A importância de um relatório não-oficial

A violência domestica e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher: a importância de um relatório não-oficial

Angel Mak e Cecilia Ho*

Enquanto proliferam as notícias sobre as políticas sobre a importação de mão-de-obra e sobre o problema da habitação, há vítimas de violência doméstica que lutam face à possibilidade de contarem as suas histórias pessoais. É verdade que a nossa economia continua a expandir-se, o que nos dá a perfeita ilusão de que a comunidade local está num processo civilizacional que eventualmente incluirá a eliminação da violência doméstica e uma consciência reforçada sobre os direitos das mulheres. Mas, enquanto expressões como “igualdade de género” ou “discriminação de género” continuarem a ser omitidas ou não suficientemente declaradas, devemos duvidar se o nosso Governo está a fazer o que deve para proteger os direitos das mulheres. Um olhar sobre o processo de consulta pública da legislação da violência doméstica reforça estas mesmas dúvidas.

A violência doméstica constitui uma violação dos direitos humanos. Constatamos esta realidade após centenas de horas de diálogo com vítimas de violência doméstica desde que, em Maio deste ano, lançámos uma petição pela classificação destes abusos como crime público (1), recolhendo mais de 5500 assinaturas.

A série de iniciativas promovidas pelo nosso grupo suscitou uma maior consciencialização por parte do público. Além da petição, encontrámo-nos com representantes do Instituto de Acção Social e pedimos aos candidatos às eleições para a Assembleia Legislativa que clarificassem a sua posição quanto à classificação da violência doméstica. Estas acções visaram exigir firmeza ao Governo no cumprimento das obrigações assumidas no último relatório da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, designadamente, de melhorar a legislação no que diz respeito aos abusos doméstico cometidos contra mulheres e raparigas em Macau.

Acreditamos que um Governo responsável deve reagir face ao fenómeno extremo e sistémico de violência física e não-física descrita como “violência íntima sistémica”. Há que analisar as relações entre violência e género. Quando nos referimos às vítimas como mulheres e aos agressores como homens, estamos a assumir este subconjunto da realidade para um exame mais detalhado e não porque todas as formas de violência íntima sejam cometidas por homens contra mulheres. Também nos preocupa a falta de protecção legal, na proposta de lei, para casais do mesmo sexo em coabitação.

A nossa análise sobre a violência doméstica foca-se no entanto nas relações entre violência e género. E esta análise serve de modelo para uma investigação sobre a responsabilidade do Governo nos abusos cometidos na esfera privada. Devemos sublinhar que “as mulheres não sai as únicas vítimas de violência doméstica e os homens não são os únicos agressores”. “As crianças, os idosos, os portadores de deficiência, homens e animais sofrem”.

Porém, uma análise de género é crítica e necessária pelo facto de a violência doméstica cometida contra mulheres ser de particular gravidade dado o historial de discriminação fundada no género presente nas sociedades patriarcais de todo o mundo. Este tipo de violência doméstica é uma das principais ameaças à saúde feminina a nível global.

A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, que vincula os signatários no âmbito da legislação internacional, decorrendo da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Mais de 90 por cento dos membros da Organização das Nações Unidas integram a convenção, que cobre todos os aspectos da vida da mulher. Os direitos nesta reconhecidos incluem as áreas da participação política, saúde, educação, emprego, casamento, relações familiares e igualdade.

Ao integrar a convenção, os signatários comprometem-se a adoptar todas as medidas adequadas para a sua implementação, incluindo a criação de novas leis e de medidas especiais, para que as mulheres possam gozar dos seus direitos fundamentais e liberdades.

O comité responsável pela a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher é composto por 23 membros especializados em questões de género. O órgão reúne-se duas vezes por ano para abordar tópicos específicos da convenção e monitorizar o progresso de cada país e região.

Macau assina a convenção desde 14 de Setembro de 1998, devendo entregar relatórios ao comité das Nações Unidas de quatro em quatro anos. Estes relatórios devem apresentar de forma detalhada as medidas adoptadas pelo Governo para cumprir as suas obrigações. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher requer de cada Governo que mude as atitudes das entidades públicas e privadas perante as mulheres. É crucial estabelecer uma relação com a questão da violência doméstica, uma vez que está em causa a autoridade pública sobre a esfera privada.

Notamos que, nas conclusões do relatório de 2008, o comité das Nações Unidas pede protecção imediata para raparigas e mulheres vítimas de violência, assim como a acusação e punição dos agressores. É exigido ao Governo de Macau que reporte sobre a implementação destas provisões no próximo relatório periódico.

Apesar de o Governo ter um papel importante na actualização da situação da região, as organizações não-governamentais também têm um papel activo na monitorização e implementação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, incluindo na divulgação do documento e dos direitos que garante para homens e mulheres de todo o mundo. Devem também fazer pressão junto de governos, empresas e indivíduos para a implementação das disposições da convenção e compilar dados para relatórios não-oficiais complementares aos que os Governos remetem quadrienalmente ao comité da ONU. Ao mesmo tempo devem disponibilizar informações às autoridades governamentais sobre os progressos, as dificuldades e as estratégias mais eficazes para a implementação dos direitos humanos.

Na Ásia, as questões menos debatidas têm que ver com a ausência de legislação contra o assédio sexual e a violência doméstica. Por exemplo, no Japão, o assédio sexual é prática comum. Segundo Rina Bovrissethe, antiga funcionária da cadeia Prada, “a gerência prefere despromover ou transferir 15 trabalhadoras, muitas delas vendedora sénior, por considerá-las ‘velhas, gordas, não agradáveis, com maus dentes, maus corpos, ou porque não apresentam uma figura Prada’”. O caso desta mulher teve impacto mundial e alertou para o tratamento injusto que as mulheres japonesas enfrentam diariamente no local de trabalho.

O grupo de pressão pela classificação da violência doméstica como crime público participou, recentemente, numa acção de formação sobre a redacção de relatórios não-oficiais sobre a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. A iniciativa foi organizada pelo Centro de Estudos em Direito Comparado da Universidade de Hong Kong.

Pramila Patten, vice-presidente do comité da ONU responsável pela implementação da convenção, ofereceu-nos um retrato compreensivo sobre o processo de monitorização levada a cabo pelo órgão, bem como conselhos sobre as melhores práticas e estratégias que as organizações não-governamentais devem adoptar no seu trabalho de promoção dos direitos das mulheres.

O próximo passo para o nosso grupo consistirá na redacção de um relatório que reflicta ao apoio geral da população à classificação da violência doméstica como crime público. A preparação deste documento parece-nos o último recurso para que os cidadãos de Macau possam lutar pela igualdade de género e contra todas as formas de violência contra a mulher, numa altura em que o Governo continua a não ouvir as nossas preocupações.

A população já percebeu que há oito deputados, eleitos pela via directa, que apoiaram a nossa iniciativa durante o período de campanha eleitoral em Setembro. Agora, estamos no momento crítico em que estes deputados devem unir-se a nós e a um conjunto de 32 organizações não-governamentais para formarmos uma aliança responsável pela redacção do relatório que deverá ser entregue ao comité da ONU em Março do próximo ano. Há que mostrar insatisfação e mostrar a nível internacional que o Governo de Macau não está a tomar as diligências concretas e necessárias para proteger os direitos das mulheres.

* membros do grupo de pressão pela classificação da violência doméstica como crime público

(1) https://www.facebook.com/events/444921862265447/463225253768441/?notif_t=like

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