer em Qian, o estabelecimento de um centro de arbitragem e de serviços de direito internacional, e a expansão do comércio internacional. Uma semelhança notável do plano Qianhai-Hong Kong e do plano de desenvolvimento Hengqin-Macau é que ambos enfatizam a importância da construção do Partido e a melhoria do Estado de direito nas duas zonas – uma indicação de que a política e o direito permanecem no comando no meio de uma liberalização económica aprofundada e acelerada.

Ao contrário de Hengqin que é remodelado para acomodar as necessidades de Macau, Shenzhen’s Qianhai é instado a acelerar e aprofundar as suas reformas, trabalhando com Hong Kong em todas as áreas estratégicas. Dado que as universidades de Hong Kong são fortes na investigação, a integração entre Qianhai e Hong Kong aproveita claramente o conhecimento e a perícia de investigação de Hong Kong para maximizar o potencial de desenvolvimento tecnológico futuro no Qianhai de Shenzhen.

Embora o Plano para a zona de cooperação Qianhai-Shenzhen-Hong Kong não tenha uma linha temporal de desenvolvimento, tem uma área importante em comum com a zona de cooperação Hengqin-Macau: dentro das duas regiões administrativas especiais de Hong Kong e Macau, já foi criada uma zona de cooperação especial continental para cada uma delas. Esta zona administrativa especial dentro de cada uma das duas regiões administrativas especiais tem um significado geopolítico e económico importante a longo prazo.

Primeiro, se o plano da Grande Área da Baía for moldado, estruturado e desenvolvido de modo a incorporar Hong Kong e Macau, a integração Hengqin-Macau e Qianhai-Hong Kong irá provavelmente evoluir para uma possível fusão territorial em 2049 e 2047, respectivamente. A Zona de Cooperação Hengqin-Macau já delineou a linha do tempo até 2035. Assim, quando Macau e Hong Kong se aproximarem de 2049 e 2047 respectivamente, será muito provável que o governo central tenha um novo plano na linha de uma possível fusão territorial, relaxando a primeira linha ou mesmo a segunda linha das zonas especiais de cooperação a serem integradas em Macau e Hong Kong. Tanto em Macau como em Hong Kong, o espaço físico e geográfico permanece limitado. A oferta limitada de Hong Kong teria um enorme impulso se Hengqin fosse integrada territorialmente na região administrativa especial, especialmente se estiver em curso um plano de construção de uma linha férrea que ligue os Novos Territórios a Hengqin.

Segundo, o plano de desenvolvimento do governo central para Macau e Hong Kong demonstra um forte estado de desenvolvimento em Pequim, que pode ter na sua mente a integração económica de Taiwan. Por outras palavras, se no futuro Taiwan for economicamente atraído e integrado de novo na China continental, a Área da Grande Baía (GBA) com os papéis especiais de desenvolvimento de Hong Kong e Macau desempenhará um modelo de demonstração colectiva onde regiões administrativas especiais podem ter zonas especiais, e onde Taiwan será economicamente atraído para interagir com a GBA de uma forma mais intensiva do que a actual. Evidentemente, as relações Pequim-Taipei são mais complexas e dependerão de outros factores, incluindo a mudança política interna de Taiwan e os cálculos estratégicos de Pequim.

Em conclusão, a zona de cooperação Hengqin-Macau deve ser analisada em conjunto com a zona de cooperação Qianhai-Hong Kong no contexto da utilização do “um país, dois sistemas” para mostrar o seu impacto demonstrativo na liberalização económica de Taiwan. A liberalização económica e o aprofundamento das reformas são as marcas do desenvolvimento da China, especialmente na área da Grande Baía onde as zonas de cooperação de Hengqin-Macau e Qianhai-Hong Kong têm profundas implicações económicas, sociais e políticas. Do ponto de vista sócio-económico, a diversificação económica de Macau será realizada mais cedo ou mais tarde, enquanto que os pontos fortes de Hong Kong são plenamente maximizados com uma situação vantajosa para ambas as partes de utilização do vasto espaço físico e conhecimentos tecnológicos em Qianhai. A identidade chinesa do povo de Hong Kong e Macau deverá ser reforçada com a sua crescente tendência centrífuga para a sua pátria. Por outro lado, Hengqin vai ser desenvolvida para uma cidade mais internacional do que nunca, como no caso de Qianhai. A interdependência económica pode ser testemunhada na rápida e mais estreita integração económica entre Qianhai, Hong Kong, Hengqin e Macau. Aproximando-se 2047 e 2049, será provável que as fronteiras de Hong Kong e Macau, respectivamente, sejam redesenhadas de modo a que as duas regiões administrativas se aprofundem e se integrem territorialmente com Qianhai e Hengqin, respectivamente.

Sonny Lo

Autor e Professor de Ciência Política

Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Macau News Agency/MNA

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As conversas telefónicas Xi-Biden e a construção de confiança Sino-EUA

As recentes discussões telefónicas de 90 minutos entre Xi Jinping, o Presidente da República Popular da China (RPC), e Joe Biden, o Presidente dos Estados Unidos da América (EUA), têm implicações importantes para o contexto e conteúdo da construção de confiança nas relações sino-americanas.

A leitura da Casa Branca a 9 de Setembro foi breve, dizendo que “os dois líderes tiveram uma discussão ampla e estratégica na qual discutiram áreas onde os nossos interesses convergem, e áreas onde os nossos interesses, valores e perspectivas divergem”. A leitura acrescentou que Biden e Xi Jinping “concordaram em envolver-se em ambos os conjuntos de questões de forma aberta e directa”. Da perspectiva de Biden, tal discussão fazia parte do “esforço contínuo para gerir responsavelmente a concorrência” entre as duas partes. Biden enfatizou o “permanente interesse americano na paz, estabilidade e prosperidade no Indo-Pacífico e no mundo e os dois líderes discutiram a responsabilidade de ambas as nações para assegurar que a concorrência não se desvie para o conflito”.

A Xinhua publicou um relatório sobre as discussões telefónicas entre os dois líderes a 10 de Setembro, dizendo que ambos “tiveram uma comunicação e trocas estratégicas sinceras, profundas e abrangentes sobre as relações China-EUA e questões relevantes de interesse mútuo”. O Presidente Xi observou que ambos os países “são respectivamente o maior país em desenvolvimento e o maior país desenvolvido”; que “se eles podem lidar bem com as suas relações tem a ver com o futuro do mundo”; que “é uma questão do século para a qual os dois países devem dar uma boa resposta”; e que ambos os lados “precisam de mostrar uma visão ampla e assumir grandes responsabilidades”, olhando para o futuro e pressionando para a frente, demonstrando “coragem estratégica e determinação política”, e trazendo as relações sino-americanas “de volta ao caminho certo do desenvolvimento estável o mais cedo possível para o bem das pessoas em ambos os países e em todo o mundo”.

A julgar pela breve descrição da Casa Branca centrada na necessidade de ambas as partes lidarem com os seus interesses de convergência e divergência, e pela declaração mais detalhada da Xinhua apontando para a ênfase do Presidente Xi em trazer as relações sino-americanas de volta ao “caminho certo do desenvolvimento estável”, é absolutamente claro que o processo de construção de confiança fez um avanço ao mais alto nível dos EUA e da China.

O relatório Xinhua acrescentou que, segundo o Presidente Xi, “com base no respeito das preocupações centrais um do outro e na gestão adequada das diferenças, os departamentos relevantes dos dois países podem continuar o seu empenho e diálogo para avançar na coordenação e cooperação em matéria de alterações climáticas, resposta Covid-19 e recuperação económica, bem como nas principais questões internacionais e regionais”. Por outras palavras, espera-se que ambas as partes aprofundem e acelerem as suas discussões construtivas sobre questões de interesse mútuo. Afinal, as alterações climáticas, a Covid-19 e a recuperação económica são as principais preocupações não só das relações sino-americanas, mas também de outros países do mundo. A declaração da Xinhua apontava para as áreas de preocupações comuns.

Mais importante ainda, a declaração da Xinhua tocou em duas questões importantes com consenso: nomeadamente “Biden disse que os dois países não têm interesse em deixar a concorrência entrar em conflito, e que o lado americano não tem intenção de alterar a política de uma só China”. A leitura da Casa Branca mencionou que a concorrência de ambos os lados não deveria ser permitida “para o conflito”, mas não enfatizou abertamente a política de uma só China como o que o relatório da Xinhua fez.

Aparentemente, os EUA gerem a República da China (ROC) em Taiwan, tanto estrategicamente como ambiguamente. Embora o Presidente Biden tenha mencionado na sua conversa telefónica com o Presidente Xi que os EUA não têm intenção de alterar a sua política de “uma só China”, resta saber como os EUA irão abordar a questão de Taiwan. A 19 de Setembro, foi noticiado que o governo dos EUA poderá permitir que o Gabinete de Representação Económica e Cultural de Taipé (TECRO) seja renomeado como Gabinete de Representação de Taiwan. Embora esta mudança já tenha sido noticiada em Taiwan em Dezembro de 2020, resta saber se esta medida iria piorar as relações EUA-China.

Antes das discussões telefónicas de Biden-Xi, as conversações anteriores entre funcionários norte-americanos e os seus homólogos chineses não foram muito frutuosas. Com bastante frequência, ambos os lados entraram em desacordo aberto, sinalizando uma espécie de diplomacia do megafone. Se a diplomacia abraça discussões silenciosas mas calmas e racionais para resolver os problemas em causa, as mais recentes discussões telefónicas entre o Presidente Xi Jinping e o Presidente Biden representaram um bom modelo de envolvimento mútuo ao mais alto nível, para que os funcionários de nível médio e inferior seguissem o exemplo num ambiente de porta fechada, mas com uma abordagem calma, racional e construtiva para lidar com uma multiplicidade de questões, incluindo o comércio, as alterações climáticas e a cooperação Covid-19.

Há relatos de que alguns empresários nos EUA têm instado Washington a lidar com as tarifas chinesas impostas aos produtos americanos, e que o sector retalhista americano tem feito lobby junto de Washington para permitir que mais produtos chineses entrem no mercado americano. Aparentemente, a guerra comercial tem prejudicado o lado americano em certa medida. Como tal, as discussões EUA-China sobre a diluição da sua guerra comercial e o regresso do seu comércio bilateral à normalidade tornar-se-iam uma situação vantajosa para todos para os consumidores e empresários de ambos os lados.

Afinal, na era da interdependência económica e da globalização, a guerra comercial é um legado da política relativamente falsa e superprotecionista adoptada pela administração Trump em relação à RPC, que foi forçada a tomar medidas de retaliação contra os EUA. Se a origem da guerra comercial teve origem na administração dos EUA, cabe ao governo Biden desatar gradualmente o nó e devolver as relações comerciais EUA-China a uma situação normal. De certa forma, o recente atraso súbito na incorporação da Lei Anti-Sanções da RPC na Lei Básica de Hong Kong e Macau foi talvez um gesto de boa vontade e positivo de Pequim no tratamento das relações Sino-EUA. Se assim for, os EUA podem e devem talvez fazer mais para resolver as disputas comerciais de ambos os lados de uma forma mais construtiva.

Quanto à percepção da “ameaça” militar da RPC, é natural que os militares americanos tenham adoptado tal percepção de ameaça devido ao rápido aumento da ascendência militar da China. No entanto, se ambos os lados dos líderes militares estão envolvidos em diálogo mútuo, comunicação e processo de construção de confiança, os chamados conflitos militares entre os EUA e a China podem e serão, assim o esperamos, evitados.

Pelo contrário, a questão mais preocupante continua a ser como os EUA vão lidar com o futuro político de Taiwan. Os falcões na administração dos EUA têm retratado a RPC como tendo movimentos militares “agressivos” contra Taiwan – um pressuposto que talvez tenha minimizado a intenção dos líderes da RPC de resolver o futuro de Taiwan pela paz e não pela força. Dado que o Presidente Xi Jinping e os seus membros do grupo de reflexão estão a enfatizar o renascimento chinês, a reunificação pacífica com Taiwan será provavelmente uma prioridade política mais cedo ou mais tarde. O cerne do problema está em saber se os EUA podem e vão controlar as forças separatistas que dominam o panorama político de Taiwan.

Em Setembro, surge um súbito lado positivo nas perspectivas das relações Pequim-Taipei devido à eleição em curso do presidente do partido no Kuomintang da oposição (KMT ou Partido Nacionalista) em Taiwan. Chang Ya-chung, um candidato azul escuro que concorre ao cargo de presidente do partido, propôs uma fórmula ousada e, no entanto, aparentemente viável para alcançar um avanço nas relações Beijing-Taipei durante a sua campanha eleitoral. Apresentou abertamente uma ideia de propor um acordo de paz entre Taipé e Pequim, um acordo que seria apoiado pelo KMT e depois apresentado como uma plataforma para o povo de Taiwan votar nele durante as eleições presidenciais do início de 2024.

A plataforma de Chang na sua campanha é o ataque mais ousado e potencialmente mais importante contra os outros três candidatos, incluindo o actual Johnny Chiang, o antigo presidente do partido Eric Chu e o candidato Cho Po-yuan. Enquanto Chang está agora a emergir como o candidato mais popular entre os cidadãos de Taiwan, Cho lançou uma interessante ideia de convidar o Presidente Xi Jinping a visitar Taiwan depois de ter sido eleito como presidente do partido. A ideia ousada de Cho foi ridicularizada pelos observadores, mas a rápida emergência do Chang aponta não só para um renascimento do KMT, mas também para um possível pacote de avanços nas relações Pequim-Taipei. Em termos de propor novas ideias para lidar com as relações entre Taipé e Pequim, tanto Johnny Chiang como Eric Chu estão a actuar de forma medíocre e a demonstrar uma pobreza de soluções criativas, ousadas e viáveis.

É discutível que os Sinologistas da administração Biden deveriam estudar como a ideia provocadora do pensamento de Chang seria talvez possível no futuro, especialmente se as relações Pequim-Taipei evoluíssem a tal ponto que algum grau de “intervenção” ou “assistência” dos EUA se tornasse diplomaticamente inevitável. Afinal, o papel dos EUA nas relações Pequim-Taipei continua a ser extremamente delicado e importante. Os EUA podem ser e serão potencialmente um facilitador em qualquer resolução pacífica do futuro político de Taiwan, em vez de um obstrutor em qualquer avanço nas relações Pequim-Taipei.

Em conclusão, as mais recentes conversas telefónicas entre o Presidente Xi Jinping e o Presidente Joe Biden representam um avanço significativo no processo de construção da confiança nas relações sino-americanas. Embora ambos os países tenham interesses, valores e perspectivas divergentes sobre toda uma série de questões, Pequim e Washington estão ansiosos por procurar soluções construtivas sobre questões de interesse mútuo e consenso, concentrando-se em questões como as alterações climáticas, Covid-19 e a recuperação económica. O comércio é uma questão bilateral que pode ser abordada de forma mais eficaz e rápida com uma situação vantajosa para ambas as partes. No entanto, sobre a questão do futuro político de Taiwan, ambos os lados precisam de mais sabedoria política e soluções inovadoras. Neste aspecto, as actuais eleições do partido KMT já despoletaram algumas ideias inovadoras, incluindo as do mais desfavorecido Chang Ya-chung e do menos auspicioso Cho Po-yuan. Contudo, se a política continua a ser a arte do possível, como Bismarck salientou, então a procura de soluções construtivas, inovadoras e, no entanto, viáveis para enfrentar o futuro político de Taiwan no ano crítico de 2024 e mais além, será o teste mais crítico para o futuro das relações sino-americanas.

Sonny Lo

Autor e Professor de Ciência Política

Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Macau News Agency/MNA

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Uma vara espetada na terra

Faltam duas semanas para o meu aniversário. Quarenta e sete anos, nem sequer um número redondo, um cinquenta ou um quarenta e cinco, mas chegará um instante em que terá passado um tempo certo de um instante certo, que aconteceu. Irá acontecer também esse instante que celebra o outro, anterior. Com muita probabilidade, haverá um período desse dia em que me sentirei nostálgico, irá talvez parecer-me que tudo passou demasiado depressa.

Em tantos aspetos, o tempo é uma pergunta. Somos capazes de calculá-lo, podemos lembrá-lo ou prevê-lo, mas a resposta última que encontramos para a grande questão que nos coloca é dada por cada decisão que formos capazes de tomar agora. Estamos aqui e, por isso, somos donos deste momento preciso. Somos donos de tanto.

Nasci às duas e meia da tarde.

Na primavera do meu primeiro ano de escola, 1981, houve uma manhã em que, ainda antes do recreio, saímos para o pátio. De bata, seguimos a Dona Arcângela. Sob a nossa admiração, escolheu um lugar na terra e espetou uma vara. Observámos a sombra que estendia, uma linha reta. Assinalámo-la com pedras. Voltámos mais tarde e a sombra estava já noutro ponto. Durante o recreio, brincámos à volta desse vara, nunca lhe tocando, como se contivesse um mistério importante. E continha.

Em casa, eu tinha um relógio na parede da cozinha e um despertador antigo na mesinha de cabeceira. O sino da vila tocava de quarto em quarto de hora. Num dos meus aniversários de adolescente, o meu pai ofereceu-me um relógio eletrónico, comprado em Badajoz. Sei que sorri. Não sei quanto tempo passei a acertá-lo com o bico de uma caneta ou a assistir à passagem lenta dos segundos. O meu pai tinha um relógio de bolso, a ponta da corrente pendia-lhe de uma das presilhas das calças. Eu tinha um relógio espanhol de pulso: 14:30.

Agora, respiro. Tenho o conhecimento teórico de que possuo um coração a bater-me no peito. Estou aqui há tempo suficiente para saber que, depois do dia, virá a noite. Entretanto, espero ser capaz de desfrutar do entardecer, lento.

Existem os números, mas existem também as plantas, as árvores. Uns e outros explicam-nos este mistério importante: estamos aqui. Agora, com a ponta dos dedos, poderíamos sentir a nossa presença física, temos braços e pernas, temos rosto, temos uma idade precisa, contada a partir de um instante irrepetível. Estamos aqui e, ao mesmo tempo, avançamos. A seiva atravessa o interior das plantas e, ao mesmo tempo, o ponteiro dos segundos faz o seu caminho em todos os relógios do mundo. Somos contemporâneos de tudo isto que nos rodeia. Podíamos agora olhar em volta. Em cada pormenor da paisagem, está uma possibilidade deste tempo que nos leva e nos pertence. O futuro é uma montanha. O passado é uma montanha. O presente é uma montanha ainda maior. Imaginamos uma, recordamos a outra e estamos no topo da mais alta. A neblina e a distância apenas permitem nitidez ao lugar onde pousamos os pés. Não é pouco, é tudo o que precisamos. Podemos encher o peito e respirar.

Em redor dos meus pés, crescem ervas, são sábias. Alimentam-se da terra, a mesmo onde, há anos, a Dona Arcângela, espetou uma vara. Estou ainda a aprender tudo o que começou a ensinar-me nesse instante. Talvez as lições mais importantes sejam mistérios maiores do que uma vida e talvez esteja bem assim, talvez seja justo assim. Nenhuma tristeza ou amargura nessa constatação simples.

O relógio de bolso do meu pai é agora meu, parado para sempre no meio-dia ou na meia-noite. Marca uma hora que passou, não voltei a dar-lhe corda, está certo nessa hora. Há vezes, em que o pouso na palma da mão, redondo, liso, e sinto a sua corrente entre os dedos.

José Luís Peixoto

Escritor

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Assunto arrumado

Jorge Sampaio e Rocha Vieira na cerimónia de encerramento da “Cápsula do Tempo”, contendo documentos relacionados com a transição.

Ao contrário do que seria natural supor e do que queriam fazer parecer, enquanto encargo, Macau nunca foi pêra doce (ou favas contadas, consoante a preferência) para os presidentes do Portugal democrático.

Pesassem embora a familiaridade e as boas recordações de uma comissão de serviço militar, em 1962 – de que havia famigerada memória até nos cantos mais recônditos, como Coloane – Ramalho Eanes teve que se haver com as incógnitas próprias do seu tempo, sobressaindo os alvores revolucionários e a transição para a democracia, bem como a nova relação diplomática, normalizada, com a República Popular da China. Eram, de facto, numerosos os pontos de interrogação que o futuro atravessava, não apenas no horizonte panorâmico das grandes questões geopolíticas, mas também na realidade estrita da governação da pequena cidade, sendo disso acabado exemplo o episódio da primeira e única dissolução da Assembleia Legislativa de Macau, em 1984.

Mário Soares, o presidente-rei-sol, foi levado em ombros a passear, mesmo entre multidões revoltas, sem nunca ter, verdadeiramente, sido incomodado por qualquer “conto proibido”. Em terra de bonzos, sabia-se ler a sina de um homem com quem o destino estava de bem. A bonomia era popular e passaporte carimbado onde quer que fosse e não havia barreira cultural ou linguística que atrapalhasse.

Jorge Sampaio herdou os últimos tempos, quando tudo estava já decidido. No definitivo ocaso do império, a missão não era impossível. Parecia até simples: salvaguardar um módico de dignidade. A estabilidade era, por isso, o que mais interessava. Nada de estranho numa história de convivências e conveniências. Antes pelo contrário.

Desse ponto de vista, a actuação do presidente Sampaio pode caracterizar-se, sobretudo, por uma imensamente paciente resistência perante a sequência de casos e casinhos no quotidiano da relação entre Belém e a Praia Grande. Até ao último dia.

Como o próprio ex-chefe de Estado conta no segundo volume da sua biografia política, da autoria do jornalista José Pedro Castanheira, a sucessão de incidentes arrastou-se até ao derradeiro momento do arriar da bandeira no Palácio da Praia Grande, protagonizado pelo último governador, Vasco Rocha Vieira. Também para Sampaio se tratou de um episódio inesquecível, mas pelos piores e nada patrióticos motivos. Entre muitas críticas ao general, apontadas no capítulo intitulado “O adeus de Macau ou o fim do império” – 44 das mais de mil páginas da obra publicada em 2017 –, acusações de promoção pessoal e “má fé” devido à criação da Fundação Jorge Álvares, o ex-presidente conta que “a história da bandeira foi ridícula: estudada ao milímetro e feita a uma hora em que nós não estávamos”.

Eram os acontecimentos que marcavam o “fim do império”, e, nessa circunstância de serem os últimos, compreendia-se que se acavaleirassem a todo o resto, sobrando como os mais decisivos e concludentes.

Justificam-se, assim, a memória e as impressões de um presidente que dizia “nunca” ter gostado de Macau? Talvez.

A esse respeito, Sampaio foi categórico: “É verdade que o nosso sistema foi mais brando que o de Hong Kong, mas tive sempre o sentimento de que falhámos completamente a nossa missão. No entanto, eu não podia ter feito mais. Só eu sei o que sofri, literalmente. Dei uma luta de morte, apenas por razões de patriotismo e de alguma decência, para fazer as coisas bem feitas”.

Na hora em que a história se escrevia em Macau, a avaliação era francamente negativa, contrastando com os “sucessos” que, sobre o mesmo tema, outros intervenientes costumam debitar em modo automático. O desassombro de Sampaio: “Aquilo era China e Portugal não deixou lá grandes marcas – e as que deixou foi a China que teve mais interesse em conservar e mostrar. Se tivemos alguma missão em Angola ou em Moçambique, ali qual foi? (…) Gostei muito de conhecer os macaenses, mas nunca gostei de Macau. Em 500 anos nem ao menos conseguimos ensinar português e ficámos com a fama de tipos que foram para lá enriquecer. Não tenho a mais pequena prova contra ninguém, mas tinha a noção do que ia acontecendo”.

Numa coisa, Sampaio foi idêntico aos seus antecessores em Belém: não teve a insensatez de procurar transformar aquela que intuía ser a “natureza” de Macau – limitou-se a anotar. Para mais tarde recordar.

Tal como noutros tempos, depreende-se, os motivos não eram assim tão díspares, nem eram coisa pouca: patriotismo, sentido de Estado, estabilidade. Acredita-se que tenha sido por tudo isso que muita coisa aconteceu. Que se deixou acontecer.

Mas é também uma lição de Macau e da sua longa história, da extensa lista de especificidades: nenhuma magistratura de influência, mesmo formalmente elevada, ia além da vontade local, que, longe da vista, acabava sempre por vingar.

É verdade que a história estava já escrita – com a transição, Macau deixava de ser o centro das relações entre Portugal e a China, passando a nota histórica, um rodapé –, mas é uma infelicidade que tenha sido assim com o político – o presidente – que, na hora da sua morte, é incensado como arauto dos valores humanistas e da ética republicana. Macau bem precisava. Pena que fosse um assunto arrumado.

Hugo Pinto

Jornalista

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Olhos fechados

A liberdade começa e acaba nas pequenas coisas. Tenho andado a pensar nela, nestes últimos dias, nestes últimos meses. Do quão importante é e da falta que nos faz quando não a temos, mesmo que esse buraco esteja tapado por outra coisa qualquer. Embora sejam antónimos, a liberdade é como o medo: não se vê. Mas sabe bem. Cheira bem. É suave ao toque.

Nas pequenas coisas começa a liberdade e são as pequenas coisas que nos dizem o quão livre somos. A primeira vez que me disseram que não podia sentar-me numas escadas senti-me pouco livre. Aconteceu pouco tempo depois de ter passado vários anos com um lugar cativo numa escadaria – os degraus da minha faculdade. Aquelas escadas concentravam toda a liberdade. Um fumava, outro comia, um estudava, o outro lia o jornal, vários riam à gargalhada enquanto outros discutiam, e havia ainda o silêncio. O silêncio de quem estava no primeiro degrau a contar de quem desce e vê tudo, todo o horizonte possível.

Voltei a ter essa sensação – a sensação da importância da liberdade das pequenas coisas – no dia em que me disseram que a minha filha, a ensaiar os primeiros passos, não podia pisar a relva do jardim. Aos comuns mortais está destinado o cimento, a pedra irregular, o alcatrão, todos os materiais que doem nos joelhos que caem. A relva está destinada à relva, não à liberdade. E de repente vi a relva do jardim da casa onde cresci. E pensei na relva dos campos de golfe onde se pisa a relva para chegar aos buracos. Onde alguns pisam a relva. Só alguns.

A liberdade das pequenas coisas também está na rua, na rua plana ou inclinada, sem escadas ou relvados. Está na música que se ouve de improviso, tocada de improviso por alguém. Está no espaço em que nos podemos movimentar. Nos metros quadrados reservados para a nossa existência e na falta de metros quadrados para a nossa sobrevivência enquanto seres que andam na rua. A liberdade está, como também parece óbvio, no ar que respiramos: há quem não se interesse nada com a nossa liberdade de respirar e venda oxigénio por negócios cor de betão.

A liberdade encontra-se em coisas mais complicadas, ora pois. Na possibilidade de dizer não ao chefe e na hipótese de discordar do professor. Na plenitude de não ter a mesma opinião, até mesmo quando a divergência de pensamento se traduz apenas nisso, em pensamento divergente. A liberdade está na capacidade de rirmos de nós próprios, dos nossos atropelos, das nossas inconsistências e erros, das nossas falhas e absurdos. E está também, em situações limite, na capacidade de bater com a porta ou, numa fase ainda intermédia, num potencial gesto de bater o pé.

Se, inicialmente, a falta de liberdade das pequenas coisas nos atrapalha, a verdade é que o hábito tapa o buraco – e o hábito é uma coisa tramada. Lentamente, sem sequer percebermos, damos por nós a procurar um banco em vez de um degrau. E a preferir o cimento à relva, que traz com ela sempre alguma terra para os sapatos. Percebemos que o silêncio é a melhor forma de viver em paz no trabalho e na escola, e concordamos que o azul é azul, mesmo quando o azul é branco. Com o tempo, esquecemos o nome das cores.

Saímos à rua e já nem nos lembramos da música improvável, tão constante é o ruído de fundo de motores de diversas naturezas. E também já não nos vem à memória o cheiro do ar, porque os nossos corpos, a começar pelos narizes, deixaram de reconhecer o oxigénio tal como ele veio ao mundo. Não damos uma gargalhada na rua e somos contidos nas palmas que batemos numa sala de espectáculos, mesmo que os concertos sejam extraordinários e os artistas mereçam ovações efusivas. A liberdade vai acabando nas pequenas coisas, lenta e discretamente. Ou não.

A liberdade acaba quando não nos dão opções – alguém as tomou por nós, é pegar ou largar. A liberdade acaba no dia seguinte ao dia seguinte, quando os assuntos foram mortos, sem anestesia, e enterrados, sem direito a homilia. Da próxima vez, já não há sequer a opção é isto ou nada, porque só já há o nada. E da liberdade que antes havia já ninguém sabe. Desapareceu no meio de meia dúzia de pessoas que gostavam dela

– porque nunca se esqueceram de como é bom dar uma gargalhada numa escada,

– porque nunca se esqueceram de como é bom a relva a picar nos pés,

– porque nunca se esqueceram do dia em que defenderam o mais fraco da acusação injusta do professor, e

– porque nunca se esqueceram do nome das cores.

A liberdade começa nas pequenas coisas e acaba nas pequenas coisas também: na escolha de segurarmos a mão de quem queremos no momento em que fecharmos os olhos.

Isabel Castro

Jornalista

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