Sónia Nunes
Das aulas de catequese que tive, sempre aos domingos e uma hora antes da missa, guardo vários episódios de boas intenções e talvez nenhum me tenha vindo mais à memória do que aquela vez em que o Padre João nos ensinou os Dez Mandamentos. Estávamos na Igreja, comigo já espantada com o facto de se poder falar alto sem ser para dizer o terço, quando fiquei a saber que havia uma alínea no “honrar pai e mãe” para abranger os “outros legítimos superiores”. A minha avó estava afinal incluída e o mundo como o conhecia mudou: o resultado das minhas confissões foi alargado para um Pai Nosso e três Ave-marias por desobediência qualificada.
Já noutras fases da vida e na companhia de outros católicos mal resolvidos dei por mim a tentar reproduzir de memória as orações e os princípios que aprendi na catequese, para me encontrar sempre sozinha na parte em que repetia de cor: “Honrarás pai e mãe e seus legítimos superiores”. Cheguei a pensar que o Padre João tinha inventado aquilo ou que era uma coisa lá da aldeia – até que a 6 de Julho de 2014, em Macau, abro o semanário Plataforma e o mundo volta a ser como eu o conhecia quando tinha uns dez anitos. Obrigada.
Página 13 do caderno A. O Bispo José Lai diz que isto da liberdade académica e do comentário político está tudo muito bem sim senhora desde que as críticas ao Governo sejam fundamentadas e “oportunas”. Em discurso directo fica melhor por causa da referência bíblica, perfeitamente localizada, como é hábito: “Se se disser que o Governo está a fazer mal, de acordo com o Evangelho, tem de se apresentar o facto que não está conforme”. Aqui está: “Outros legítimos superiores”. Não é só a minha avó. É também o Governo da RAEM e o terceiro Chefe do Executivo – e o quarto que, por coincidência, será a mesma pessoa apesar de, neste particular, o Evangelho ser, até ver, omisso.
Mais. A leitura cruzada das declarações do Bispo ao Clarim na sexta-feira permite-nos, com a devida vénia, chegar à conclusão que o mandamento completo é “honrarás pai e mãe e outros legítimos superiores, nomeadamente o Governo da RAEM e o Governo Popular Central”, o que só vem reforçar a ideia já feita de que o Governo é o pai de todos nós.
Explico: José Lai, presidente da Fundação Católica que gere a universidade que tem como princípio inviolável não ter intervenção política nos locais onde está inserida, diz não perceber as manifestações em Hong Kong já que Pequim é quem manda. O Bispo, que nomeia duas pessoas para o colégio eleitoral do Chefe do Executivo, facto que foi manchete no jornal que proibiu de fazer notícias de política, afirma também que o Livro Branco não vai além da Lei Básica.
Gabo a coerência de José Lai. Em curtas e evasivas intervenções públicas consegue confirmar que a Igreja Católica está afastada destas questões (a eleição do Chefe do Executivo não é política, é um espectáculo) e explicar o que quer dizer com crítica “oportuna” e com “factos”: o comentário político pode ser feito desde que seja para defender o Governo. Era este o ponto que faltava esclarecer – se bem que a frase “tudo o que está no Evangelho tem de ser defendido” possa levar uma pessoa a perguntar se José Lai está em crer que uma cidade, para sempre ligada ao pecado, deve ser destruída pelo fogo se nela não se encontrarem dez pessoas honestas.